
Formosa Hi-Fi reinventa o listening bar em São Paulo
Instalado em uma galeria subterrânea esquecida há 50 anos, projeto de Facundo Guerra oferece experiência sonora imersiva com “bolhas de estéreo” e mais de seis mil discos
A cidade de São Paulo acaba de ter mais um espaço redescoberto. O Formosa Hi-Fi, um listening bar com estrutura de som nunca antes vista — pelo menos por Facundo Guerra, que visitou 150 bares com proposta similar ao redor do mundo —, impressiona tanto por seu cuidado acústico como pela bagagem histórica que o local traz consigo, lugar-comum dos projetos de bares “desenterrados” pelo empresário.

Com capacidade para 180 pessoas, o mais novo listening bar da cidade abriu no último 31 de julho, mas o espaço que ocupa remonta a 1938, quando o então prefeito Prestes Maia entregou uma passagem subterrânea construída para facilitar a vida de quem transitava do então bombado Shopping Light para os lados do Theatro Municipal, no Vale do Anhangabaú. O projeto contou com o pitaco de ninguém menos do que Mário de Andrade, que bolou um espaço para servir de restaurante fino dedicado à gastronomia brasileira. O restaurante nunca saiu do papel, mas o local onde seria instalado abriga, agora, o novo empreendimento de Guerra.
Apelidado pelos paulistanos de “passagem Xavier”, pois partia da praça Xavier de Toledo, o espaço foi testemunha da desintegração social do centro antigo, visto por décadas muito mais como um “problema” do que como uma das áreas mais arquitetonicamente ricas do mundo. Natimorto, o restaurante imaginado por Mário de Andrade deu lugar, em 1940, à Escola Municipal de Bailado, dedicada ao balé clássico. Anos mais tarde, a escola deu lugar ao Restaurante da Liga das Senhoras Católicas, que servia refeições a preços acessíveis para mulheres que trabalhavam no centrão.
Assim como seu entorno, a passagem Xavier se tornou inadministrável por prefeituras focadas em cuidar de avenidas gigantes, minhocões e arranha-céus a partir da década de 60. Virou casa de baratas, até que foi definitivamente fechada em 1975, tornando-se um dos mais bem-guardados segredos da cidade. Mas a coisa mudou quando um grupo de teatro conseguiu promover uma apresentação, literalmente, underground.

O Formosa Hi-Fi visto de dentro. Foto: Dandara Bettino/Divulgação
Facundo Guerra, idealizador do projeto, conversou conosco sobre o novo “lugar para ir” em São Paulo.
Jota Wagner: Como você redescobriu a Galeria Formosa?
Facundo Guerra: Eu assisti a uma peça do Teatro da Vertigem há uns 15 anos, chamada A Última Palavra É A Penúltima. Nessa época, a passagem Xavier já estava fechada. Nós apoiávamos muito o teatro naquela época e, ao final, fui cumprimentar os atores e a direção. O camarim dos atores era na Galeria Formosa, eu nem sabia de sua existência. Fiquei deslumbrado. Puxei, então, uma reunião com o Secretário de Cultura de São Paulo. Falei com todos os secretários desde então, tentando reabrir a passagem.
O fato do Vale do Anhangabaú estar agora sendo administrado por uma concessionária, a WTorre, facilitou o processo de viabilização?
Não. Quando a concessão chegou, eu participava de uma mesa redonda sobre o centro da cidade no Teatro Itália. O CEO da empresa havia acabado de pegar a concessão. Quando nos falamos após o final da mesa, perguntei: “o que vocês estão fazendo ali na Galeria Formosa?”. Os caras nem sabiam que a galeria era ali. Estava sendo usada como ponto de banheiro químico para os festivais que aconteciam no vale. Isso me fez tentar um projeto lá para ocupar aquele espaço.

