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Joseph Conrad e o Coração das Trevas. Racismo ou denúncia de uma África explorada em nome da “libertação”

Joseph Conrad

Joseph Conrad - foto: reprodução Wikipedia

Alguém que não enxerga o racismo em uma realidade racista será considerado racista também? Neste artigo vamos entender se um peixe é capaz de perceber a água na qual está nadando.

 

Você já conhece a história de Coração das trevas mesmo sem ter lido a obra. Há algumas adaptações diretas do livro para cinema e TV, mas a melhor delas é a transposição que Francis Ford Coppola fez em Apocalypse Now! (1979), com Marlon Brando e Martin Sheen. Se não viu, então a continuação da história pode ter chegado até você nos noticiários de 1994, sobre o genocídio tutsi, na Ruanda — procure pela série Black Earth Rising (2018), na Netflix; ou então suas reverberações na recente série documental Exterminate All the Brutes (Extermine todos os brutos, 2021), dirigido por Raoul peck e baseado no livro homônimo de Sven Lindqvist, na HBO. Se em nenhum desses, ligue a TV aberta nos programas sensacionalistas de polícia e tenha um lampejo dos conflitos de grupos sociais em conflito no Brasil, um claro projeto estratégico de exploração econômica e psicológica das classes mais pobres e dos negros.

Ao longo de sua vida, Joseph Conrad nunca fez grande alarde sobre o livro que hoje seria seu cartão de visitas, Coração das trevas. Inicialmente, o mesmo ocorreu com o público e os editores. A primeira publicação dessa obra se deu em três partes, na milésima edição da aclamada Blackwood’s Edinburg Magazine, em 1899. Quando Conrad aceitou o convite de William Blackwood, ele sequer tinha certeza de que um livro sobre “a criminosa ineficiência e o puro egoísmo da empreitada civilizatória na África” seria aceito. Em 1902, Blackwood lançou a história completa em um volume só, chamado Juventude: uma narrativa e duas outras histórias. Uma dessas “outras histórias” era Coração das Trevas.

Assim como a selva sempre silenciosa e imutável sobreviverá à raça humana no apocalipse, Coração das trevas parece ter o mesmo predicado da vastidão. Ao longo dos anos o interesse por esse texto foi crescendo, sendo traduzido para o francês e o alemão somente no mesmo ano da morte de Conrad; descoberto pela vertente da crítica psicológica nos Estados Unidos dos anos 1950, e aclamada pelo estruturalismo dos anos 1960 e 1970, reformando a opinião acadêmica sobre ela e transformando alguns de seus pontos negativos em qualidades admiráveis.

Nas mais recentes correntes desconstrucionistas e neo-historicistas, o livro foi conquistando mais e mais notoriedade e publicidade, eclipsando todos os outros grandes trabalhos de Conrad que o fizeram respeitado enquanto ainda vivo. Em 1948, o lendário crítico britânico F. R. Leavis elencou os quatro únicos escritores de língua inglesa dignos de sua “grandiosidade”: Jane Austen e George Eliot (duas mulheres, a segunda sendo, na verdade, Mary Ann Evans); Henry James e Joseph Conrad (dois estrangeiros da Coroa).

Hoje, é possível afirmar que a ficção de Conrad é uma espécie de testamento histórico, uma reinvenção de fenômenos sociais e uma exploração das “profundezas do horror e do desespero” humano.

 

Quem era Joseph Conrad

Polonês de origem, Conrad começou sua carreira de marinheiro em Marselha, na França, por volta dos 17 anos. Trabalhou certo tempo para navios franceses, porém, após uma tentativa de suicídio — ele tentou se matar dando um tiro no próprio peito —, acabou convencido a mudar de ares e trabalhar na marinha mercante britânica. O conselho foi dado por um tio que vivia na Ucrânia e era uma espécie de pai para o rapaz, órfão desde os 11 anos. Seus pais foram mortos pela tuberculose, para não dizer pelo exílio político nas terras frias da Rússia.

