28ª edição do evento trouxe mais de 40 shows espalhados em três dias, com público numeroso e diverso
“A maior festa da música independente do Brasil” é o slogan do Goiânia Noise Festival, repetido diversas vezes pelos mestres de cerimônia dos dois palcos da sua 28ª edição. Com mais de 40 shows espalhados em três dias, e com um público numeroso e diverso, o evento cumpre o que promete.
A edição deste ano aconteceu de 12 a 14 de abril no Centro Cultural Oscar Niemeyer, um belo espaço na região sudoeste da capital do Goiás. O palco principal era dentro do Palácio da Música, um anfiteatro amplo e climatizado, enquanto a Esplanada da Cultura, uma praça de 26 mil metros quadrados, recebia um segundo palco, uma feira que tinha de quadrinhos independentes a (duas!) sex shops, estandes de alimentos e bebidas, e até um terceiro palco, mais modesto, nos quais bandas iniciantes faziam apresentações mais curtas.
Nessa programação ampla, os shows aconteciam sem intervalo: terminou a apresentação em um palco? A do outro já está começando. Não quer pegar aquele show? Tudo bem, festival tem mesmo essa lógica meio self-service, e não faltava coisa pra fazer ou gente pra trocar ideia. Cobrir tudo exigiria um espaço editorial que iria detonar sua barra de rolagem, então vamos aos destaques.
Dia 12, sexta-feira
Quem encerrou os trabalhos do primeiro dia foi a Nação Zumbi. Seu show trouxe a banda em um novo momento, no qual restam apenas três integrantes da formação original. Mas com o guitarrista Neilton (também da Devotos) substituindo Lúcio Maia, as músicas ganharam cara nova. Neilton não tem a técnica nem a inventividade de Maia, mas tem um punch que, combinado com a porradaria precisa de Tom Rocha na bateria, confere mais peso às canções da Nação. O repertório trouxe alguns clássicos, claro, mas não todos — sem jogar pra torcida, o grupo enfileirou várias faixas menos conhecidas, como que mostrando que não quer viver só do passado mais óbvio.
Dessa mesma época, o lineup ainda traria os Devotos (PE), em uma apresentação furiosa, com Neilton cumprindo dupla jornada e a banda ecoando seu hardcore alicerçado em embolada postura rapper. Teve, ainda, a moedeira de riffs stoner dos Mechanics (cujo vocalista, Márcio Jr., foi um dos fundadores do festival), e a veteraníssima Dorsal Atlântica, instituição do metal brasileiro que tocou no sábado, e está na ativa desde 1981. Carlos “Vândalo” Lopes, vocalista e guitarrista da Dorsal, é um show à parte: tirando um peso brutal de sua diminuta guitarra (apelidada de “Flying Vzinha” por alguém na plateia), ele executava verdadeiras joias do trash brasileiro, entremeadas por discursos que desafiam a lógica dualista desses tempos de torcidas ideológicas. “Pau no cu de Deus e pau no cu de Satã, porque pra mim é tudo igual”, disse, em resposta a um fã que ficava gritando “salve, Satã!”.
Antes da Nação, a Francisco, el Hombre fez a sua micareta de palavras de ordem positiva. A banda ensaiou uma pan-latinidade promissora na esteira do disco Soltasbruxa (2016), mas se perdeu em lançamentos posteriores medíocres e na própria fama que sua representatividade festiva lhe trouxe. O show é cheio de interações do tipo “arrasta pra lá, arrastra pra cá”, “estátua”, “pula”, e afins, e as versões rearranjadas dos hits mais pioram que melhoram os registros originais. A receita era clara: muita percussão, “sai do chão”, repetição de bordões e dancinha coreografada.
Dia 13, sábado
No segundo dia, o festival trouxe grandes surpresas. A primeira delas foi Los Clandestinos Trio (SP), que vai fundo nas raízes do rock’n’roll e combina composições próprias e covers remodelados de clássicos como Brand New Cadillac (Vince Taylor) e Wipe Out (The Surfaris). Com uma performance que merece o adjetivo “selvagem”, a banda mostrou que respeito ao passado não implica em repetições de clichês, e botou headbangers, indies, fãs de pop e gente desaflliada de tribos para dançar.
