Sophia Chablau Foto: Frances Rocha/Divulgação

“Não vamos nos calar”: Sophia Chablau fala sobre o poder de incomodar

Jota Wagner
Por Jota Wagner

A banda que marcou o Lollapalooza com um discurso potente foi silenciada em pleno Dia do Rock; Sophia fala sobre ativismo, amizade e arte

Na tarde de 24 de março, no Lollapalooza, Sophia Chablau — que se apresentava com sua banda, Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo — aproveitou o espaço para soltar o verbo. Sentou a mandioca na Polícia Militar, nos governantes e na extrema direita. O grupo celebrava o sucesso de seu segundo álbum, Música do Esquecimento, pérola que ficou em terceiro lugar na Lista Das Listas, de Pena Schmidt. Um marco, já que a publicação reúne os melhores do ano em mais de 40 outras listas brasileiras.

Celebrando a conquista de estar em um festival de renome mundial, poderiam ter optado por uma apresentação mais chapa branca. Nada: gritaram mais, reclamaram mais, expuseram tudo. “Vai ter muito jovem vendo uma banda brasileira falando as coisas. Isso pode influenciar positivamente em uma disputa mais complexa”, me contou Sophia.

O plano deu certo, reverberou e tornou ainda mais difícil a compreensão da censura em real time imposta pela Prefeitura de São Paulo durante show da banda no Dia Internacional do Rock. A Secretaria de Cultura mostrou não ter a menor ideia do que é rock, e muito menos de quem é Sophia Chablau. Os técnicos do show, a mando de não se sabe quem, desligaram o telão e o som enquanto Chablau protestava contra o genocídio em curso na Palestina (a artista conta o que levou a banda a esse posicionamento no final da entrevista).

“É muito estranho ser censurado. Eu acho que é uma experiência que eu não desejo a ninguém, mas vivendo ela, eu consigo entender muitas outras coisas.”

A “banda de quatro amigos” surgida em 2018, no entanto, tem muito mais histórias para contar. O Lolla, nem de longe, foi o único grande festival a receber o quarteto. Fora a “longa história de shows em inferninhos” que consolidaram Sophia e seus perdedores de tempo no cenário independente brasileiro, tão afeito e carente da “música esquisita” proposta pelos quatro. A conversa foi longa e divertida, e você confere tudo logo já:

Vocês e a Ana Frango Elétrico têm uma baita conexão…

Eu acho muito louco pensar nisso, porque agora a Ana está num lugar muito gigante. Cresceu muito. É muito doido lembrar que nos encontramos em 2018, em um momento totalmente diferente de nós duas. Ela tinha acabado de lançar seu primeiro disco, que é totalmente maluco. E eu ouvi aleatoriamente, caiu no meu algoritmo, e fiquei muito impressionada com a liberdade de produção, com a proposta estética. Tinha um lado muito raro. Eu tinha 18 anos, não conhecia muito a cena e pensei: “caralho, tem gente fazendo isso no Brasil”.

Rolou aquela história da influência, de pensar: “se ela faz, eu também posso fazer”?

Sim, rolou muito forte. Foi uma fonte de inspiração muito grande. Eu era fã, comecei a fazer uma parada, e depois estávamos fazendo coisas junto, coletivamente. A Ana é uma pessoa muito generosa, muito aberta, para divulgar as pessoas que ela gosta. E nessa época a gente estava construindo um lugar. Ela foi solidária, deu espaço, produziu a gente. Foi uma confluência de rios. Quando ela começou a vir para São Paulo, ficava muitas vezes na minha casa.

A música gera encontros loucos, de melhores amigos instantâneos…

Eu acho que rolou isso. São encontros raros, mas comuns na trajetória artística. Foi o mesmo que tive com o [Felipe] Vaqueiro. Acho que é assim: quando você gosta de um som, se sente tocado por aquilo e quer que outras pessoas também o conheçam. E aí vai virando uma troca. Teve um tempo em que a gente [Sophia e Ana] teve uma linguagem um pouco mais parecida. Acho que no Música Do Esquecimento e no Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua [álbum de Ana Frango Elétrico] rolou um rompimento. Não de amizade, mas de uma procura estética. E eu acho que isso foi legal também, sabe?

É muito louco ver que o tempo vai passando e você vai vendo a trajetória de cada um. Quem foi mais para o instrumental, ou pro rock, ou pra MPB… Quando conheci a Dora Morelenbaum foi a mesma coisa, muito engraçada. A conheci junto com a Ana. A Dora tocava Fora do Meu Quarto sem a gente nem ter lançado a música, me chamava para participar dos shows. Aí, depois, ela veio com o [grupo] Bala Desejo e explodiu.

Música Do Esquecimento já tem dois anos. Como você vê tudo o que aconteceu com aquele álbum?

Cara… vou voltar um pouco e falar do primeiro álbum (homônimo, lançado em 2021). Quando a gente foi fazer o primeiro disco, eu virei para os meninos e falei: “vamos fazer pra tocar no Sesc“. Demorou, conseguimos tocar lá depois da pandemia. Mas para mim, que sou de São Paulo, era como tocar no Allianz Parque. Ainda é. Não pensávamos em tocar em festivais, isso era muito distante.

