Leca Guimarães Leca Guimarães. Foto: Divulgação

Responsável pela expansão do Lolla, Leca Guimarães volta ao Brasil para comandar o Tomorrowland

Claudia Assef
Por Claudia Assef

Gigante da indústria fala sobre a cena atual dos festivais, desafios e aprendizados e quem é o cara mais legal da música

Não se engane pela aparente fragilidade da paulistana Leca Guimarães. Aos 44 anos, sendo os dez últimos vivendo nos EUA como diretora internacional de uma das maiores empresas de entretenimento do mundo, a C3 Presents, Leca é uma gigante da indústria da música. Ela foi entrando meio por acaso no showbizz e segue firme nele, depois de trabalhar em empresas como Geo Eventos (do grupo Globo) e Vice Media e a própria C3, onde comandou a expansão do festival Lollapalooza para a Alemanha, Suécia e Índia, entre outros países.

Em abril último, ela voltou de mala e cuia para sua São Paulo, agora como VP de música na DC Set Group, com a missão de liderar projetos do grupo como o Tomorrowland Brasil, a Move Concerts Brasil e o festival Planeta Atlântida. Sua volta para a terra natal teve a ver com dois fatores: a impossibilidade de crescer “mais” dentro da empresa que a abraçou no Texas, e a vontade de passar mais tempo em casa.

“Sei que sou conhecida por ter feito a expansão do Lolla, que hoje está em oito países. Depois desse highlight, comecei a questionar minha permanência na empresa, porque, acima de mim, tinha o Charlie Walker e, acima dele, o Michael Rapinoe. Não tinha mais como crescer ali”, diz. 

O retorno ao Brasil vinha se desenhando desde 2022, depois de finalizado o projeto de expansão mundial do Lolla, em cidades de operação complicada, como Mumbai, na Índia. “O povo só vê as glórias, não vê as dores. Antes de ganhar dinheiro com um festival, precisa perder muito.” Fica a dica.

Leca Guimarães

Leca Guimarães, ao centro, com Giorgio Moroder. Foto: Acervo pessoal

A determinação e força da executiva que tem pinta de roqueira teve uma ajuda do zodíaco. Nascida sob o signo de Touro, com ascendente e Lua em Áries, ela garante que é chata até com ela mesma. Para trabalhar na música, é preciso ter flexibilidade e criatividade, características que tem de sobra e que credita à sua escola pessoal, seu pai, o ex-publicitário Ricardo Guimarães, nome respeitadíssimo tanto nas agências de publicidade quanto no universo acadêmico e jornalístico. Dele, ela leva alguns lemas, como “seja a melhor Leca que você pode ser”, “não fique olhando pro lado ou comparando, siga o seu caminho — ética e esteticamente” e “comunicação é um exercício de identidade, tudo o que você faz, diz pro mundo quem você é”.

Agora, o desafio dessa fã de Bowie, Prince, Nirvana, Black Pumas e Pink Floyd é mergulhar de cabeça na música eletrônica, numa tarefa de cuidar da edição brasileira de um dos maiores festivais do mundo, o Tomorrowland. Ela já trabalhou com o universo DJ e tem no CV ter conseguido trazer o papa da música eletrônica, Giorgio Moroder, a São Paulo. “O Tomorrowland é um superdesafio para mim. Já trabalhei em eventos com foco em DJs, mas não desse tamanho. Mas meu negócio é cuidar de festival, não importa se é de rock ou de techno”, continua.

Sua volta ao Brasil coincidiu com a tal “explosão da bolha de festivais”, que vem sendo alvo de inúmeras teorias — inclusive, demos nosso pitaco aqui. Apesar do pessimismo em torno da pauta, Leca — atração do WME nesta sexta (21) e sábado (22), nos painéis Plano B: uma má ideia é uma ideia que não pode ser mudada. Dicas e toques sobre como vencer os obstáculos na caminhada da música e Os eventos e as condições climáticas. Como é possível prever, previnir e aplacar os efeitos de climas extremos em eventos — já chega fazendo planos, como transformar a Pedreira Paulo Leminski, em Curitiba, atualmente sob concessão da DC Set, numa espécie de Red Rocks, anfiteatro natural e ao livre nos EUA.

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Com tanto conhecimento de mercado e anos de estrada, o Music Non Stop foi em busca de perguntas que não querem calar a respeito de temas que deixam os executivos da música de cabelo em pé, e outras que fazem os fãs de festivais quererem cancelar seus cartões de crédito.

Bolha dos festivais e cancelamentos

“Acho que colocaram vários assuntos diferentes no mesmo balaio, né? Você tem problemas que são de safra, por exemplo. A gente já sabia em 2021 que isso ia acontecer porque os artistas foram pra dentro de casa durante a pandemia e começaram a produzir mais. A gente sabia que em 22, 23 ia ter milhares de opções, tanto para ser headliner em festivais quanto para fazer turnês próprias. Então, 2024 já estava desenhado como um ano muito difícil para o setor”, contextualiza.