Portanto, foi já adulto, após passar anos trabalhando com os britânicos, que Conrad dominou o idioma inglês, língua na qual ele produziu suas obras essenciais. Em seguida, ele foi contratado, por uma companhia belga, como capitão do barco a vapor Roi des Belges, no rio Congo, uma região entendida como “Estado livre”, mas que, na verdade, era a parte do continente africano dominada pelo rei Leopoldo II, da Bélgica — Conrad permaneceu apenas alguns meses nesse emprego.

Sua permanência no posto foi curta talvez porque, no Congo, ele presenciou atrocidades extremas, criou uma profunda aversão aos mercadores europeus e aos regimes de trabalho completamente degradantes impostos aos africanos, muitos deles com vieses escravocratas.

Aniela Zagorska e Joseph Conrad – foto: reprodução Wikipedia

Nesse período, Conrad produziu inúmeros manuscritos e diários. Seu olhar estrangeiro, inclusive para o idioma inglês, permitiu produzir uma literatura única, que, em muitos pontos, apresenta em toda sua crueza a formação e o funcionamento do que hoje conhecemos por globalização — muitas das rotas utilizadas pelos navios nos quais Conrad trabalhou seguem funcionando atualmente, no século 21.

Enquanto muita discussão ainda é produzida sobre o tema central de Coração das trevas, suas nuances colonialistas e seu aparente preconceito racial, existe uma espécie de spin-off (ou seria um spin-in?), que na verdade é um prequel. O conto “Um posto avançado do progresso” (An Outpost of Progress, 1897), é claramente um exercício de Conrad sobre a narrativa e o tema. Nele, muitas das cenas, personagens e acontecimentos se inter-relacionam e respostas aos propósitos do autor ao escrever sua novela são revelados. O crítico Brian W. Shaffer aponta que as duas narrativas se retroalimentam e revelam em mais detalhes o significado do encontro pessoal de Conrad com a África. Essa noveleta raríssima só pode ser encontrada na edição do Instituto Mojo de Coração das trevas, disponível apenas na Amazon .

A mais conhecida obra de Joseph Conrad é também um retrato dos desmandos do imperialismo europeu na África. Filho do escritor, dramaturgo, tradutor e ativista político Apollo Korzeniowski, Conrad possivelmente teve seu primeiro contato com a literatura de Dickens e Shakespeare através das traduções feitas pelo pai. A mãe de Conrad, Ewa Bobrowska, também uma ativista política, morreu quando ele tinha 7 anos. O pai, faleceu quando ele tinha 11. Aos 17 anos, o órfão Conrad embarcou na marinha mercante em Marselha, na França. Foi durante seus muitos anos de trabalho nessa área que ele entrou em contato com as situações que posteriormente acabariam ressurgindo em sua obra literária. Conrad presenciou as contradições das forças europeias, que argumentavam levar a civilização para o continente africano, porém, utilizavam para isso métodos bárbaros. Essa contradição é um dos pilares da obra de Conrad e uma das marcas mais distintivas do processo de colonização. Coração das trevas mostra o “civilizador” europeu se transformando em uma espécie de demônio que atua em nome dos interesses dos impérios colonizadores. São sujeitos que degeneram ao receber poder sobre a vida dos habitantes do continente africano e ao buscar exclusivamente o lucro produzido pelo comércio de marfim. O inegável poder metafórico do texto de Conrad, além da forma como a narrativa é construída com frases tomadas pela indiferença e o desprezo frente às mais terríveis situações, torna Coração das Trevas um livro profundamente atual.

 

A discussão do racismo de Conrad

Ao longo dos últimos 120 anos, a novela de Joseph Conrad passou por diversos estágios de reconhecimento acadêmico e popular. De obra secundária no cânone do autor a uma das mais celebradas narrativas do século 20, Coração das trevas foi um conto lapidado ao longo dos anos, escrito e reescrito por Conrad até sua versão final. É verdade que talvez seja autobiográfica, uma vez que Conrad esteve no Congo ainda jovem e manteve um diário de 67 dias sobre suas tarefas e observações cotidianas. É também verdade que as análises críticas dessa narrativa desde os anos 1950 forçam visões subliminares sobre seu real significado antropológico, político e social — que acusam Conrad de apoiar o imperialismo, o racismo e até o sexismo. Mas também pode ser verdade que a história não tenha maiores pretensões do que reunir as ideias do autor, suas experiências pessoais e o zeitgeist vitoriano da realidade sociopolítica europeia. Por último, também é verdade que diversas nuances que entendemos hoje como alicerces de sua narrativa sequer teriam sustentação na época de sua escrita.

