Programa, que mostra a corrida pelo drink perfeito, estreia nesta terça-feira (10). Conversamos com o empresário argentino que revolucionou a noite de SP
“Minha mãe vendia empanadas e meu avô, balas de coco, no centro de São Paulo”, conta Facundo Guerra, argentino que se mudou para a cidade aos cinco anos de idade e assumiu a região central como seu “território”, e a Rua Augusta, seu “quintal”.
Foi esta a rua que ajudou a transformar. Abriu em 2005 o Club Vegas, em uma região decadente, tomada por casas de prostituição (a chamada Baixo Augusta, faixa da rua compreendida entre as avenidas Paulista e Nove de Julho).
O sucesso da casa, que foi uma das mais importantes da noite de São Paulo, levou outros empresários a apostar na revitalização cultural da região, e a juventude abraçou a causa. Por anos, o ponto de encontro da música alternativa, da eletrônica ao rock, fazia com que as calçadas ficassem lotadas de gente em busca de diversão.
O que foi uma ideia, então, virou conceito, marca. Uma tatuagem na pele de Facundo. O cara se especializou em identificar pontos históricos abandonados da região central, reunir investidores e levantar um novo empreendimento na área de entretenimento, sempre mantendo uma ligação com os áureos tempos do lugar.
Foi assim com o Bar Riviera, por exemplo. Ponto de encontro de intelectuais e artistas até os anos 70, o local entrou em decadência a partir de então, e chegou a ter sua sobreloja alugada para moradores de rua passarem a noite. Hoje, ressuscitado, o bar mantém o mesmo nome, e recuperou a fama de ter os melhores drinks da cidade.
Drinks são o carro chefe do novo programa de TV Shaking the Bar, que estreia nesta terça feira, 10 de outubro, pelo canal de TV paga Sony Channel. Aos moldes do conhecidíssimo Master Chef, participantes concorrem, durante toda uma temporada, ao grande prêmio final, investimento para montarem seu próprio bar.
Aí entra o toque de Midas de Facundo. As lições de planejamento e empreendedorismo, assunto abordado pelo programa, com a mesma importância dada às receitas de coquetéis.
Ele nos conta que, ao longo de sua experiência, percebeu que muitas pessoas que trabalhavam na noite não queriam apenas ser bons bartenders, ou bons DJs, mas serem donos do próprio bar.
Bons drinks, a experiência passada com os vários empreendimentos histórico-festivos de Guerra e o futuro representado pelos sonhos dos participantes no mundo da coquetelaria: a receita de Shaking the Bar.
Conversamos com Facundo Guerra sobre a vida e o novo programa
Jota Wagner: Quando você começou montando clube, imaginava que um dia estaria apresentando um programa de TV?
Facundo Guerra: Mano, pra ser muito sincero, não. Mas tem uma coisa que é quando você acha sua vocação na vida. Todo mundo tem uma ou deveria ter a sorte de encontrar a sua vocação e fazer aquilo que gosta. A noite para mim foi um desvio de rota. Eu sou muito grato [à noite], eu tenho muito orgulho do que eu fiz até hoje dentro da minha caminhada…
Porque eu sou professor, né? Eu estudei para ser professor, sim. Fiz doutorado, dava aula. Inclusive, quando eu abri o Vegas, em 2005, eu dei aula até 2008. Então, muitas vezes eu saía das noites de sexta-feira e eu pegava no cursinho às 8h da manhã. Eu ia direto, virado. Eu aguentei três anos virando assim, trabalhando quase 24 horas por dia!
Obviamente que, em dado momento, a grana falou mais alto e eu resolvi seguir na noite. E o programa me trouxe de volta para aquilo que eu gosto de fazer, sabe?
Qual você considera, então, ser a sua vocação?
