
Entre o copo meio cheio e o meio vazio: afinal, estamos bebendo menos?
Pesquisas apontam para uma queda no consumo de álcool entre jovens, mas festivais e clubes mostram o contrário
Dando a ideia na lata para o leitor mais preguiçoso: o mundo está perdendo seu encanto com as bebidas alcoólicas, principalmente as gerações mais jovens? Paulatinamente, sim. Os festivais, raves e clubes, portanto, estão experimentando um consumo menor, que os levaria a pensar em um cardápio mais adaptado a quem nao quer consumir álcool? Definitivamente, não.

O Music Non Stop se debruçou em pesquisas e conversou com produtores de eventos para compreender a aparente dicotomia entre a tendência mundial em promover festas “zero álcool”, amparadas em pesquisas que identificam uma tendência de consumo cada vez menor a cada troca de geração; e o fato de a venda de bebidas alcoólicas seguir forte nos rolês tradicionais, a ponto de desacreditar os números apresentados em pesquisas. Como dizia vovó, qual é o pulo do gato?.
A colisão estatística já começa nas pesquisas e relatórios acadêmicos publicados. E é importante ressaltar aqui que o assunto ainda é tratado de forma bastante esparsa ao redor do mundo. Os estudos pipocam em diversos lugares festeiros do mundo, e geralmente não têm (ainda) uma linha de tempo suficiente para identificar tendências. Muita papelada disponível acompanha o rolê há menos de dez anos, e pouquíssimos seguem a mesma metodologia por muito tempo.
As pesquisas mais sólidas são as que acompanham o consumo de diferentes gerações, independentemente dos eventos que frequentam. Mas, mesmo nesse caso, estudá-las é tão nebuloso quanto as navegações do pobre Gilliatt até a Ilha de Guernsey, no romance Os Trabalhadores do Mar, do Victor Hugo.

Enquanto pesquisas recorrentes dos últimos dez anos identificavam um consumo cada vez menor de álcool a cada vez que uma nova geração “virava” (X, Y, Z…), um novo relatório publicado pela ISWR — empresa inglesa especializada em estatísticas para a indústria de bebidas —, feito com mais de 26 mil jovens adultos no mundo todo, encontrou um aumento tão vertiginoso no consumo que equiparou a geração atual com as anteriores (70% da população entrevistada). Pandemias, guerras e crises econômicas foram dando respaldo ao velho lema de Chico Buarque: “E a gente vai tomando que, também, sem a cachaça, ninguém segura esse rojão”.
O alerta feito pela ISWR, respaldado também por outro estudo, do Instituo Gallup, vai ao encontro dos profissionais consultados pelo Music Non Stop.
“Existe uma percepção de mudança no tipo de bebida. Redução do consumo de bebidas alcoólicas, pelo menos aqui no nosso caso, não foi percebida”, conta Leo Bigode, organizador do festival Goiânia Noise, que celebrou 30 anos de vida no começo do mês. Ana Garcia, do recifence Coquetel Molotov, complementa: “Eu acho que as pessoas continuam bebendo. Inclusive, a nova geração usando menos drogas e bebendo mais”.

Goiânia Noise. Foto: Divulgação
Na Europa, chega-se até a coletar amostras de urina nos banheiros químicos (eca!) para levantar dados de como anda a intoxicação da galera em festivais de música. Os resultados confirmam que o povo anda bebendo até cair, concluindo que esses eventos seguem classificados como de “alto risco”. Mas até nesses casos, há dúvidas metodológicas. Quem não bebe e nem usa drogas vai muito menos aos banheiros (e postos médicos) dos festivais. Indo mais além, um jovem que sai para encontrar amigos ou adora noites de videogame ou Netflix em casa, também tem uma possibilidade de abstinência maior a quem enfrenta longas e energéticas jornadas de música.
Quem não bebe reclama muito das opções sem álcool nos cardápios dos festivais. Ninguém aguenta passar oito horas tomando refrigerantes entupidos de açúcar ou pagar 40 reais por um “mocktail”, emulação de coquetéis alcóolicos — geralmente trocando o ingrediente alcóolico por sucos ou águas gaseificadas, sem repasse na economia da receita para o consumidor —, e isso pode ser um dos fatores que impedem um maior crescimento do povo sóbrio nos eventos.
“Energéticos e refrigerantes sem açúcar vêm apresentando um crescimento expressivo, mas a cerveja segue sendo a bebida mais procurada. Há também um início de interesse por drinks e cervejas sem álcool, ainda que com procura mais tímida”, segue Ana. Fora do Brasil, os chamados “drinks funcionais”, como a kombucha e coquetéis à base de matcha (chá verde de origem japonesa), também crescem no mercado de festas.

Coquetel Molotov 2023. Foto: Ariel Martini/Divulgação
Paralelamente, eventos zero álcool vêm pipocando em vários países, incluindo o Brasil, para atender a um nicho da população que não bebe ou que está em busca de alternativas de rolês menos intoxicados e mais seguros. Furtos e golpes com drogas como o “Boa Noite Cinderela” são assustadoramente comuns no país, e as vítimas escolhidas pelos criminosos são sempre as que já estão demonstrando certo abuso de álcool. O movimento, no entanto, ainda é pequeno.
Em outubro de 2024, a festa LEV, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, reuniu 400 pessoas para dançar música eletrônica sem consumir bebidas alcóolicas. Apesar do público pequeno, a segunda edição do evento já tem data marcada — 18 e 19 de outubro, no Obelisco do Ibirapuera.
“Eu senti que a pista tem uma energia diferente. Como o evento é zero álcool, as pessoas vivem a música de forma mais presente e consciente. A vibe é mais leve e fluida, e o público se conecta de verdade com a música”, conta a cofundadora Anna Maura Gandra.

Drinks sem álcool sendo preparados na primeira edição da LEV. Foto: Divulgação
Apesar de estar vendendo o próprio peixe, seu depoimento encontra eco em muita gente que já participou de festas do tipo, inclusive aqui dentro da redação do Music Non Stop. Apesar de (bastante) chegado a um goró de diversas fontes, ingredientes e nacionalidades, estive na edição de 2023 do Primavera Sound em Buenos Aires, na qual a venda de bebida alcoólica era extremamente restrita.
Para se comprar um drink ou uma cerveja, era preciso se afastar do palco, entrar em uma área específica, enfrentar filas e consumir o que foi comprado ali mesmo. Exceto para os mais desesperados, não compensava o trabalho. Para motivar ainda mais a sobriedade do público, a cerveja sem álcool era distribuída gratuitamente. O resultado foi, principalmente ao anoitecer, uma percepção do ambiente bem mais leve, segura e alegre. Além de mais consciente, a decisão do Primavera certamente desentupiu postos médicos e contribuiu para que muito mais gente voltasse para casa em segurança.
Uma mudança realmente representativa no cenário futuro passará, necessariamente, pelo mercado. A venda de bebidas alcoólicas é uma baita receita para os organizadores de evento. Além disso, os departamentos de marketing dos fabricantes vão investir pesado no convencimento de que não é preciso parar de beber para “ser cool”. Os resultados das recentes pesquisas globais da ISWR e da Gallup mostram que estão conseguindo cumprir seu objetivo. Por enquanto, quem quiser curtir um rolê sem álcool terá de buscar eventos nichados ou ter uma boa dose de resistência às tentações da intoxicação em festas tradicionais.