Choro Jazz Foto: Divulgação

Entre acordes e protestos: como foram os 15 anos do Festival Choro Jazz

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Com programação gratuita, evento celebrou a “boa música” brasileira enquanto defendeu suas raízes

“O povo gosta de boa música”, me responde Antonio Ivan Capucho, idealizador do festival cearense Choro Jazz, quando mostro a ele o tamanho da fila que se formava esperando por uma cadeira no anfiteatro do Centro Cultural Dragão do Mar, em Fortaleza, no dia 1º de dezembro (um domingo), para ter uma chance de ver gratuitamente Mimi Rocha Quarteto, O Trio e Roberto Menescal & Leila Pinheiro.

Choro Jazz

Roberto Menescal & Leila Pinheiro. Foto: Divulgação

Capucho é um cara sério, de pouco sorriso, cabeleira branca e uma certa onipresença simpática. Assistindo aos shows? Lá está ele. No camarim também, bem como na passagem de som. Nos três ou quatro restaurantes dedicados ao jantar do músicos e equipe… o cara estava em todos, como se multiplicasse em dez para seguir de olho em tudo o que acontece no festival que criou há 15 anos, e que naquele domingo ainda estava bem longe do fim. O Choro Jazz levou música cearense e brasileira a Belém, Ilha de Marajó, Cariri, passava por Fortaleza e ainda viajaria para cinco dias de shows na mágica Jericoacoara, no litoral.

“Sempre quis levar boa música a lugares onde a cultura chega com dificuldade”, me contou à beira da piscina do hotel onde todos estávamos hospedados, no dia anterior. E bota dificuldade nisso. Jeri, para quem não conhece, só é acessível através das dunas de areia em carros com tração 4×4. O perrengue trouxe uma das grandes belezas do festival. Uma vez que é tão difícil de chegar (cinco horas de carro desde Fortaleza), os músicos optam por ficar caminhando pelas ruas, tocando em rodas de choro nos botecos e assistindo aos outros shows.

Mas voltando a falar sobre o final de semana em Fortaleza, o tal Dragão do Mar é um estranho monstro com cabeça de planetário, patas vermelhas de pontes que agarram velhos galpões aduaneiros e um conjunto de cinemas, livrarias e cafés em seu estômago. Trazidos pelo vento constante da costa cearense, artistas em forma de jangadas flutuantes vão chegando para alimentar o povo que lota o complexo cultural. É bonito de ver. Chega a dar arrepios.

Choro Jazz

Foto: Divulgação

Para dar vida a um festival tão rico dedicado ao choro, jazz, bossa-nova e toda a tal “boa música” gratuitamente (um salve à Petrobras, madrinha e matrocinadora da coisa toda), Capucho se cerca de uma trupe de absolutos apaixonados, todos mergulhados no mar azul do cenário musical. Como Dalwton Moura, jornalista que transforma música em palavras através da poética da gentileza, Lorena Nunes, influente cantora da cidade que usa vento na percussão, mar nas letras e areia na garganta para gravar discos de primeira linha (ali fazendo a função de VJ, apresentando todos os shows), ou ainda Aline de Moraes, diretora executiva que tece a extensa programação como quem trabalha com palha de carnaúba.

Esse povo se dedica a fazer do Choro Jazz um rolê bem diferente do que estamos acostumados. Suas oficinas são tão sofisticadas, que alunos e frequentadores das primeiras edições, como o exímio violonista Samuel Rocha e o inebriante sanfonista Nonato Lima, se tornaram atrações principais da edição de 15 anos.

“Frequentava o festival como público e trazia minha sanfona. Nas oficinas, pedia para tocar um pouquinho. O pessoal me ouviu e foi me convidando para fazer shows”, conta Nonato, um cara que desconstrói tudo o que pensamos sobre as possibilidades do instrumento que chama de “orquestra nas mãos”. Se o bepop tivesse sido criado no Ceará, Nonato Lima seria nosso Dizzy Gillespie.

Choro Jazz

Nonato Lima. Foto: Divulgação

Todas as atrações são em locais públicos e, como já dito, na faixa. Musicalmente, é tanto cruzamento que a gente até se perde. Jazz com música nordestina, com choro, com bossa, com samba, com baião, com frevo… Cruzamentos harmônicos, rítmicos e, principalmente, humanos.

“Tocar jazz para as crianças faz com que eles acessem sinapses do cérebro que até então estavam intocadas”, explica o guitarrista Nelson Ayres, durante uma entrevista após sua oficina de harmonias, cheia de jovens. “Mesmo que elas não se tornem musicistas, a música desperta um desenvolvimento diferente.”

