Jota Wagner conversa com Antonio “Gutie” Gutierrez, idealizador do festival que ajudou a transformar o Carnaval recifense e a cena musical brasileira
No recente boom de festivais que aconteceu no Brasil depois da pandemia, foi preciso tempo (muito menos do que se imaginava) para a situação assentar e o público começar a definir suas prioridades. Entre os sobreviventes, duas classes distintas: os que tinham muito dinheiro e os que tinham muito conceito, construídos em décadas de bons serviços à música. Quase pronto para sua edição 2025, no meio do Carnaval recifense, o Festival Rec-Beat faz parte desta segunda turma.
Surgido no meio do movimento manguebeat, que nos lembra do quão Pernambuco é foda, nasceu como um rolê em um puteiro e evoluiu para um dos principais eventos do país, responsável por dar estrutura e grande público a artistas que anos depois estariam estourados no meio alternativo nacional, como BaianaSystem, Lenine, Gaby Amarantos, Liniker e muitos outros.
O Rec-Beat tem algumas regras de conduta que o fizeram cair feito flecha no coração do público: ser um evento de Carnaval, gratuito, estar sempre de olho nas culturas periféricas emergentes, abrir os braços para a música latino-americana e jamais cochilar na curadoria. É sobre tudo isso que Antonio Gutierrez, que todo mundo conhece pelo fofo apelido de Gutie, fala na entrevista que deu ao Music Non Stop, em meio à correria de finalização da edição que nos primeiros dias de março, no Cais da Alfandega. Se você quer compreender como são as entranhas do cenário de festivais brasileiros, é leitura obrigatória.
Até agora, o festival anunciou duas atrações da próxima edição, ambas de São Paulo, ambas do rap. A baiana Duquesa e os paulistanos do Maria Esmeralda, um coletivo formado pelos rimadores Cravinhos, Thalin, VCR Slim, iloveyouangelo e Pirlo. Novos artistas serão anunciados nos próximos dias. Fique atento ao Instagram do festival.
Jota Wagner: Foi o manguebeat que inspirou o Rec-Beat, ou o contrário?
Gutie: O Rec-Beat nascêu naquela efercência do início dos anos 90. Quando surgiu aquela cena [do manguebeat], tava todo mundo envolvido. Todo mundo era amigo, a gente frequentava os mesmos locais, e quando o Recife percebeu o que estava acontecendo, eu crei uma festa chamada Rec-Beat.
Ali na Rua da Moeda…
Não, não. Era em um lugar fechado. Um puteiro chamado Francis Ritz, onde iam marinheiros, em um bairro do Recife bem abandonado, não tinha a vida que tem hoje. Então a gente começou a fazer isso por quê? Como havia aquela cena acontecendo e não havia espaços para aquelas bandas, comecei a brincar com uma festa. Na época jornalista na Gazeta Mercantil, eu não era ainda um produtor, era pura diversão mesmo. Então fizemos a festa, começamos a colocar aquelas bandas e eu percebi que havia uma demanda por essa cena, que não tinha espaço no Carnaval. Comecei a fazer em formato festival em Olinda, um embrião do Rec-Beat, em um lugar chamado Centro do Spray, um centro cultural. Lá, as pessoas curtiram o Carnaval nas ladeiras durante o dia, e no final da tarde iam para o festival.
Um pouquinho antes de ir para Recife, eu levei, com a chancela do Rec-Beat, 12 bandas para tocar no Aeroanta, em São Paulo. Para mim, foi a edição número zero. Em Olinda, fizemos a terceira e a quarta edição, até que chegou um convite da Secretaria de Cultura e Esportes para levar o festival para o Bairro do Recife, porque eles queriam fomentar o Carnaval ali. Ali o festival começou a crescer, na Rua da Moeda e depois no Cais da Alfândega, onde ele está até hoje.
O que era uma tenda local foi se expandido para uma cena nacional e também internacional, principalmente latino-americana e africana, que a gente tem colocado na programação. Sempre com um olhar periférico. O Rec-Beat tem essa coisa de olhar para as periferias, não só daqui, mas também do país.