Quando começamos o segundo disco, eu falei: “esse é pra gente tocar fora do Brasil”. Gosto de dar uma sonhada. Sabíamos que a galera curte uma coisa mais experimental. E, pô, a Francesca [produtora da banda] é muito responsável por isso. Porque eu falo um bagulho e ela vai atrás, batendo nas portas.

Corre atrás do sonho da banda…

Exato. No final, fomos e a gente foi muito bem recebido. Pra mim é um pouco chocante porque eu acho Música do Esquecimento um disco muito esquisito. Tem umas proposições meio estranhas, um caminho tortuoso. Eu morria de medo de as pessoas acharem que sou esquisita. Mas no final descobri que é por isso que as pessoas gostam da gente. Queríamos misturar muitas coisas que a gente gosta pra caralho, fazer muitos testes, foi um processo longo de estúdio. E para isso tivemos muito apoio do nosso selo, o Risco. E isso fez toda a diferença.

Você ainda está com a cabeça no Música do Esquecimento, ou já está pensando no próximo disco?

Cara, eu estou fazendo vários discos. Sou mesmo maluca. Ainda penso no Música do Esquecimento, mas eu já não o aguento mais. Uma hora vai cansando, muitos shows… Acabei de gravar um disco com o Felipe Vaqueiro, bem esquisito e muito animado. Nosso disco ainda vai demorar, não tem previsão nenhuma. Começamos a desenhá-lo, selecionar músicas, arranjar. Mas já te adianto que vai ser algo bem específico e muito diferente dos dois que já lançamos.

Diferente para fugir da pressão do segundo, que foi muito bem recebido?

Não. Eu acho que é abraçar a pressão e falar assim: “vai, toma!”. É um disco em que a gente chegou à conclusão que quer fazer algo que tem muito a ver com nós quatro. Um disco menos megalomaníaco. Música do Esquecimento tem um pouco de megalomania. No próximo, acho que finalmente chegaremos no som da banda. No som das quatro pessoas tocando juntas.

Não tem mesmo nem data prevista para sair?

Nada previsto. Mas acho que estamos chegando em um lugar legal. Agora, estou animada com o disco com o Vaqueiro. Acho um disco muito combativo, ele precisa sair este ano.

Em uma conversa que tive recentemente com a Leca Guimarães, ela comentou que o futuro estava nas bandas “da tarde” dos festivais. Vocês tocaram no Lolla nesse horário. Como foi viver tudo aquilo?

Tem uma coisa que eu acho da nossa banda, por ser um lance de quatro pessoas muito amigas, que é muito diferente. Não temos aquela coisa de “eu quero entrar numa gravadora, quero fazer sucesso, chegar lá”. A galera pensa muito em metas comerciais. O Enorme Perda De Tempo não tem isso muito específico. A gente quer viver de música, essa é nossa meta comercial. Quer que o trabalho seja ouvido e que a gente consiga sobreviver todo mês.

Então, antes do Lollapalooza, teve uma caminhada grande de shows pequenos e loucos em inferninhos. Minha preocupação quando a gente foi tocar foi de que era um festival gigante, supercaro, e que tem uma projeção muito grande no Brasil, então, o que queremos dizer nesse palco? O que é importante da nossa trajetória? Temos assumido essa posição de não nos calar. Então decidimos que não íamos nos acovardar. Vamos usar esse telão de LED absurdo, que só temos ali, para colocar nossa mensagem.

E aí meses depois vocês resolveram se manifestar politicamente no Dia Internacional do Rock…

Quando eu tinha 15, 16 anos, eu queria ter uma pessoa que me inspirasse e me entendesse. Entendesse que eu tava puta, chateada, que não concordava. Ficava sempre nessa procura. Então, como artista, eu acho que devo ser assim para os outros. Aquilo que caras como o Emicida, por exemplo, foram para mim. Ajudar a desaguar essa raiva que eu tinha. No Brasil tem muitos exemplos: a Tropicália, Caetano Veloso, Racionais

Voltando ao Lollapalooza, a gente sabia que ia ter muito jovem vendo que tem banda no Brasil falando sobre essas coisas e temos que influenciar positivamente num disputa mais complexa que a gente vive hoje no Brasil. Uma disputa de valores da sociedade. Mais do que arte, eu faço cultura.

Esse lance da Palestina é um negócio que pega muito para mim. É bizarro. E não é de hoje. Com 14 anos, participei de uma vigília na praça Cinquentenário do Estado de Israel, em Higienópolis (SP). Todo mundo ascendeu velas e eu fui lá. Os policiais começaram a atirar para cima. Nunca tinha visto isso, balas de verdade, para dispersar uma manifestação.

E nosso posicionamento aumentou com o bombardeio do Líbano. Eu tenho amigos lá, pessoas que eu conheci tocando. Quando você conhece alguém pessoalmente, toma café com a pessoa e a vê numa situação bizarra como essa, você pensa: “não é possível!”. Por isso eu acredito em shows. Acredito no encontro das pessoas, em manifestações. O encontro de pessoas de diferentes lugares, de classes sociais e até países diferentes, faz com que a gente seja solidário, preste mais atenção no outro.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.