music non stop

Conheça o Girls Rock Camp, iniciativa que empodera meninas através da música

Girls Rock Camp

Foto: Divulgação

Jota Wagner conversa com Flavia Biggs, idealizadora do Girls Rock Camp Brasil

Quando Flavia Biggs colou em Portland, nos Estados Unidos, para tocar em uma turnê da banda Dominatrix, em 2003, ficou de queixo caído. Conheceu um acampamento de férias onde meninas aprendiam a se expressar e compreender sua potência através da música. Os “Girls Rock Camp“, como são conhecidos no mundo todo, são uma das muitas iniciativas bacanérrimas do movimento feminista Riot Grrrls, que começou no mundo dos fanzines da cena punk/hardcore estadunidense, e logo se transformou em um porto para garotas que queriam muito mais do que assistir a músicos homens. Garotas que queriam, como diz a própria Biggs nesta entrevista, “estar na frente da cena”.

Flavia Biggs. Foto: Divulgação

Dez anos depois, Flavia trazia a Sorocaba, no interior de São Paulo, a primeira edição brasileira do Girls Rock Camp, evento de uma semana que reúne, durante as férias, quase cem garotas de todos cantos do país para aprender um instrumento, compor uma música e apresentá-la em formato de banda. A atividade traz consigo conceitos como cooperação, valorização e empoderamento feminino.

A guitarrista, que toca há quase 30 anos com sua banda The Biggs (que abriu o show da Bikini Kill em São Paulo no ano passado), tirou um tempo no meio do Camp deste ano para conversar com o Music Non Stop sobre o projeto. Vem com a gente!

Jota Wagner: Quanto tempo dura a programação do Camp?

Flavia Biggs: As crianças ficam uma semana, de segunda à sexta, ensaiando com a banda e aprendendo a tocar um instrumento, e fazem a apresentação final da música composta por elas no sábado, para a comunidade, a família e todos que forem prestigiar a gente…

Foto: Divulgação

Essa ideia veio de um projeto maior, internacional…

Sim, chama “Girls Rock Movement“, um movimento surgido em Portland (EUA). Conheci o projeto em 2003, quando fui fazer turnê com a banda Dominatrix nos Estados Unidos, e me apaixonei. Fui voluntária, me envolvi, comecei a trabalhar lá e e pensei: “preciso voltar ao Brasil e fazer esse projeto lá”. Quando voltei, comecei a fazer uma oficina de guitarra para meninas, o instrumento que eu toco. Chegou um momento e tinha duas outras pessoas fazendo oficinas também. Pensei “é a hora de fazer no Brasil”. O primeiro a gente fez em 2013.

E há uma comunicação ou troca de experiências entre os camps de outros países?

Existe o Girls Rock Camp Alliance, uma aliança dos acampamentos ao redor do mundo. Fiz parte do conselho e agora represento a América Latina lá. Sempre tentamos puxar questões políticas, porque é um projeto político também, além de musical. Porque tem propostas de empoderamento feminista através de vivências musicais. O camp rola em vários lugares: Japão, Inglaterra, Canadá. Na América Latina, temos no Peru, Argentina, Paraguai e, no Brasil, também em Porto Alegre e Curitiba.

Esse rolê veio da cultura Riot Grrrl.

Exatamente. As pessoas que começaram a fazer essa atividade são as pessoas envolvidas com o Riot, remanescentes desse movimento feminista dos anos 90. Quando estive lá, as pessoas do projeto estavam fazendo turnê com a gente. Eram de bandas que a gente tinha influência, como a Sleater-Kinney… Todas davam oficinas lá. A oficina vocal era com a Beth Ditto, do Gossip. O Girls Rock Camp é um desdobramento da cena Riot Grrrl dos anos 90.

Foto: Divulgação

É muito mais do que ensinar a tocar. Qual o propósito dessa vivência na cabeça das meninas?

É tocar um instrumento para poder se expressar através da música, uma coisa muito poderosa. Especialmente quando você fala de questões de gênero, especialmente no rock’n’roll. Por experiência própria, sinto que minha adolescência e minha transformação enquanto adulta e cidadã é totalmente diferente por eu ter tido a oportunidade de ter uma banda. A proposta do projeto é exatamente essa: através da vivência musical, criar empoderamento no sentindo de poder fazer, de superar desafios, de se organizar, colaborar em processos criativos e colaborativos.

