Como Honey Dijon inspirou Valentina Luz a ser referência trans
DJ, modelo e bailarina paranaense radicada em São Paulo se apresenta neste C6 Fest 2024
Na virada de sábado (18) para domingo, exatamente à meia-noite, a DJ Valentina Luz sobe ao palco Pacubra do C6 Fest 2024 para contar mais uma vez sua história: a da modelo e bailarina que chegou em São Paulo com 18 anos de idade, sozinha e sem grana, para buscar seu lugar no mundo da arte.
Uma jornada ainda mais difícil para uma mulher trans negra que havia acabado de perder o apoio da mãe, falecida pouco antes de sua mudança de cidade.
Articulada, segura e autoconfiante, como ela mesma se define, começou no mundo da moda e foi adicionando outras paixões ao ganha-pão. Hoje, discotecar se tornou sua principal atividade profissional, mas seu background foi sempre bem-vindo. Valentina traz sua experiência na moda e na dança para suas apresentações como DJ.
Dias antes de participar de um dos festivais mais bacanas de São Paulo, dividindo a noite com nomes com Black Pumas, 2manydjs e Fausto Fawcett, Valentina Luz conversou conosco sobre a chegada em São Paulo, a carreira, o papel de ter sido influenciada e agora influenciar meninas trans, além dos preparativos para a grande noite.
Jota Wagner: Estamos às vésperas do C6 Fest, um dos festivais mais importantes aqui de São Paulo, e você veio do interior do Paraná. O que você sentiu quando chegou à cidade?
Valentina Luz: Foi uma fase de mudança real para mim. Tinha acabado de completar 18 anos, entrando na vida adulta, e também havia acabado de perder minha mãe. Então, amigo, senti intensamente essa mudança. Sofri muito. Pela perda, pela mudança radical, e acabei vindo para São Paulo em busca dos meus sonhos.
Aqui, minha chavinha virou. Ao mesmo tempo que eu estava sofrendo, vi a realidade de muitas pessoas em situação de vulnerabilidade social e tudo mais. Isso acabou me motivando para superar essa perda, superar o fato de estar sozinha. Hoje, quando passo por uma fase difícil, eu me lembro desse início, da minha vida no interior, e tudo volta a fazer sentido para eu seguir trabalhando.
Sua carreira é um pequeno quebra-cabeças. Tem a moda, a dança, a performance, a discotecagem, o ativismo… Como é que você junta tudo isso?
Olha, nem vejo muito assim. É uma necessidade de estar no mercado de trabalho mesmo. De estar fazendo coisas. Tudo se liga com o momento em que cheguei aqui. Nunca tinha me visto nesse mercado, enquanto uma pessoa trans. E esse sempre foi meu medo: não ter um trabalho, uma renda e ter de ir para a marginalidade, para outros tipos de trabalho que a gente sabe que existem aqui no Brasil.
Mas desde a minha infância eu trabalho com a arte. Com dez anos, comecei a fazer balé. Foi a dança que me proporcionou meu primeiro cachê. Chegando aqui, eu me obriguei a estar no mercado da arte. A música mudou minha vida. Quando cheguei em São Paulo, meu sonho era só ser modelo. Quando entendi que a cidade também seria uma porta para eu usar tudo da minha bagagem, enquanto uma criança que teve a arte como incentivo, comecei a montar esse quebra-cabeça.
Hoje, minha vida é muito mais ser DJ. O que eu faço mais e o que me dá estabilidade. Então, uso esse quebra-cabeça montado para dar um boost na minha carreira. Sou o tipo de artista que adora conversar com a câmera, porque venho da moda. Adoro dançar e trazer para a cabine essa referência de baile, de corpo dançante durante os DJs sets.
Às vezes rolam convites de moda, às vezes para dançar. Mas meu foco é trazer tudo isso para o meu show como DJ e torná-lo cada vez mais incrível e atrativo.
Quando veio essa decisão pela discotecagem?
Foi necessidade mesmo: “meu Deus, a moda não tá me sustentando”. Aqui em São Paulo, tudo é muito caro. A realidade do aluguel, da alimentação, realmente cara, principalmente para uma garota como eu que, no inicio, não teve ajuda dos pais. Em 2018, eu dancei com a Honey Dijon na Red Bull Music Academy. Muitos amigos já me falavam sobre ela: “você precisa conhecer, é uma DJ trans e preta”. Quando dançamos, eu pude, de fato, entender o que era tudo isso e também a house music, sua história vinda de Chicago…
Eu me vi naquilo. Amigos como o Vitinho e a Cashu, da Mamba Negra, começaram a me motivar: “isso pode ser uma saída para você se manter aqui”. A comunidade Namíbia também, a fazer house music brasileira. Trazê-la para casa. Não tinha nenhuma outra travesti fazendo isso, nenhuma outra preta que eu conhecesse na época.