Coração das trevas parece versar sobre o descobrimento pessoal do narrador ou do protagonista Charlie Marlow — de si mesmo e dos ambientes que o cercava — diante do encontro com uma realidade imaginada e, então, vivenciada. Além dessa moldura, obviamente podemos atrelar razões e motivos para justificar algo muito maior e pungente, algo de crítico ao status quo da época — tanto contra como a favor da ideologia imperialista dominante na Europa do final do século 19. Conrad era um estrangeiro nas terras da Coroa Britânica, mas também era branco, poliglota e de certa maneira conformado (para não dizer feliz) com sua posição de pai de família e autor consagrado. Também era abertamente alinhado ao conservadorismo. Ao mesmo tempo, carregava hereditariamente uma posição política contra as monarquias, movimento que representava a emergência de uma nova classe social do último quarto do século vigente: os trabalhadores assalariados da Revolução Industrial.

Na definição da própria Enciclopédia Britânica: Coração das trevas examina os horrores do colonialismo ocidental, descrevendo-o como um fenômeno que macula não apenas as terras e os povos que explora, mas também aqueles no Ocidente que o promovem. O tema, portanto, se parece com o uróboro, uma serpente em um ciclo eterno de contrastes polarizados: a civilização e a barbárie, a luz e as trevas, o homem e a natureza, a sociedade matriarcal e a sociedade patriarcal. O desejo infantil de Marlow em conhecer aquela parte do mundo ainda “em branco” no mapa é o que dispara a narrativa. Estando lá, no coração da África, o caráter de Marlow amadurece forçosamente e este encara a realidade crua que, a distâncias continentais, parece exótica, mágica e promissora. A realidade é outra: o calor úmido é palpável, as dimensões são imensas, os exploradores não são heroicos e os habitantes locais, vilipendiados, procuram preservar suas tradições e seu modo de vida frente às violências dos colonizadores.

O homem diante na natureza é nada além de um instante, um inseto insignificante, mas tenaz: Árvores, árvores, milhões de árvores, enormes, imensas, até o alto. Aos seus pés, abraçando a margem contra a correnteza, rastejava o pequeno vapor, sujo de fuligem, negro como um frágil besouro atravessando a soleira de um imenso portal. Aquilo nos fazia sentir insignificantes, completamente perdidos e ainda assim aquele sentimento não era totalmente depressivo. Afinal, mesmo pequeno, o besourinho enegrecido continuava a rastejar — o que é exatamente o que se espera que ele faça.

E, em um lugar como esse, com pessoas como essas — nativos e estrangeiros —, o resultado é uma distorção ética, social, moral e comercial evidente:

Sim, duas galinhas pretas. Fresleven, esse era seu nome, um dinamarquês, achou que tinha sido passado para trás na negociação. Então ele desembarcou e surrou o chefe da aldeia com um cajado. Ah, não fiquei surpreso ao ouvir aquilo e, ao mesmo tempo, que Fresleven era o bípede mais gentil e tranquilo que conheciam. Certeza que era, mas já fazia uns anos que estava envolvido na nobre causa e talvez precisasse finalmente afirmar seu próprio valor. Ele bateu no velho negro sem piedade diante de uma multidão atônita, até que alguém, que disseram ser o filho do chefe, desesperado com os gritos do idoso, estocou o branco com sua lança. Ela perfurou facilmente seu ombro. Amedrontados, os nativos fugiram para a floresta, esperando todo tipo de desgraça. Ao mesmo tempo, o vapor que Fresleven comandava também fugiu em pânico, talvez agora comandado pelo maquinista. Ninguém pareceu dar muita importância aos restos mortais de Fresleven até eu chegar e tomar seu posto. Mas eu não me esqueceria daquilo. Quando tive a oportunidade de me encontrar com meu antecessor, o mato crescia entre suas costelas, tão alto que já cobria seus ossos. Estavam todos ali. O ser sobrenatural não havia sido tocado depois de caído. A aldeia estava abandonada, suas cabanas escuras e deterioradas rodeadas de cercas caídas.