Sobre os cancelamentos que temos visto, fazem parte da mesma reação pós-pandemia, segundo ela. “A parte de cancelamentos é porque nunca teve tanto show, isso já acontecia antes. E as pessoas voltaram da pandemia menos saudáveis, mais frágeis. Além disso, o artista está muito mais exposto hoje em dia. Eu estava brincando outro dia com o Enzo Celulari. Quando eu era fã da mãe dele [Claudia Raia], não sabia a vida pessoal dela. Era a Rainha da Sucata, era o personagem. Não sabia o que ela comia no café da manhã, que horas que ela ia no banheiro. Hoje, a vida da celebridade é totalmente exposta. Talvez a gente tivesse que ter esse tipo de cuidado com o Taylor Hawkins, por exemplo. Era uma tragédia anunciada”, diz, referindo-se ao baterista do Foo Fighters, que foi encontrado morto no quarto de hotel na Colômbia em 2022, dias antes do show que a banda faria no Lollapalooza Brasil.

“A Anitta teve isso. Teve um ano que ela saiu fazendo muitos shows, em todos os lugares, quase que lançamento de lombada e de mecânica. E daí ela pifou. As pessoas pifam”, acredita.

“Eu mesma. Antes, eu tinha um gás pra ir pra oito países, ficava uma semana sem dormir, ia pro Chile e pra Argentina no mesmo final de semana. Hoje em dia, eu não aguento sair de um festival às 02h da manhã pra acordar 05h30, pegar voo e ir pro outro festival direto”, diz Leca.

“A vida do artista é muito cruel. Então, às vezes você mal planeja. No caso da Ivete e da Ludmilla [que recentemente cancelaram turnês pelo Brasil], acredito que houve um mal planejamento… Na hora que você faz uma oferta pro artista, você se baseia na capacidade e potencial de negócio que ele pode gerar naquele lugar, seja venda de ingresso, posicionamento ou o que mais vem junto. Na hora que você vê um artista nacional fazer 30 estádios, você questiona qual a estratégia por trás, porque nem Paul McCartney, nem Metallica fazem 30 estádios. Como é que para de pé? É muito investimento”, segue.

“Você tem crises econômicas, políticas, que afetam, e você tem essa coisa que eu acho que teve pós-pandemia, muitas pessoas achando que era fácil fazer festival e ganhar dinheiro, e virou moda. Então eu acredito que tenham hoje os aventureiros, que são movidos talvez por ego e dinheiro, e os promotores sérios, onde segurança é inegociável. Muita gente acha que festival é um mercado de milhões, porem não sabem do alto risco. É muito complexo, um investimento de longo prazo.”

Veja outros pontos abordados por Leca Guimarães

Saturação

“O Tomorrowland tem seus desafios. Ele já veio pro Brasil e foi embora. Então as marcas grandes, que fazem grandes investimentos, pensam: ‘vamos ver se desta vez fica’. Então não é que não tem força, é uma das marcas mais fortes de festivais no mundo, mas querem fazer investimento de longo prazo, de construção de marca. É um desafio entrar num mercado supercompetitivo.”

Renovação

“É muito engraçado, a história acaba se repetindo, né? Nos anos 90, teve a crise dos festivais e o fim de algum deles. Teve a pausa do Lollapalooza, o fim do Woodstock 99, acidente no show do Radiohead, onde um palco caiu, teve muita gente irresponsável produzindo sem o compromisso de promover os valores (contra a misoginia) e segurança dos fans, das bandas, etc. Hoje, a gente está vivendo o pós-pandemia, onde surgiram muitas oportunidades e alta demanda.”

“Tem um monte de gente nova, mas é ainda um mercado dominado pela velha guarda, nossos queridos grisalhos, que mantêm credibilidade e bom relacionamento com o mercado. Ser novo não é garantia de sucesso. Mas acho que o mercado está se renovando. Agora você tem essa geração de 40 anos, que é uma geração em que você ve muito mais preto, muito mais mulher (apesar de estarmos longe do desejado), então existe a mudança e outra forma de pensar, fazer negocio. Na hora que você vê um Feira Preta indo pro Ibirapuera [parque em São Paulo], sendo bem aceita, você vê tambem o público mudando. Eu participei e amei.”

Old fake, new real

“Eu lembro quando meu pai começou a trabalhar com o Banco Real e a Natura, só tinha mulheres de 20 anos fazendo filme de antirrugas. Aí ele botou uma mulher mais velha, com ruga, pra falar de antirruga. Perguntei: ‘pai sera que vao gostar? É isso que querem ver?’. Hoje, nossa, a Natura, que marca bacana. Banco Real, na época, fez o cheque com papel reciclado; era feio, porque não era branco. A gente como ser humano demora um pouco pra aceitar a evolução, né?”