O Formosa Hi-Fi visto de dentro. Foto: Dandara Bettino/Divulgação
O lugar é que te fez pensar em entrar nessa onda do listening bar?
Não foi uma onda, porque eu já tinha o projeto de um espaço para audição com o mesmo formato, um clube de membros, lá em 2008. Já tinha tudo desenhado, contratado… Ia ser em uma antiga concessionária de veículos na Av. Rebouças. Tinha uma caixa acústica para audição de música mecânica em vinil, cassete e fita de rolo. Os membros ficariam dentro desse espaço, relativamente pequeno, e toda a estrutura externa envolvia um bar e um restaurante. Foi formatado como uma sala de orquestra. Um espaço de audição, com acústica, e uma arquitetura externa.
Essa caixa era formada por painéis acústicos, porque você dificilmente consegue consertar a acústica de um lugar com outra arquitetura. Então surgiu a ideia de montar uma sala dentro de um espaço, assim como é a Sala São Paulo ou qualquer outra filarmônica do mundo. O prédio da concessionária original foi vendido, no momento da assinatura do contrato. O projeto ficou engavetado e, quando apareceu a Formosa, pensei: “dá pra fazer esse mesmo projeto lá”. Como a galeria é tombada por três órgãos, a gente não podia botar um só prego na parede. Então, de qualquer maneira teríamos de levantar quatro paredes lá dentro. Foi uma coincidência com o projeto que eu já havia montado em 2008.
Agora, o listening bar é uma espécie de febre. Por que tem tanta gente interessada em ouvir discos de uma forma mais organizada?
Não sei se é uma febre. Tem dois tipos de listening bar. Um é discursivo. “Vou ter um bar e vou colocar dois toca discos, e tocar música.” Isso já acontece na Argentina, por exemplo, com bares que já estão na lista dos 50 Best. São bares que têm música alta. No Japão existem os Jazz Kissa desde a década de 20. Os primeiros bares japoneses eram para escutar música clássica. Ali, você não podia nem falar. Os de jazz aparecem a partir da década de 50.
O listening bar é uma adaptação disso. Eu visitei 150 deles, no mundo todo. São bares muito pequenos, sem um tratamento acústico, mas um bom gosto na curadoria, com discos de vinil, caixas e amplificadores vintage. Mas não são Hi-Fi, que é uma filosofia de audio. Para chegar nela, você primeiro precisa tratar acusticamente o ambiente. Depois, você vai para um sistema de som. Depois a fonte de input, desde um streaming sem perda, como o Tidal e a Apple Music, até boas prensagens de discos de vinil.
O Formosa tem “bolhas de stereo” sobre as mesas. Isso já havia sido feito em algum outro lugar?
Não. Eu nunca vi. Se já foi feito em algum lugar, eu desconheço. Não vi uma solução assim implementada em nenhum dos 150 bares que eu visitei. Como a Formosa é relativamente grande, com uma distribuição mais vertical, se a gente colocasse um PA, um lado do bar ia ficar com som mono. Um lado do salão ouvindo o “L” e outro o “R”. Não haveria um homogeneidade de som. Então, o que fizemos? Pegamos mais de 20 caixas de áudio e construímos bolhas de L/R distribuídas pelo salão inteiro. Uma verdadeira engenharia feita para o lugar.

Vocês juntaram seis mil discos para o Formosa. Saiu da coleção de quem?
Tudo da minha coleção. Levei todos os discos que tinha, em vinil e CD. Os outros sócios fizeram a mesma coisa. Juntandos coleções de todos, tínhamos quatro mil discos mais focados em música clássica, jazz, blues, bluegrass, dub, reggae, clássicos do rock… Álbuns que eu comprei porque queria ouvi-los. Sempre comprei discos pelo fetiche do objeto, para ouvir da primeira à última faixa.
Essa vai ser a pegada do rolê, ouvir álbuns inteiros?
Todo dia a gente ouve um álbum de ponta a ponta no começo da noite, e depois tem um seletor, que seleciona faixas e começa a criar, contar uma história a partir dali.
E essas pessoas a contam essa história a partir da coleção que existe ali…
Não precisa. Cada um pode tocar os seus discos também. Tem discos que você pode pegar para complementar o set que está fazendo naquela noite. Pode pegar qualquer disco nosso, sem aquela pressão pra “fazer pista de dança”.
“Fazer algo que está faltando na cidade” foi uma diretriz para você criar o Formosa?
Cara, como você tinha falado, existem muitos listening bars na cidade e eu acho todos muito legais. Eu tentei fazer algo que fosse muito especial, porque eu já sabia que estava chegando tarde no jogo. Para fazer algo assim, teria de ser bem foda.

O Formosa Hi-Fi visto de dentro. Foto: Dandara Bettino/Divulgação
O que definirá uma boa noite no Formosa?
A energia de um lugar é algo muito subjetivo, muito etéreo. Mas perceber que as pessoas estão se divertindo, celebrando em um dia especial na vida delas é muito bom.
É diferente da energia de uma casa noturna, como tantas que você teve…
Era muito mais potencializada. Pelo álcool, pelas drogas, pela música alta. Agora estamos vivendo uma energia um pouco mais…
Pura?
Menos densa. Não pura. Um nível menor, que condiz com a nossa idade, né?