A disputa por duas galinhas resulta em mortes e no abandono de toda uma aldeia. Mais: o homem de pele clara que comanda máquinas barulhentas (barcaças), objetos de poder (buzinas e sirenes) e o fogo mortal (armas) permanece intocado pelos locais, que certamente temem as consequências, ou como um descarte inútil para outros estrangeiros que ali estão em razão da exploração e não em respeito à vida.

 

Os “libertadores” são os escravocratas

A transição da África como um espaço em branco no mapa para um continente de trevas nasceu exatamente na segunda metade do século 19, quando os métodos escravagistas europeus assumiram outra forma de opressão, talvez ainda mais cruel: “Não foram os escravagistas que colonizaram e subjugaram a África, mas os libertadores europeus.”

Conrad não precisava necessariamente ter uma mentalidade racista, mas bastava simplesmente registrar as atividades colonialistas na África em busca de uma história a ser publicada na antologia de William Blackwood, sem se preocupar com o veredito futuro de críticos como Chinua Achebe ou Nina Pelikan Straus. Cavoucou suas memórias em busca de algo que valesse ser contado, juntou aqui e ali suas lembranças de imigrante, explorador, aventureiro e marujo para criar sua obra.

 

Autores racistas, mas só hoje?

Uma das principais questões relacionadas aos trabalhos em domínio público é o grande hiato temporal desde a sua criação. O volume de novas informações gerado a partir do século 20 — verdadeiras revoluções sociais, étnicas, tecnológicas etc. — criou facetas de interpretação em diversos assuntos, colocando em xeque o trabalho de autores como Monteiro Lobato, Mark Twain e, neste caso, o próprio Conrad. Confunde-se uma ideologia praticada em determinado zeitgeist, e escritores são condenados pelo modo como a sociedade da época construiu seus caracteres. De maneira alguma há aqui qualquer defesa ao seu racismo e sexismo, óbvios em suas obras, mas, sim, um chamado a analisar e contextualizar esses homens brancos em suas profissões e condutas sociais. Assim como na Idade Média europeia o ateísmo não encontrava lugar para existir, os feudos perduraram por quase mil anos sem sequer uma nesga de lucidez, subjugados a uma violenta imposição religiosa e a uma opressão de castas; o mesmo acontecia com a sociedade vitoriana, que flanava sobre o tapete mágico do Império Britânico enquanto incontáveis colônias eram esmagadas, incineradas e violentadas sem que a camada social elitizada de Londres e dos grandes centros se importasse os horrores que geravam sua riqueza e bem-estar. Por mais cultos e ativistas que fossem, eram ignorantes à realidade nos rincões — ou, em muitos casos, devidamente doutrinados, como Rudyard Kipling e H. Rider Haggard. Gene M. Moore analisa o antológico artigo de Achebe do ponto de vista cronológico:

Achebe aparentemente não sabe que as palavras racista e racismo ainda não existiam durante a vida de Conrad; os primeiros usos registrados no Oxford English Dictionary datam da década de 1930, e mesmo seu predecessor, o termo racialismo, era desconhecido antes de 1907. Sem dúvida, o racismo com qualquer outro nome não é menos ofensivo, mas talvez não seja totalmente estranho que Conrad reclamasse da “mais vil disputa por pilhagem que já desfigurou a história da consciência humana”, sem se referir a um preconceito que ainda não tinha nome nem em inglês e nem em francês. Obviamente que o valor do trabalho de Achebe não depende de tais detalhes; ao tomar Conrad como um símbolo da “melhor” literatura que o Ocidente pode oferecer sobre o assunto da África, Achebe levantou questões vitais que vão muito além dos estudos de Conrad para envolver a teoria pós-colonial e cultural de forma mais geral (MOORE, 2004, p. 7).