Espaço para novos projetos?

“Eu acho que grandes projetos para São Paulo e algumas outras praças, nem tanto. No Hemisfério Sul, nem digo só Brasil, você ainda depende muito de patrocínio, e o budget das grandes marcas tem limite. O que eu vejo muito de oportunidade é nesses festivais menores. O Primavera Sound acabou se comparando com Lolla e com The Town porque ele foi pra Interlagos, mas ele tava nesse nicho, né? É um festival pra 50 mil pessoas, então as pessoas ficaram com essa impressão de uma melhor experiência.”

“Na hora que você vê que o Coachella não tá vendendo tão bem, eu não acho que é um problema. É que os grandes precisam vender cem mil ingressos, e às vezes você não tem um headliner que vende isso. Talvez a Lana Del Rey não agrade mais a cem mil pessoas. Talvez só o AC/DC, o Metallica, um Iron Maiden, um Radiohead, que em sua grande maioria estão fazendo suas próprias turnês. Então acho que você tá nessa entressafra, mas ao mesmo tempo você anuncia um K-pop em Chicago e vende 15 mil ingressos em duas horas.”

Ensinamentos

Um dos maiores desafios da minha vida foi fazer um Lolla na Índia. O Lolla não foi pra Índia para ficar rico. É estratégia, é construir um mercado. Foi posicionamento. A gente falou: “cara, a gente vai mudar a cena musical da Ásia”. A mesma coisa aconteceu no começo do Lolla na América do Sul. O festival fez possível trazer bandas, fez uma mecânica com três países de uma vez só, tours casadas com Chile e Argentina.

Machismo x budismo

“Tive muita sorte de ter pais do jeito que eu tive, que foram cabeça muito aberta pra época. Meu pai era budista e minha mãe tinha uma livraria esotérica. [O empresário baiano] Nizan Guanaes chamava meu pai de Guimarichana, o zen budista que não gosta de ganhar dinheiro e gosta de abraçar árvores. Então meu pai falava: “seja a melhor Leca que você pode ser e foda-se o resto”.

“Eu não me comparava com os homens. E daí teve muita terapia, livros como Mulheres que Correm com os Lobos, Deusas Todo em Você, da Jane Shinoba…”

“Eu competia de igual pra igual. Acho que isso me dá um lugar de às vezes nem perceber que eu estava nesse ambiente, né? Tanto que eu, uma mulher latina, acabei crescendo profissionalmente em pleno Texas. Eu tinha um lado arrogante, mas porque eu fui criada nesse ambiente. Minha amiga preta não tinha o mesmo lugar seguro. Eu acho que ainda estamos a anos luz do que a gente deseja. Precisa ter mais mulher na música. Um ambiente de trabalho diverso é mais eficiente e dá mais dinheiro, isso é um fato.”

Eu cheguei na Índia pra negociar com o dono do campo de pólo, era a única parte verde no parque inteiro pra gente fazer o festival, e o cara: “cês não vão usar”. Falei: “cê tá muito louco, única grama que a gente tem”. E ele falou: “eu não negocio com mulher”. Não é fácil. Mas acredito que a minha criação me preparou pra situações como essa. 

O cara mais legal da música

“O Dave Grohl é o cara mais bacana da indústria da música hoje. Ele é isso que você tá vendo. Ele é incrível. Numa turnê, o Cage the Elephant estava abrindo pro Foo Fighters, mas o baterista estourou o apêndice e eles iam cancelar o show. Aí falaram, ‘ó, a banda não vai mais tocar porque o baterista tá zoado’. E o Dave respondeu: ‘tá bom, eu toco bateria’. Depois de tocar a bateria pro Cage, ele só trocou de camiseta, passou uma toalhinha e voltou pra fazer um show de três horas.”

Música & ocitocina

“Eu acho que a gente tem que entender também que o entretenimento proporciona felicidade. Precisamos entender que a gente tem que levar uma experiência muito legal pras pessoas, porque é isso que a gente busca, e nós influenciamos gerações, precisamos nos responsabilizar por isso, sabe?”

“Em qualquer tragédia mundial, qualquer uma, não importa, a música é a única que une sem lado político. A indústria estar unida é uma competição saudável e próspera. Porque a indústria precisa se apoiar. Um player se apoia no outro. Se os grandes começarem a investir em educação musical nas escolas, novas pessoas vão se profissionalizar.”

Claudia Assef

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Autora do único livro escrito no Brasil sobre a história do DJ e da cena eletrônica nacional, a jornalista e DJ Claudia Assef tomou contato com a música de pista ainda criança, por influência dos pais, um casal festeiro que não perdia noitadas nas discotecas que fervilhavam na São Paulo dos anos 70.