Era um mercado de meninos, em que as meninas estavam começando a falar sobre line-ups majoritamente masculinos…
Comecei a trabalhar muito, pesquisar música, entender as ferramentas, estar atenta durante as minhas performances de dança. Performance, para mim, sempre foi um lugar de pesquisa, de entender o que me fazia dançar de verdade e o som que eu queria mostrar para o povo.
Me lembro de que eu não via DJ dançando. Tipo, cada música maravilhosa e o cara lá parado!
É o mais comum, né?
Pois é. E tá tudo bem. Às vezes eu também estou num mood mais introspectivo, principalmente quando tenho música nova, que não conheço tão bem. Então, existe uma concentração. Mas isso foi um gatilho para mim. Pensei: “esse pode ser meu diferencial”. E meus clientes também começaram a entender a necessidade de ter uma pessoa como eu no line. Tem toda essa dinâmica de empoderamento trans, e isso me ajudou muito no começo.
Sempre fui muito dedicada, articulada. Então, fui buscando formas de encontrar meu espacinho ali nos lines e melhorando também. Porque nossa cena eletrônica é muito bom em julgar. Eu tenho que correr muito mais do que qualquer outro artista que tem o mesmo nível e o mesmo tanto de carreira que eu.
Honey Dijon me apoiou muito no começo, por eu ser muito nova. Depois conheci Octo Octa. Duas artistas trans que me influenciaram muito. Além de Vitinho, Cashu, Laura Diaz, Paulete, Elvira, Jup do Bairro, Linn da Quebrada, Aline Kerr…
Hoje, você se vê como uma motivadora de outras garotas trans?
Esses dias recebi uma mensagem assim: “seu trabalho me inspira, sua vivência me inspira e você é uma referência para mim”. Isso acontece com certa frequência, principalmente hoje, com tantas meninas trans no meio da música eletrônica e da dança que, graças à minha coragem e de outras artistas, estão tendo espaço no mercado.
Quando falam que estou me tornando uma artista gigante, que acreditam em mim e que sou uma referência, dá um bug na cabeça. Mas rola muito e eu fico muito feliz que meu trabalho tenha chegado nesse lugar. Torna a gente cada vez mais crítico. Eu sou superautoconfiante. Isso vem da minha realidade de não ter nada a perder e de estar em um lugar que eu almejei enquanto ser humano e enquanto artista. Fico muito grata porque no início de tudo, eu jamais imaginei, sabe? Nunca esperei chegar nesse nível, de inspirar alguém.
Falta muito ainda para chegarmos em uma situação mais justa entre os gêneros?
Olha, no cenário underground eu acredito que as coisas estão bem melhores. Que a gente está bem próximo de conseguir igualdade nas várias festas e coletivos, inclusive de cachê. Mas eu também estou no mainstream, e isso me mostra que está muito devagar. Tem poucas travestis nesse lugar. Ali, falta muito ainda. O mainstream ainda é o espaço para falarmos. Conversar com os produtores, os promoters e educar o público para aceitar também. Criar estratégias para que todos consigam ter este acesso e principalmente a dignidade de ser visto e poder mostrar seu trabalho. Não estamos pedindo esmola ou uma “brechinha”. A gente trabalha e se dedica muito.
Como rolou o convite para tocar no C6 Fest?
Eu sou muito vista por aí, né? Pelos promoters de festival, desde que comecei meu plano de carreira com a Smart Biz. Desde quando fui pela primeira vez para a Europa, fiz o Boiler Room… No ano passado eu recebi um convite para participar como influencer. Foi bem legal. E aí entra aquela sua história do quebra-cabeça, porque eu também tenho esse trabalho de criação digital.
Criamos essa relação, e agora, no segundo ano, me convidaram para fazer parte deste superline. Topei na hora! Muito especial, uma vez que sou uma artista nacional e que eles de fato valorizaram o meu passe.
E como você se prepara para um show como esse?
Amigo, falando enquanto mulher, tem várias camadas. Para nós é bem mais difícil. Principalmente para mim, que sou uma artistas visual, que vem da moda. Tenho minhas preparações, que começam desde o momento em que assino o contrato. A gente já cria uma dinâmica de logística, de entender como tudo vai rolar. Sem contar que ainda tem as outras festas, as viagens…
Não deixo as coisas para a última hora. Estou há meses trabalhando a minha pesquisa para este e outros festivais, enquanto vou desenvolvendo isso nas pistas, em cada oportunidade que tenho.
Entrando na semana do evento, eu já começo a trabalhar um cardápio de alimentação, para que eu consiga estar ok e disposta para o final de semana. Aí tem o styling, a preparação de roupa, porque meu trabalho é muito pautado na questão estética, o que eu adoro. Mas é cansativo e, às vezes, chato. Tem dias que eu penso: “pqp, eu só queria pesquisar música, chegar lá e tocar”.
No dia [da apresentação], eu sempre me permito ficar naquele limbo do fazer nada. Mas relaxar, mesmo, só depois que eu entrego o meu set. Depois é alma lavada, fazer nada e comemorar.