 

Em “Heart of Darkness Revisited: The African Response”, o também africano Rino Zhuwarara comenta sobre o trabalho de Conrad no contexto da ficção de aventura eduardiana e aprecia suas ironias e estratégias narrativas que “quase salvam” a história de Conrad de se tornar “um romance político da escola de Rider Haggard de propaganda imperialista”. Ele destaca aspectos da narrativa que confundiriam leitores africanos e elogia a resistência de Conrad ao imperialismo, mas, no entanto, o considera culpado de “uma dependência excessiva e preguiçosa de metáforas e estereótipos usados para justificar a mutilação física e espiritual de não brancos”.

 

Civilizado ou não, qual é a diferença?

Em certas passagens, Conrad nos indica que, se há luz e trevas, branco e preto, isso é nada mais do que uma conjetura. As primeiras páginas de Coração das trevas apresentam uma Londres negra, triste e decadente — inclusive moralmente, como se vê depois. A comparação Londres-Congo é inaugurada com a comparação Roma-Londinium, quando o Tâmisa de dois mil anos antes era o próprio rio Congo de 1890:

Estava pensando nos tempos antigos, da primeira vez em que os romanos chegaram aqui […]. As trevas estavam aqui ainda ontem. O mar cor de chumbo, o céu cor de fumaça, um barco que parecia uma sanfona… subia este rio com suprimentos, encomendas e sei lá o que mais. Bancos de areia, brejos, florestas, selvagens… quase nada digerível para um homem civilizado além da água do Tâmisa para beber. Nada de vinho falerno nem possibilidade de atracar. Aqui e ali um acampamento militar perdido na vastidão, como uma agulha num palheiro… frio, neblina, tempestades, doenças, saudades e morte. Sim, morte à espreita no ar, na água, na mata. Eles devem ter morrido aos montes aqui.

 

Assim, o uróboro se multiplica em si mesmo. A ideia de que Coração das trevas ou Joseph Conrad tenham responsabilidades raciais parece mais tênue quando se nota as parcas observações de Marlow sobre os negros. Assim, Conrad talvez não tivesse repertório ou interesse para falar sobre questões étnicas, e Coração das trevas passe ao largo dessa seara. Em suas primeiras páginas, Londres aparece mergulhada em uma escuridão completa, pontilhada por lampejos de civilização no horizonte ao longe. A escuridão está e continua lá, há dois mil anos, esperando pacientemente aquelas luzinhas humanas se apagarem. Londres, naquele momento, imitava o hedonismo da Roma Antiga, com uma aristocracia que vivia da opulência fornecida pelas centenas de províncias, de Constantinopla a Portugal.

A ideia de que africanos e europeus têm mais em comum do que gostariam de admitir é recorrente mais tarde, quando Marlow descreve a observação de cerimônias tribais às margens do rio. Confrontado com os aldeões locais “pisoteando” e “balançando”, com seus “olhos revirados”, ele é abalado por um sentimento de “parentesco remoto com este tumulto selvagem e apaixonado”.

Enquanto a maioria dos leitores contemporâneos se alegrará com o ceticismo de Marlow sobre o projeto de império, esta imagem dos congoleses é mais problemática. “Subir aquele rio”, diz Marlow, “foi como viajar de volta aos primórdios do mundo”. Ou seja, o autor vê as figuras dançantes como resquícios do “homem pré-histórico”. Da mesma forma, o comandante romano, em seu trirreme cheio de legionários vindos do Mediterrâneo, talvez tenha tido uma impressão parecida quando subiu um rio misterioso em uma Bretanha que ainda era apenas uma terra incognita em seus mapas.

 

O verdadeiro protagonista é o homem vazio

Coração das trevas sugere que os europeus não são essencialmente mais evoluídos ou iluminados do que as pessoas cujos territórios eles invadem. Nessa medida, a obra invalida um dos mitos da teoria da raça imperialista. Contudo, como argumentou o crítico Patrick Brantlinger, também retrata os aldeões congoleses como a personificação do primitivismo, habitantes de uma terra esquecida pelo tempo.

