Filha de Lincoln Olivetti e afilhada de Tim Maia, Mary Olivetti assume o posto de grande força feminina da produção musical
A produtora que cresceu dormindo ao lado do estúdio onde os maiores hits dos anos 80 foram criados encanta Rita Lee e Roberto de Carvalho com seu remix de Cor de Rosa Choque
Quando a tela da reunião online se abre para a entrevista, vemos Mary Olivetti serena em frente aos computadores e monitores de seu home studio. Tudo arrumado e organizado por ali enquanto ouvimos uma voz tranquila e constante. Ao seu lado, um balcão com duas fitas magnéticas brancas antigas. “Bela decoração para um estúdio”, penso.
“Estas fitas são músicas do meu pai, que vamos começar a trabalhar”, conta com a naturalidade de quem olha para um porta-retratos. Então me dou conta de que o que há dentro daquelas caixas brancas é bem mais belo do que seu aspecto estético.
Nos minutos iniciais da nossa conversa a primeira constatação já aguça nossas antenas: Mary é absurdamente bem resolvida com a questão “você é filha de quem?” que assola e pressiona tanta gente no meio artístico. Mais do que isso: a filha do superprodutor de grooves Lincoln Olivetti com a cantora e compositora Claudia Olivetti não se incomoda nem um pouco com a missão de seguir os passos (e agora o estilo musical) do pai genial.
Mais do que isso, assume o trono com a altivez e a tranquilidade de uma rainha da Inglaterra endossada, na cerimônia de coroação, por ninguém menos que Rita Lee, que favoritou seu remix, entre os 36 do box Rita Lee & Roberto – Classix Remix, série de três discos cujo primeiro volume chega às plataformas nesta sexta-feira (09).
Cor de Rosa Choque, a música indicada pela própria Rita à Mary, que a conhece desde criança, traz características quase espíritas do pai na produção. “Ela incorporou o pai e o transmitiu para o remix”, contou João Lee, produtor da coletânea, em entrevista ao Music Non Stop.
Mary, DJ carioca com larga experiência em house music (em especial a afrohouse, sua paixão), chamou a responsabilidade para si e subverteu o lugar comum do remixar. Escolheu quais elementos da original queria manter, chamou baterista, baixista, tecladista, guitarrista, gravou vocais extras, mixou tudo e entregou uma música “delicada, educada, chic…”, segundo João.
Próxima parada… Black Coco!
Ouvindo o resultado final, é impossível não imaginar o remix como um cartão de visita entregue de cima pra baixo. Mary começou a se dedicar com afinco à produção musical depois do nascimento das filhas. Não queria mais viajar de Norte a Sul do Brasil para tocar, como vinha fazendo. Foi estudar produção e então a pandemia acelerou o processo. Lançou remixes de responsa dentro da afrohouse, como a excelente Xangô, remix que fez para Fabio Santana, da dupla Nu Azeite, e lançada agora em 2021, ano que prometer ser um foguete espacial em sua carreira.
O próximo lançamento, depois do remix de Cor de Rosa Choque, seria um ambicioso projeto, não fosse a pilota Mary Olivetti e sua tranquilidade kung fu: o relançamento todo repaginado de Black Coco, primeiro sucesso de seu pai, gravado pela banda Painel de Controle, presença obrigatória em qualquer set de música brasileira atual, rare grooves, samba rock, funk, enfim… um clássico.
O single sai no final do semestre e está sendo preparado seguindo o padrão Olivetti. As pistas estão sendo regravadas, elementos adicionados, outros originais preservados. Tudo para trazer ao século 21 o groove indefectível da música lançada em 1978, com Lincoln como arranjador e regente. Já dizia a letra: black coco, now!
Dormindo “parede a parede” com o estúdio
Uma das características que mais encantam quando ouvimos Mary contar suas histórias – e que transmite uma elegante credibilidade – é justamente a clareza com que enxerga os elementos que a construíram desde sua infância. “Roberto, Tim Maia, Rita Lee… todo mundo almoçava em casa. Meu quarto dava parede com o estúdio, então eu via aquele movimento o tempo todo”, recorda a produtora.
Jovem, entrou para discotecagem e se tornou uma das mais ativas mulheres DJs dos anos 00. Perguntamos se via isso como um movimento comum de jovens de fugirem da sombra de pais artistas, mas ela não vê desse modo, mas como algo natural. “Quando comecei a tocar, havia poucas mulheres discotecando e por isso era meio que obrigatório colocar algumas meninas no line-up. Então, de certa forma, competíamos muito menos. Eu tinha festas todos os finais de semana”, conta.
Olhando para trás, é possível enxergar a estrada que trouxe a música de Mary até o ponto em que estamos. Parte de um ambiente absolutamente musical. Pais profissionais da música construíram um estúdio dentro de casa, permitindo que os filhos circulassem no meio dos artistas e testemunhassem os processos de gravação e mixagem. É como aprender um idioma se mudando para o país onde a língua é falada.
Homero e a house music
Quando as pernas pediam para caminhar, seguiu rumo às pistas de dança de um Rio de Janeiro ligado na música eletrônica e em inesquecíveis festas de house music. Ao groove criptografado no cérebro somou-se então a experiência de observar de lá da cabine de DJ os elementos que fazem as pessoas dançarem instintivamente. Horas e horas e horas de pista depois, quando as pernas se cansaram de caminhar pra lá e pra cá, foi a cadeira do estúdio quem abrigou o corpo a fim de apreciar o fazer música de uma forma mais cerebral, mas não menos apaixonado. Além de tudo, um retorno às origens, ao seio da família (outra família, agora) e à ancestralidade. É a Odisseia do Herói, de Homero, em versão dance music.
“Tem a Mary DJ, e a Mary produtora”, explica, “e também a Mary cantora, que vai fazer uma participação no novo álbum do Fábio Santana… e a Mary que cuida dos arquivos e acervos do meu pai também”.
Nada disso. Tem uma Mary só: a Olivetti.
Onde ouvir