Outra surpresa maravilhante foi Johnny Suxxx ‘n’ The Fucking Boys, também de Goiânia. Assumidamente, a banda recicla todos os clichês do glam e do hard rock, e mostra que o Do Me Bad Things fez escola. Peraí, você não sabe quem foi Do Me Bad Things? Tudo bem, talvez nem Johnny e sua banda saibam. Mas a combinação de atitude queer, deboche, riffs dançantes, estampas de oncinha (!), maquiagem, sensualidade body positive, ecos grunge, refrões de arena e (ufa!) muita cara de pau garantiram um festerê lindão, e mostraram que, em eras e países diferentes, tem gente que sabe valorizar o caráter putanhento e divertido do rock.
Sobre a brasiliense Ypu, é inapropriado que este repórter faça a resenha — afinal, ele é também o produtor executivo do primeiro álbum da banda, paranoar (2023). Por isso, tomo emprestadas as palavras que o jornalista Bruno Capelas escreveu em sua cobertura para o site Scream & Yell:
“Desde os primeiros segundos, o carisma de Ayla [Gresta] toma conta do espaço. Não é só isso: ciente de seu potencial, a vocalista poderia usar seu charme de uma forma mercantilista, mas ela evita esse caminho fácil para construir uma relação honesta com seu público, convidando-o a uma jornada sensível, íntima e sexy muito interessante. Enquanto isso, a bem-estruturada banda liderada por Gustavo [Halfeld, guitarrista] lhe dá cama e camadas sonoras para deitar e rolar, seja cantando ou tocando trompete. Se no começo do show havia poucos presentes no Palácio da Música, não chega a ser uma surpresa virar a cabeça para trás e perceber que o local está cheio, agradando e muito à eclética plateia do Noise”.
Terno Rei e Letrux fecharam a programação do Palácio da Música, enquanto cabia à Carne Doce fazer o mesmo na Esplanada. Os três nomes têm fãs que mais se assemelham a um séquito, tamanha à devoção que demonstram, num fenômeno que poderia ser definido como “idolatria de nicho”. Mas falemos primeiro da banda de Letícia Novaes, que sabe com quem fala, e sabe o que fala. Questões femininas são apresentadas menos com palavras de ordem e mais com uma poética tão pessoal quanto assimilável. Ainda que a maior parte dos refrões mais grudentos esteja no álbum de estreia, Letrux em Noite de Climão (2017), sua discografia é sólida, coerente e vem mostrando envelhecer cada vez melhor. Além disso, seu show é realmente uma performance bem pensada e cuidada, mas nunca rígida a ponto de parecer apenas coreografia. Um showzaço, que ainda contou com a participação de Ayla Gresta em Que Estrago, num dueto provocante e inesquecível.
Já Terno Rei e Carne Doce são bandas com grande conexão com seu público, mas que parecem incapazes de ir além de suas bolhas. O quarteto paulista tem uma discografia cuja produção fonográfica é assombrosa, mas ver suas canções enfileiradas em um show mais longo permite constatar que lhe faltam refrões, punch e ganchos melódicos marcantes, deixando a banda restrita a um ensimesmamento de classe média e a uma estrutura pop um pouco preguiçosa.
Carne Doce tem um trunfo grande na presença e na voz de Salma Jô, mas suas canções carecem de concisão e variações. Seu discurso vira uma lírica impenetrável para quem não é “convertido”, e as músicas se estendem em repetições prolongadas. Jogando em casa, a banda tinha ali um grupo considerável de seguidores, mas também não conseguia se conectar com quem não fizesse parte do fã clube.