Um dos primeiros shows do BaianaSystem foi aqui. Do Àttooxxá também, da Xênia França, a cena da Bahia… Mas também temos as de São Paulo e do Rio.
Fazer um festival gratuito no meio do Carnaval depende de uma relação com o poder público. Como isso rola, no caso de vocês?
A gente tem essa parceria com a Fundação de Cultura desde sempre. É um apoio muito importante, mas que cobre o equivalente a uns 30% do custo do festival. O restante, a gente vai buscar na iniciativa privada, em parcerias institucionais e com organismos internacionais.
O que mudou em Recife desde quando você começou a fazer o Rec-Beat?
Em relação ao público, a gente percebe uma renovação muito grande. O público de 30 anos atrás hoje não sai mais de casa. A gente consegue ter uma curadoria muito atenta a novidades, tendências, muita coisa que atrai esse público, que também está atenta a novas cenas. Em relação à cena local, é evidente que não tem mais aquela pujança dos anos 90 e 2000. Mas Pernambuco, assim como a Bahia e o Pará, são estados que têm uma produção musical muito intensa, por tradição. Daria pra fazer uma programação só local.
Tivemos por exemplo o Manguebeat, que foi um acontecimento muito importante aqui. E o brega-funk, que veio da periferia e trouxe música eletrônica local. Fomos o primeiro palco a programar brega-funk, uma cena muito restrita na época. Recebemos muita crítica, pois tinha um estigma de ser uma cena violenta, mas na verdade não tem nada disso. Foi um dos shows mais lindos do festival.
Você tem uma medida para artistas locais e de fora na programação?
Isso não afeta nas escolhas. Lógico que somos um espaço que tenta trazer muita coisa da tradição, e muita novidade também. Mas não somos muito rígidos na questão de território.
O Rec-Beat surgiu como uma alternativa ou Carnaval — um antiCarnaval?
Não, ao contrário. No começo se usava muito essa abordagem que você falou: “é para quem não gosta de Carnaval”. Mas é o contrário. É para quem gosta de Carnaval e quer ampliar suas experiências, sem ser contra uma tradição. Hoje o Rec-Beat também é um evento tradicional do Carnaval.
Porque a gente percebeu uma das características do Carnaval de Pernambuco, assim como o de Salvador e Manaus, que é a diversidade, a pluralidade. Você vai para Olinda, nos blocos, e tem de tudo ali. Tentamos sintetizar essa diversidade. Então você tem músicos experimentais, rap, eletrônico, a tradição, tudo no mesmo palco, o que é a cara do Carnaval. A gente só muda o conceito de espaço e de como é apresentado o conteúdo artístico.
O que te moveu a fazer um festival?
Olha, eu gosto muito do que faço. Acho que a gente criou uma coisa importante pro público e pros artistas. Eu posso dizer que o Rec-Beat é minha fantasia de Carnaval. Tem que gente que faz um bloco, uma festa… Meu bloco é o Rec-Beat.
O que faz você decidir por um artista e colocar na programação?
O ano todo estou ouvindo. Também recebo muitos convites para participar de feiras e encontros nacionais e internacionais, graças ao pioneirismo do festival em ter música latino-americana. Começamos a nos falar. A Colômbia, por exemplo, é uma país que a gente programa quase todo ano. Eles têm uma cena incrível. O Bomba Estéreo tocou no Rec-Beat em 2009. Era um banda que estava começando. Depois foi o Puerto Candelária, Sistema Solar, Maite Hontelé… Temos uma porrada de banda da Colômbia que a gente acompanhada, somos bem pioneiros nessa questão, e isso me levou a me inserir no mercado internacional. Temos contato com a ibero-américa, com a África… Este ano estive em um festival na África e agora estou recebendo convites para outros países, porque o Rec-Beat tem essa capilaridade.
Ainda existe aquela muralha cultural que separa o Brasil do resto da América Latina?
Eu acho que não depende do idioma. Isso é subestimar o público. Quando você fala em barreiras, são mais de quem organiza os eventos do que do público. Se você oferece a oportunidade do público conhecer uma nova banda, é incrível a recepção. E o público latino-americano adora a música brasileira.