Kurtz é apresentado como prova desse “parentesco” entre os europeus “iluminados” e os “selvagens” que eles supostamente civilizaram. Kurtz certa vez escreveu um “relatório” idealista para uma organização chamada Sociedade Internacional para a Supressão de Costumes Selvagens. Quando Marlow encontra esse manuscrito entre os papéis de Kurtz, no entanto, nota um adendo rabiscado às pressas: “Exterminar todos os brutos!”. O Kurtz que Marlow finalmente encontra no final do romance foi consumido pelos mesmos “instintos esquecidos e brutais” que pretendia suprimir. Mas, então, a quem exatamente Kurtz se refere quando, após concluir seu relatório, rabisca sua última observação (“os brutos”) — senão aos brancos que o perseguiriam por suas responsabilidades de extração do marfim, perturbando assim seu novo reino entre os congoleses na mata? Talvez esse último relato de Kurtz seja a própria novela psicológica de Conrad, confusa e ilegível.

Em certo sentido, Kurtz incorpora a Europa, canalizando as ansiedades da virada do século sobre a mídia e a política de massa. Uma das qualidades que definem Kurtz no romance é sua “eloquência”: Marlow se refere a ele repetidamente como “Uma voz!”, e seu relatório sobre os Costumes Selvagens é escrito em um estilo retórico e pomposo — ecoando a forma como o próprio Conrad escreve —, com poucos detalhes práticos e muitas abstrações.

Ediçaõ em português do livro Coração das Trevas (Editora Mojo)

O personagem esquecido, mas certamente central à trama, é o Gerente, que incorpora a empresa que ele próprio representa no Congo. Sua principal preocupação é preservar seu cargo — que ele incorretamente supõe ser a ambição de Kurtz. O Gerente é mentiroso e criador de intrigas, sabota o conserto do barco a vapor de Marlow para evitar que os suprimentos cheguem até Kurtz. Nem Marlow nem Kurtz acreditam em suas demonstrações de preocupação com a saúde do último. Quando ele diz a Kurtz que veio salvá-lo, este responde: “Salvar o marfim, você quer dizer”, e quando Kurtz morre, Marlow sai do cômodo e sente os olhos do Gerente sobre ele, ansioso para saber da morte de seu rival. De acordo com Marlow, o Gerente “inspira inquietação” e usa sua capacidade para obter de Marlow informações sobre Kurtz e suas atividades. É um homem desprezível, gestor de um poder que poderia tornar a empresa uma operação idônea, mas que se recusa a fazê-lo por medo de que isso impeça o escoamento de marfim que sai da África. Marlow faz uma análise do Gerente em sua primeira reunião ao chegar ao posto, e evidencia sua “ambiguidade corporativa” e sua existência e aparência nada especiais. Seu maior atributo era sua resiliência ao ambiente e somente por isso conquistara seu cargo:

É possível sugerir e até afirmar que o Gerente seja peça essencial da derrocada de Kurtz, pois ele próprio é parcialmente responsável por seu isolamento; e também pelo atraso de semanas na entrega dos rebites necessários para consertar o vapor para Marlow — há fortes indícios de que a própria avaria no barco tenha sido causada propositalmente por ele. Kurtz certamente tomaria o lugar do Gerente em breve: esse é um dos motivos de Marlow ter sido enviado em seu resgate. Homens como o Gerente são quem pavimentam a via do “progresso civilizatório”, constantes e tenazes como a barcaça ou o besouro, vazios, comuns e incríveis como os melhores comerciantes devem ser. “O horror, o horror” deve significar então mais do que somente o horror da realidade na qual Kurtz foi jogado e na qual ele se afundou e enlouqueceu. Inteligente e resoluto como é, Kurtz parece ter percorrido dois caminhos e chegado ao mesmo lugar: como um agente imperialista — civilizado e munido de todo o conhecimento (um artista, um escritor?) —, superou-se em sua função e tornou-se o melhor coletor de marfim da Companhia; ao mesmo tempo, ao se moldar ao estilo de vida nativo, ao ponto de se tornar um cacique, entendeu que a condição humana primal é igualmente desesperadora. O horror vive dentro de nós. Ser humano é conviver com a desgraça, a infelicidade, a barbárie crônica, o horror, o horror.

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