Vendo tantos moleques imersos em música tecnicamente tão sofisticada, já acostumadas aos 15 anos de festival, é possível notar uma geração diferente. Em outros lugares, salvas pela música. No Ceará, salvando o mundo através dela.

Choro Jazz

Samuel Rocha. Foto: Divulgação

“Fui com o Hermeto Paschoal a um festival na Ilha do Chaco, Argentina, chamado Tocar La Vida, e eles fizeram um festival que era o grande sonho da minha vida. Com oficinas, todo mundo acampado… Era um Woodstock, mas de música boa”, segue Capucho.

O universo meteu tudo no mesmo case. Capucho já frequentava Jericoacoara desde que era um reduto hippie, antes até mesmo da chegada da energia elétrica. Transformar o que viu na Argentina em um festival naquela praia paradisíaca foi praticamente automático. “Você não vê festivais onde as pessoas ficam no local respirando música. Vi que precisava levar isso para o Brasil”, completa.

Durante o Choro Jazz, Jeri (para os íntimos, como eu) vive música. Caminhando pelas ruelas e becos onde a areia branca insiste em promover seu protagonismo, basta inspirar fundo e sentir nos pulmões, além de brisa do mar, acordes e harmonias. Astros da música instrumental se misturam aos turistas, moradores locais, vendedores de artesanato e jegues. O som está em todo lugar. Nas rodas que se formam nos bares, no palco da praça pública e nas jam sessions após os shows.

Choro Jazz

Foto: Divulgação

Sim, os musicistas e cantores convidados são incansáveis. Rodam pela cidade com seus instrumentos nas costas, procurando um lugar para tocar. Gente monstruosa, como as cantoras Monica Salmaso e Vanessa Moreno, ou Lula Galvão, Nelson Ayres, Kiko Feitas, João Bosco… É um vai e vem de gente talentosa, transitando pelas ruas ou partituras, que a experiência no festival nos faz estar naqueles paraísos de capa de revistinha das Testemunhas de Jeová, onde tudo é sorriso.

O line-up do último dia foi simbólico, com a abertura do excelente coletivo local Armenina do Coco de Fulô e fechamento místico, de arrancar lágrimas, de dona Lia de Itamaracá. A edição de 15 anos do Choro Jazz encontrou Jericoacara no momento mais dramático de sua história. O parque estadual que envolve a vila recebeu conceção de uma empresa privada, que nem bem botou as chinelas, já chegou mostrando os afiados dentes do capitalismo. Propostas de pavimentação das ruas, cobrança de diárias inviáveis e um escancarado plano de gentrificar suas praias.

Na praça central, uma hedionda maquete de “condomínio temático”, com casas cheias de conforto e fachadas imitando a estética dos nativos da ilha, explica o episódio para qualquer um que ali esteja: construir, entre muros, o que estão destruindo fora do condomínio, transformando a vila em uma grotesca Disneylândia para ricos. Na piscina do empreendimento imobiliário tem até uma réplica da Pedra Furada, um dos principais pontos turísticos da região.

Choro Jazz

Nelson Ayres. Foto: Divulgação

Abrir o último dia do festival com um grupo tradicional de mulheres da região é um grito de resistência. “Os protestos contra a concessão uniram a cidade como nunca antes a gente tinha visto”, nos conta Kamilla Farias de Melo, maestrina da Armenina. “Empresários, nativos, funcionários, todo mundo está junto contra a privatização.”

“Uma conceção que não respeita a história”, disse uma da integrantes do grupo durante o show. Realmente, a indignação é real. Conversando com o músico de boteco, o piloto de boogie, o atendente do restaurante, todos estão assustados com o que deverá ser mais uma luta de Davi contra Golias. “Os protestos começaram tarde demais, depois da concessão.”

Em um mundo perfeito, os empreendedores que estão em um escritório refrigerado disputando canetadas com o governo estariam no Choro Jazz. Caminhariam pelas ruas de areia, sentariam nos bares ao som da “música boa” de Capucho e sua trupe. Sentiriam o poder de sua transformação nos jovens, e mudariam de ideia. “Jericoacara pertence a essas pessoas, vamos deixar como está”, pensariam. Mas o mundo não é perfeito. E a não ser que a molecada que frequente as oficinas encontre um jeito ainda não existente de convencer o pessoal de terno e gravata, isso não vai acontecer.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.