A minha vocação não é nem apresentar programa. Mas eu sou um bom professor. Sei disso porque, além do feedback dos alunos ser muito positivo, o programa me deu essa plataforma para eu falar com mais gente. Trabalhando com muito bartender ao longo da vida, eu me dei conta de que os caras não queriam ser os melhores bartenders do rolê. Eles queriam ser os donos dos seus próprios bares.
O empreendedorismo do Brasil é uma coisa inevitável. Sim, você vai ser empreendedor se você é herdeiro, se você está desesperado.
Ninguém acorda e fala assim: “vou largar meu emprego de 15 paus pra montar um café”. Tem a questão de segurança, pra pagar boleto e tudo mais. Então quem vai empreender aqui no país sempre está numa situação meio desesperadora.
95% das pessoas que vão empreender, é porque falharam no mercado de trabalho, ou porque o o mercado de trabalho ficou sucateado e elas não conseguem mais ter um emprego.
E também, eu acredito muito nessa forma de educação, ligada ao entretenimento.
Quero ensinar o que aprendi com os meus erros na hora de montar um negócio. É lógico que, no programa, tem de ser um formato um pouco mais enxuto, então não dá pra se aprofundar muito. Mas eu acho que ele conseguiu equilibrar bem a educação e o entretenimento.
Qual o tamanho do limbo de conhecimento que existe nessa área?
Gigante. A gente está muito preso a um discurso meritocrático, que é uma mentira, né?
A gente sabe que os modelos que temos são muito inalcançáveis. A gente tem como modelos de empreendedorismo o Elon Musk, todos esses bilionários meio que se descolaram da humanidade. A minha inspiração é a tia da quebrada que tá vendendo bolo de pote. Esse, na verdade, é o empreendedor no Brasil. A mulher negra, na periferia, com três filhos em casa, vendendo bolo de pote e marmita para sobreviver.
Ela tem muito mais a me ensinar sobre empreendedorismo..
E é engraçado, porque todo esse discurso do empreendedorismo é contaminado pela meritocracia, é contaminado pela necessidade de escalar uma startup, que é muito abstrata.
Então eu acho que, quando você vai para o setor de serviços, você tem possibilidade de perceber que o teu trampo toca a vida das pessoas. Quando você faz um show, você sabe que está marcando a vida de algumas pessoas que nunca mais vão se esquecer. Daquele lugar, daquela banda…
Isso às vezes transcende o dinheiro. Dinheiro é muito importante, indiscutível, isso é ponto pacífico. Mas você marcar a memória das pessoas quando você é um artista ou quando você é um empreendedor, é muito bacana, também.
Eu nunca me vi como artista. Eu tenho uma profunda admiração pelos artistas, por gente que é capaz de exprimir uma visão interna de mundo através do seu, da sua arte, seja discotecando, tocando num palco, cozinhando…
Então dediquei minha vida inteira para construir a melhor infraestrutura e a melhor situação possível, para que essas pessoas pudessem brilhar nos palcos que eu construí.
Isso tem uma relação meio simbiótica, eu acho. No programa, que eu receba os bartenders e que eu consiga a transformação da transformação de um artista até uma pessoa de negócios, porque unir estas duas facetas é bem difícil.
O que é mais importante para o negócio dar certo? O conhecimento, uma faculdade de administração ou a paixão com que se faz acontecer?
Montar um negócio está dentro do campo de uma linha temporal. Quando a pessoa tem uma ideia, ela automaticamente começa uma empreendedora. Então ela vai desenvolvendo o seu negócio, mas não tem uma forma. Tem faculdade de administração, mas não tem faculdade de empreendedorismo.
O cara tem que saber de comunicação, tem que saber RH, administração, regras contábeis, contratos, mídia e relação com o banco. É difícil ter todos esses conhecimentos de uma só pessoa.
Aí você vai aprender errando pra caralho! Você erra, e erra, e erra. Abriu o negócio, vai ter de suar para dar certo. O empresário vai acontecer dentro de uma jornada, que é para pouquíssimos. As estatísticas falam que oito em cada dez negócios fecham nos quatro primeiros anos no Brasil. É brutal.