A proposta é dizer para as meninas que elas podem tocar e comprovar isso através da música. Todas somos remanscentes do punk, da cultura do “faça você mesma”. Conseguir se expressar, não necessariamente tendo aquela superprática musical de teoria e tudo o mais. É saber que você pode mandar sua ideia através de poucos acordes. As pessoas ficam impressionadas quando veem que as crianças aprendem a tocar em uma semana. A questão é exatamente essa, a metodologia do aprender fazendo, de conseguir se expressar mais pela necessidade e pela urgência do que pela técnica.

O que move o punk, né? O desejo agressivo.

Exatamente. Aí vem a proposta do empoderamento feminista. É um projeto que questiona os modelos impostos. Sabemos que o rock’n’roll e a música, de uma forma geral, ainda são espaços machistas e patriarcais, excludentes em questões de oportunidade e visibilidade. A gente caminha por fora desses modelos, criando uma geração de meninas que não precisam ficar necessariamente na música mas, a partir dessa experiência, se desenvolvem enquanto cidadãs e se potencializam para se desenvolver em qualquer lugar, como empresárias, como donas de casa, como qualquer outra coisa que escolham fazer na vida delas.

Imagino que a conexão que se forma entre as meninas durante o Camp é fortíssimo. Vocês as acompanham depois?

Fico até emocionada em falar. Muitas que estavam com a gente em 2013 hoje são voluntárias. Foram “picadas” pelo destino de ficar, de se apaixonar pelo projeto e perceber o quão poderoso foi poder participar da atividade. De ficar com vontade de fazer parte dessa comunidade, dessa rede, de poder estar junto, passar essa experiência para outras meninas, fazer com que mais meninas tenham a oportunidade de participar. Muitas voltam novamente, fazem todos os instrumentos, trazem as famílias… A gente começou com 60 campistas em 2013, hoje estamos com 90.

Houve casos de meninas que seguiram na música?

Várias, que têm banda e tiveram o primeiro contato aqui, e então se desenvolveram. Tem outras que estão no teatro, no esporte… Tem umas jogadores de volei, fiquei sabendo estes dias, que estão jogando profissionalmente. E a movimentação também acontece na comunidade, sabe? Famílias que se conectam e já sabem que no ano seguinte vão armar essas férias em Sorocaba. Uma rede poderosa de transformação social, conexões e amor pela música.

Como se viabiliza isso em um mundo onde tudo custa uma grana?

É luta. Mas a gente é punk, né? No sentido de fazer acontecer com ou sem financiamento. Se a gente não tem como comprar as coisas, aciona a padaria da esquina, pedimos ajuda com pão e assim por diante. Mas a gente não tem financiamento recorrente. Cada ano é um corre diferente. O grosso da nossa verba vem das campistas. As famílias pagam pela atividade. Mas não todas. Parte é bolsista. A gente faz questão de ter para as meninas que estudam na rede pública, de preferência  com recorte de classe e raça. O Camp é todo baseado no trabalho voluntário. Fazemos isso anos a fio, na tentativa de fazer cada vez melhor.

Foto: Divulgação

Onde rolam os Camps? Geralmente em escolas?

Eu sou professora. Sou socióloga e dou aula de sociologia. Então eu tenho um acesso “mara” com as escolas aqui a cidade. Conheço os diretores e fico ali: “vamos fazer um Camp nessa escola?”. No total, somos em 200 pessoas. Então esse formato de salas, pátio e quadra é o único que consegue comportar a gente, que precisa de bastante espaço. Fizemos duas vezes também no sindicato dos metalúrgicos, que é um espaço maravilhoso.

O que você percebe nos olhos das meninas ao final do camp?

Isso é o que faz com que a gente continue, porque o processo é mágico. Você as vê se reconhecendo enquanto potência. É lindo. E também tem a questão de estar junto com outras mulheres construindo um espaço, de poder confiar umas nas outras. Porque infelizmente a sociedade sempre estimulou a concorrência entre as mulheres. Estar em um espaço em que todo mundo está colaborando para fazer acontecer é muito poderoso. O Camp é formado por mulheres, cis e trans. Todas pessoas oprimidas pelo gênero, pelo patriarcado e pela heteronormatividade. Então há esse acolhimento, esse recorte de vida e de possibilidade de um mundo mais inclusivo e mais diverso.

Sair da versão mobile