No último Hacktown, conversei com o colombiano DJ Pope, do Coletivo 574. Ele comentou que todas as quebradas latino-americanas são extremamente parecidas…
É porque é uma questão de atualidade. Um exemplo bem simples: tem o Lollapalooza, que acontece no Chile, Argentina e Brasil. Você não vê o intercâmbio de atrações chilenas, argentinas e brasileiras nessas etapas do festival. Por que não trazer cinco ou seis bandas desses países para o Brasil?
Seria um baita serviço prestado para a região…
Lógico. Aí você vai abrindo mercado. Eu não acredito nessa barreira de idioma. A gente ouve música inglesa, americana, mesmo sem entender inglês. E aí falamos que o espanhol é a barreira, ou o português. Eu posso dizer tranquilamente, pela experiência aqui. É incrível a percepção que o público brasileiro tem dessas bandas. É só você dar oportunidade. E o Brasil é gigante, tem centenas de festivais.
Essa barreira é mais imaginária. E tem um certo comodismo nisso, uma certa negligência. Tem uma coisa curiosa também. A música brasileira tinha bastante penetração nesses países latino-americanos quando havia distribuição física. Você pega Chico César, Marisa Monte, são artistas de antes dos anos 2000. Quando começou a mudar para o digital, reduziu um pouco. É uma dedução minha. Há uma limitação cronológica do que eles conhecem da música brasileira. Aí é onde entrariam os festivais e produtores, de ajudar as bandas a circularem pelos países.
Enquanto fazedor de festival, essa virada do físico para digital mudou alguma coisa?
Em relação à pesquisa, facilitou pra cacete. Hoje vejo bandas de qualquer lugar do mundo. Antes você dependia de publicações, revistas… Hoje você vê um line-up de festival na República Tcheca e pode checar aquilo tudo em pouco tempo. Em termos de custo, principalmente depois da pandemia, houve um boom muito grande. Cachê, logística e estrutura. Para nós, que fazemos um festival gratuito, está bem pesado.
Todo mundo estava querendo tirar o atraso…
Sim, mas a gente agora está vivendo uma acomodação. Só em Pernambuco já tivemos quatro festivais cancelados. Sobraram o Coquetel Molotov e o Rec-Beat, que já têm história, conceito. Não surgiram aproveitando uma onda de festivais. E o público não tem tanto recurso para curtir um monte de festivais. Faltava inovação, os line-ups são repetidos…
Quais são as conceções de que você não abre mão no Rec-Beat?
Aceitar indicações. A curadoria é sagrada. Ninguém mexe. Os acertos e erros são nossos. Mas é difícil de acontecer. A gente conseguiu tanto demarcar um território de independência que nem tem perigo. Nossa independência é sagrada.
Quais foram as melhores surpresas que você teve no festival, em toda a sua história?
Várias. O BaianaSystem fez um show quando estava lançando o primeiro álbum e ninguém conhecia. Foi bem marcante. A Gaby Amarantos também, quando estava começando. Ela mesma costuma dizer que o Rec-Beat foi um divisor de águas.
A gente lançou o Cordel do Povo Encantado, que nem era uma banda, mas um grupo de teatro. E eu convidei para fazer. Era um musical, na verdade. Sugeri para enxugarem o espetáculo teatral e deixar mais um musical para o festival. Isso gerou a banda. Lenine tocou aqui no começo, Seu Jorge… O primeiro grande show da Liniker foi no Rec-Beat. Eu vi um show dela num barzinho em São Paulo. Era só um violão e um sax.
Deve te dar um puta orgulho ver essa galera estourando e saber que você ajudou…
É legal, mas é bom ser modesto também. São artistas que, de uma forma ou de outra, aconteceriam. Foi legal ter tido o olhar de perceber logo que eles teriam potencial, mas seria meio arrogante atribuir que um palco, um festival determinou a carreira de um artista. A gente contribui. E a o artista também contribuiu para o festival, fazendo um puta show. Porque se o festival é bom, ele programa coisas boas. Se eu fizer uma programação negligente, em dois anos eu destruo todo o conceito que o Rec-Beat construiu em 30.