Essa jornada, para mim, que é interessante. Você pode estudar administração na FGV, e você vai entender quais são as leis para administrar uma empresa, mas se a empresa foi mal construída, mal concebida, se o produto está errado, não tem administrador que resolve.
Eu fui um péssimo administrador durante muitos e muitos anos da minha vida, eu perdi muito dinheiro. Mas os meus negócios eram tão bem estruturados que eles permitiam essa ofensa. Agora, eu nunca vi um bom administrador consertando um negócio que começou mal estruturado.
Então, voltando ao programa, ele conta um pouco sobre esse caminho de estruturação de negócio para ele ser mais propenso a dar certo, e com menos chances de entrar na estatística das “mortes” que acontecem no Brasil, que são horrorosas.
E de onde veio aí a ideia de enfiar a coquetelaria nesse script?
Cara, para mim era uma coisa muito natural. As pessoas que querem empreender, começam pelo setor que elas mais conhecem. Então, se eu sou um bom DJ, um bom bartender, um bom chef, eu acho que naturalmente vou ser dono de um bom estabelecimento, o que não é verdade.
A gente resolveu escolher um modelo que estava mais próximo das pessoas. No entanto, as regras para abrir um bar são parecidas com as de abrir um salão de beleza, por exemplo.
A pessoa tem experiência ali, de estar sempre saindo pra comer. Como separar essa coisa de ser servido e a de querer servir?
É muito louco. Se parar para pensar, quando você entra no restaurante, todo mundo é muito crítico, né? Todo mundo fala da trilha sonora. Todo mundo fala que o serviço é ruim, que a comida não estava à altura ou que estava muito caro.
As pessoas não têm noção de como é difícil montar o estabelecimento, especialmente quando você não tem recursos. É uma quantidade de energia assombrosa que você tem que colocar para fora.
Então o programa também fala um pouco da dificuldade que temos para montar um negócio desse tipo. Para quando você entrar num restaurante ou bar, olhar com outros olhos.
Você também tem um lado historiador, de resgatar lugares icônicos da cidade de São Paulo. Qual foi a primeira vez que você se lembra de ter tido esse insight?
Eu sou argentino. Quando eu vim para o para o Brasil, fui morar na Santa Cecília e, tanto minha mãe quanto meu avô eram vendedores ambulantes. Minha mãe vendia empanadas na rua e o meu avô vendia balas de coco.
Minha mãe ainda vende empanadas, mas em casa, porque já está velhinha. Meu avô, no entanto, só parou quando morreu, aos 92 anos. Ele as vendia na praça Benedito Calixto.
Quando cheguei no Brasil, aos cinco anos, eu não conseguia me ver como brasileiro. O brasileiro não é muito generoso para com os argentinos, né? Então, eu ficava indo pro Centro, aqui em São Paulo. Sempre foi meu território. Sou da Barra Funda. Andava pela República, Santa Cecília… Quando eu fui amadurecendo, eu via aquele bando de um lugar abandonado e falava: “não, isso não é possível!”.
O Vegas foi um acidente. Foi até um estímulo da gente. Mas a ideia partiu do Tibira [José Tibiriçá, cofundador e idealizador do Vegas Club, que depois ainda abriu o Caos, na mesma Rua Augusta]. Eu descobri aquele marketing da narrativa, muito antes de se falar disso. Pensei: “pô, eu tô contando uma história sobre São Paulo”.
Porque São Paulo é uma cidade muito sem identidade, né? Agora que a gente está construindo uma, porque sempre passou pelo dinheiro ou pelo trabalho.
Facundo Guerra é responsável por dezenas de empreendimentos que resgataram a história cultural da cidade, como por exemplo o Riviera Bar, o Mirante da Nove de Julho e o Bar dos Arcos, no subsolo do Theatro Municipal.
Então, eu segui investigando o que é ser paulistano, porque era a carência da minha identidade. Eu acabei caindo em todos os lugares, e até hoje eles abundam.
