Rick e Sam em Casablanca Rick e Sam, amigos em Casablanca, de 1942 – imagem: divulgação

Guerra, humanidade e racismo. A resistência secreta por trás de Casablanca, lançado há 80 anos e considerado o maior romance da história do cinema

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Considerado o maior romance da história do cinema, Casablanca tem uma história secreta que envolve pressão política, luta pela humanidade e pela igualdade racial

Casablanca, romance que estreou nos cinemas em novembro de 1942, dirigido por Michael Curtiz, é um filme obrigatório não só para cinéfilos, mas para qualquer pessoa que se interesse por cinema.

O filme, cujo roteiro chega próximo à perfeição, conta a história de um triângulo amoroso que envolve Rick (Humphrey Bogard), Ilza (Ingrid Bergman) e Victor (Paul Henreid) na capital do Marrocos, Casablanca, então sob controle da França. A cidade servia de ponto de partida para refugiados da Segunda Guerra Mundial, se tornando uma babel onde conviviam oficiais nazistas e cidadãos americanos, franceses e europeus de diversas nacionalidades, fugindo dos massacres provocados pelo conflito.
À primeira “assistida” (uma vez que é comum vermos Casablanda diversas vezes), somos cooptados pela história de amor dolorosamente mal resolvida entre os três protagonistas. A trama é intensa e, seu desfecho, apaixonante e surpreendente.

Nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial, o americano Rick era um influente cidadão de Casablanca, dono de um club noturno frequentado pela nata da cidade (o que incluía oficiais nazistas, já que a França já havia sido ocupada). É lá que ele reencontra o grande amor que teve em sua vida, Ilsa, que retorna casada com um revolucionário da resistência tcheca Victor Laszlo. Inicialmente frio e pragmático, Rick é obrigado a enfrentar dilemas morais que mudam sua vida.

A história profunda de Casablanca, no entanto, revela uma trama ainda mais complexa com raízes na vida “real”. Uma viagem de refugiados, a indignação de Hollywood com a apatia americana perante o nazismo e o racismo vigente nos Estados Unidos.

 

 

A viagem que inspirou o roteiro

Aos 27 anos, Murray Burnett havia acabado de se graduar e era um aspirante a roteirista. Em 1938, viajou para Viena e testemunhou a febre anti-semita que tomava conta do país, após a anexação do à Alemanha Nazista. Os judeus que tinham capacidade física e financeira tinham de fugir através de uma complexa rota de fuga, uma das únicas possíveis por entre o território de batalha. Ir até Marselha (muitas vezes a pé), tomar um barco clandestino até Marrocos, depois voltar à Europa em Lisboa, e então atravessar o Oceano Atlântico rumo ao continente americano.

Burnett testemunhou tudo isso, e de muito perto. Ajudou seus parentes judeus a chegar até uma propriedade que sua família tinha ao sul de Nice, região francesa que se tornou centro da resistência contra a ocupação nazista. De lá, visitou Casablanca e conheceu o clube que inspirou o principal cenário do filme. Nele, um pianista negro tocava standards do jazz americano para uma plateia tão diversa, quanto tensa.
Ao retornar aos Estados Unidos em 1940 se uniu a Joan Alison e escreveu uma peça de teatro baseada em sua viagem, chamada Everybody Comes to Rick’s, em três atos, jamais levada aos palcos.

A Warner usou o filme como pressão contra o governo americano

Nos primeiros anos da Segunda Guerra, uma pesquisa foi feita entre a população dos Estados Unidos sobre o papel que seu país deveria exercer perante o conflito. O resultado deixou Jack e Harry Warner, dois dos quatro irmãos fundadores da Warner Brothers, horrorizados: 90% da população achava que o país deveria se manter neutro no conflito, com o objetivo de manter a guerra do lado de lá do Atlântico. A família Warner pensava o oposto, entendendo que isso era uma traição aos valores humanitários de seu país, e uma chancela ao fascismo. A dupla resolveu agir, patrocinando então filmes que denunciavam o que acontecia na Europa. Um dos filmes produzidos foi “Confessions of a Nazy Spy”. O outro, Casablanca.

O roteiro de teatro de Everybody Comes to Rick’s foi encontrado na pilha de envios do produtor da Warner, Hal Willis, apenas cinco dias após o ataque a Pearl Harbor, provavelmente em um momento em, aturdido pela ofensiva japonesa, Willis procurava algum material contundente para produzir. Comprou os direitos por 20 mil dólares e entregou a Julius e Michael Epstein para adaptarem ao cinema. Foram os Epstein que incluíram na história o triângulo amoroso na trama, mantendo a denúncia ao flagelo do povo europeu ainda em evidência, porém, em segundo plano. Digno que se note: Murrat Burnett e Joe Allison recorreram à justiça para terem os créditos de roteiristas do filme, sem sucesso.

Cena do filme Casablanca

Imagem: divulgação

Jack e Harry Warner foram intimados a depor no senado americano por Gerald Nye, que os acusava de fazer propaganda pró-guerra. Na audiência, Harry respondeu: “Estou pronto a entregar minha vida e todos os meus recursos pessoais para defender o povo americano da ameaça nazista.

Em Casablanca, Rick é um empresário cínico, que prefere ganhar dinheiro se equilbrando sobre o muro. Essa pretensa “isenção” é um dos pontos centrais do roteiro, condenando, assim, o que pensava a imensa maioria dos americanos.

Para combater o fascismo, é preciso sufocar o racismo.

O inferno vivido durante a Segunda Guerra colocou em cheque uma enorme cesta de preconceitos cultivados pelos povos do planeta. Ingleses e franceses, rivais históricos cheios de ranço mútuo, lutaram lado a lado. Judeus, islâmicos, católicos, enfim, ninguém escapava da crueldade imperialista alemã, o que deu ao conflito tons de “o mundo contra o nazismo”.

Para transmitir também esta mensagem, a Warner foi cuidadosa: setenta e cinco atores que trabalharam no filme eram refugiados. Dos quatorze principais, creditados na película, apenas três haviam nascido nos Estados Unidos: Humphrey Bogard, Dooley Wilson e Joy Page. Ingrid Bergman era sueca, Paul Henreid astro-húngaro. Peter Lorne, um imigrante da Eslováquia. E Conrad Veidt, que interpretou o vilão nazista Major Strasser, era um desertor alemão que fugiu do país quando o Terceiro Reich assumiu o poder, em 1933.

Quando o filme foi lançado, os Estados Unidos estavam mergulhados em um profundo comportamento segregacionista. Na opinião dos produtores do filme, não havia como embutir no povo um sentimento de luta contra a ameaça nazista enquanto este mesmo povo impunha hierarquias raciais dentro do próprio país.
Inspirado no que Burnett testemunhou durante a viagem que deu origem ao roteiro de Casablanca, os irmãos Epstein deram uma atenção especial à amizade entre Rick e o pianista negro de jazz Sam (interpretado por Dooley Wilson). A relação entre os dois passa longe de um mero contrato de trabalho. Ambos são amigos, dividem drinks, sentimentos e preocupações em cenas do filme. Rick e Sam eram, apenas e fundamentalmente, dois cidadãos originais dos Estados Unidos.

Esta é a história por trás de um dos mais impactantes romances da história do cinema. E de como um filme pode ser muito mais do que entretenimento.

 

 

 

 

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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