Ruídos, distorções e trap: Kim Gordon segue atual e visceral em 2º álbum solo
The Collective foi lançado na última sexta-feira, 08
Em outubro de 2011, um comunicado anunciava o fim das atividades de uma verdadeira instituição da música alternativa, o Sonic Youth, em consequência da separação de seu casal fundador. A notícia pegou o mundo indie de surpresa, em particular a audiência brasileira, já que a última apresentação do grupo seria dentro do festival SWU, realizado no mês seguinte.
Como não poderia ser diferente, o show de despedida é relatado com amargor por Kim Gordon em sua autobiografia, A Garota da Banda. O livro é um agradável apanhado de suas memórias, desde a infância e adolescência, sua carreira na arte, criação do SY, a traumática descoberta da traição do marido, Thurston Moore, até o fim da banda e um pouco além.
13 anos depois, encontramos Kim mais viva do que nunca, pelo menos no que se refere à sua pessoa pública e artística. Depois de focar em sua carreira nas artes visuais, editar livros, lançar coleção de moda e participar de outros projetos musicais — como o ótimo Body/Head, com o parça Bill Nace —, a artista lançou seu segundo álbum solo, The Collective, nessa última sexta-feira, 08, Dia Internacional da Mulher.
Sucessor de No Home Records, de 2016 (que trazia uma abordagem bem diversa do Sonic Youth, flertando com o dubstep e o trap), o novo disco tem um frescor e sabor de redescoberta, é deliciosamente ousado e sensual e segue a caminhada em direções contrárias às percorridas com sua antiga banda.
The Collective parece mergulhar ainda mais fundo nas novas experimentações feitas em seu antecessor, como as fusões de guitarras e ruídos com o trap. A faixa de abertura é um desses momentos em que uma artista veterana envereda a tentar misturar sua música com tendências modernas, o que costuma dar muito errado.
BYE BYE, no entanto, deu muito certo, e uma parte dos méritos pode ser atribuída à escolha do mesmo produtor de No Home, Justin Raisen, de Charli XCX, Sky Ferreira e Yves Tumor. Raisen trouxe ainda mais frescor ao trabalho, como no beat da própria BYE BYE, que originalmente havia feito para o superastro do trap Playboi Carti.
As boas surpresas vão aumentando à medida que vamos escutando e, em The Candy House, vemos Gordon sair da zona de conforto em um trap com batida “danificada”, quebrada, construída sob chiados e um vocal com direito a autotune. A sujeira continua na ótima I Don’t Miss My Mind, lenta e com batida estourada, em que ela alerta: “don’t fuck it up!”.
Em I’m A Man, temos uma irônica e sarcástica crítica ao comportamento masculino, e provavelmente uma zoeira com a canção da Spencer Davis Group. O disco tem um raro e bem-sucedido fluxo de ideias musicais concisas. Trophies aplica mais peso eletrônico em um dubstep com guitarras.
O disco tem atmosfera densa e poluída, muito em razão das batidas sujas e pesadas de Raisen, que servem perfeitamente de suporte para Gordon extravasar sua fúria. It’s Dark Inside é o exemplo perfeito: “Mande os palhaços / Mande o exército / Você quer ser americano / Pegue sua arma / Você é tão livre / Você pode atirar em mim”.
“Eu queria expressar a loucura absoluta que sinto ao meu redor agora”, declarou. Parece que as coisas estão bem loucas para Kim Gordon, como em Psychedelic Orgasm, um delírio em forma de ruído, distorção em graves cabulosos e aquela molhada de autotune no LSD — uma das melhores faixas!
O álbum flui fácil para quem aprecia sons pesados, barulho, distorção, sons metálicos, guitarras e baixo gordo. Fique certo de encontrar ecos de rock industrial, hip-hop old school e um pouco do noise do começo do Sonic Youth. Contudo, está tudo muito bem acomodado em uma linguagem perfeitamente assentada em 2024.
Pode até ser que mais para frente essa sujeirada toda possa soar monocórdia, mas a sensação é de que ela funciona bem demais. O disco poderia ser mais variado, porém esse tom dominante é decisivo para criar a unidade do álbum.
A última parte de The Collection parece coroar o que foi se construindo até ali, com algumas de suas melhores canções. Tree House tem um riff marcante que logo é entrelaçado e atropelado por uma infinidade de ruídos. Shelf Warmer é um trip-hop sexy e tenso, extremamente bem construído. The Believers, uma paulada certeira, com uma virada de baixo cabulosa com final digno dos melhores industriais. Dream Dollar, com sua base pulsante, nos leva direto à alguma intersecção entre Suicide, Nitzer Ebb e Sleaford Mods, encharcados em drone e mescalina.
Conforme Kim Gordon conta em sua biografia, sua cabeça era permeada por Allen Ginsberg, Jean-Luc Godard, Charles Baudelaire, Nietzsche e Geoffrey Chaucer, mais uma dose de Alan Watts, alimentando a piada interna sobre ela ser uma hippie da Califórnia. Os discos do pai, como Ornette Coleman, Albert Ayler e Archie Shepp, sem dúvida contribuíram bastante na construção da sua identidade musical. Some-se ainda os óbvios The Velvet Underground, Television, P.I.L. e Lydia Lunch, e compositores como John Cage, La Monte Young e Philip Glass. Todos esses foram, de alguma forma, retratos marcantes de sua época.
O som estourado e o trap parecem fazer todo o sentido ao escutar as palavras dela para contextualizar o disco: “Este é um momento em que ninguém sabe realmente o que é a verdade, em que os fatos não influenciam necessariamente as pessoas, em que cada um tem o seu lado, criando um sentimento geral de paranóia. Para acalmar, para sonhar, fugir das drogas, dos programas de TV, das compras, da internet, tudo é fácil, tranquilo, cômodo, de marca. Isso me deu vontade de romper, de seguir algo desconhecido, talvez até de falhar”.
Não falhou. Justin Raisen pontuou para o New York Times que “um montão de artistas entra em decadência após os 40 anos, outros não”. Ele citou David Bowie, Leonard Cohen, Nick Cave — e Kim Gordon. Onde assino?