O Vegas, mais do que empreendimento, foi uma revolução, né? Ele reverberou para a rua inteira…
Foi uma questão de timing. Eu já frequentava a Rua Augusta no final dos anos 90. Não tinha dinheiro para ir nas boates que ficam nos Jardins.
Quem queria fugir disso ia para o Hell’s ou para o Massivo [dois outros clubs alternativos icônicos da cidade], mas ainda assim a bebida era cara e eu não tinha condição para entrar nessas boates.
A Augusta era sempre muito barato. Quando tinha um date, levava a menina para comer no Piolin, uma cantina. Com vinte paus, você comia pra caramba! A Augusta era meu quintal.
De todos os projetos, qual é o que mais te orgulha? Você olha para trás e pensa: “marquei um golaço”.
Ah, o Vegas, né? O Vegas foi o primeiro. Foi uma fratura na minha vida. Entre todos os meus negócios, o Vegas me mostrou algo que eu não conhecia.
Você se imagina tendo o mesmo envolvimento em outro negócio do tipo?
Não, impossível! Por causa do tempo histórico que a gente vivia, por causa da situação da música naquela época, por conta das inovações que o Vegas fez em termos de programação e até de consumo. Era completamente diferente.
Em Empreendedorismo Para Subversivos (PLANETA ESTRATÉGIA, 2018), você transmite um pouco da sua concepção sobre o tema. O que esse livro te trouxe?
Me colocou em contato com outros empreendedores, que pensam um novo tipo de empreendedorismo. Dá para chamar de empreendedorismo de expressão. O cara não está fazendo só pela grana, ele está fazendo também porque ele quer.
É muito doido, porque você é artista né, Jota? Então você sabe que você toca a vida das pessoas com o seu trabalho, entendeu?
De certa forma, todo mundo é artista…
O máximo que pode se aproximar disso é empreendendo. Porque realmente, empreender é uma forma de expressão.
Quando eu estava no mundo corporativo, o único jeito que encontrava de me expressar era escrevendo e-mail (risos). Porque eu gosto de escrever. Botava ali a minha maneira de ver o mundo. Fui repreendido uma vez pelo meu chefe. Ele falava: “mano, você não está fazendo literatura, está escrevendo e-mail!”. Então, eu percebi que eu estava no lugar errado.
Sensacional. Sobre o programa, você já tem quantos gravados?
Eu tenho a primeira temporada.
Como você sentiu o nível das pessoas e os sonhos delas?
É foda, né? Porque eu me vi nesses lugares. Grande parte dos participantes tem mais de trinta anos, são pessoas mais experientes.
É muito interessante você perceber que o que estava em jogo ali não era um só prêmio em dinheiro, embora quem ganhasse o programa teria um prêmio suficientemente alto para montar seu próprio bar. Você está lidando com um sonho, com uma transformação fodida e com uma vontade da pessoa de escapar do lugar onde ela se encontra.
Às vezes, eu tenho a impressão de que a vida é curta demais para ser um funcionário. Graças a essa impressão, escapei disso com trinta anos.
Que transformação você quer dar para as pessoas através do Shaking the Bar — tanto a quem assiste, quanto a quem participa?
Eu espero que assistam ao programa e tenham muito respeito pelo trabalho dos outros, sabe? Entrar num boteco de esquina, que tem uma sinuca, numa cidade do interior, em que normalmente a gente quer ser mimado. Olha para esse boteco com um olhar sem estar diminuindo o trabalho dessas pessoas.
Que elas tenham a noção da coragem que é necessária para para você colocar a bunda na janela e montar, nem que seja, um alfinete.
Enfim, de que a gente não deve criticar o trampo dos outros. Você pode até falar que não é para você. Agora, fazer juízo moral, não. Eu quero mostrar como abrir um bar. É um processo penoso, que às vezes toma anos de saúde mental e física.