Dia 14, domingo
Quem fechou a última noite (e o festival) foram os Boogarins. Heróis locais, pegaram o menor público (três mil pessoas, contra quatro mil da sexta, e 3,5 mil do sábado), mesmo sendo o único dia gratuito. Celebrando sua própria trajetória sem jamais cair na armadilha de pagarem pau para si mesmos, os goianos entregaram um show impressionante, dosando sua psicodelia pesada com o espírito cancioneiro influenciado tanto pelos neopsicodélicos norte-americanos como pelos psicodélicos velhos de guerra do Brasil (e uma dose considerável de Clube da Esquina).
Antes deles, o Rancore fez um show cheio de pique, com o vocalista Teco Martins mostrando a performance mais descompassada em relação ao som que saía das caixas de todo o festival. Com um gestual de folguedos místicos animistas e as longas madeixas balançando, parecia mais estar em um show de MPB cirandeira do que à frente de uma das mais queridas bandas da leva emocore de primeira hora. Havia fãs emocionados, felizes por vê-los pela primeira vez em solo goiano, mas fora desse círculo, o grupo não conseguiu cativar muita gente.
Aliás, o punk e suas derivações não estavam tão presentes quanto outros estilos. Além do Rancore, deram as caras a paulista The Mönic no dia 12 e a brasiliense Galinha Preta, no dia 14. O quarteto feminino de SP exibe a veia pop-punk com orgulho, e o carisma e a vocação festivaleira compensam a ligeireza das canções. O mesmo não pode ser dito do Galinha Preta. Seu som é um punk hardcore furioso, mas a insistência do vocalista Frango Kaos em fazer stand-up comedy de birosca torna a coisa caricata, estancada e sem graça. Ficasse apenas na selvageria de dois acordes com letras absurdas, teria sido divertido.
Ainda bem que, antes deles, a Blastfemme (RJ) havia botado tudo para quebrar, num dos melhores shows deste Goiânia Noise. A banda é coesa e entrega doses exatas de glam rock e disco music no seu rock’n’roll alto e sem firulas. Ninguém ali era virtuose, e nem precisava: são músicos que sabem fazer muito com pouco, e que têm em Dani Vallejo uma das melhores frontwomen do rock brasileiro. Se puder, assista.
Outro grande show que aconteceu no palco da Esplanada no domingo foi o do quarteto Violins. Nome essencial da cena goiana, trouxe faixas novíssimas e escolhas interessantes do seu repertório passado num show que agradou a fãs e neófitos, graças ao entrosamento impecável das diferenças e semelhanças dos seus quatro integrantes.
Essa costura de diferentes gerações trazidas pelo lineup do Noise permite várias reflexões. Uma delas é esse contentamento com um circuito de autossatisfação, em que falar com a própria bolha parece ser suficiente. Uma coisa é ver bandas de metal extremo, como Krisiun e Nervosa, se fecharem em seu próprio universo: é um gênero mais insular em essência, tanto que no festival travaram diálogo apenas com os headbangers. Outra coisa, bem diferente, é ver artistas que têm ambições pop, como Terno Rei e Francisco, El Hombre, acomodarem-se num lugar que é tão confortável quanto passageiro, estagnando seu próprio crescimento ao insistir apenas em pregar para convertidos.
Outro ponto que vale destacar é como um festival consegue tamanha longevidade sem se desviar de sua proposta original, e ao mesmo tempo, sem ter devoção radical a ela. O Goiânia Noise é consistente e coerente, mas nem por isso cabeça dura. Tendo realizado edições de diversos tamanhos, com maior ou menor sucesso comercial, acumula uma história de grandes resultados e um bom tanto de prejuízos financeiros. Mas o saldo artístico, na enorme maioria das vezes, é muito positivo.
Mais ainda, o saldo humanitário é ainda maior. Facilitando a aproximação entre pessoas e estilos diferentes, fomentando a cultura local e também o diálogo com o resto do país, o evento se mostra inclusivo, fomentador de artistas e formador de cultura sem precisar levantar bandeiras que não a da música. Há festivais que podem ter até um discurso mais rebuscado, mas na prática, incorrem no mesmo mal de falar apenas com a bolha. Já o Noise acha mais bacana deixar que a música fale o que ela tiver que falar, desde que em alto e bom som.