
Esperanza Spalding: “Música não é busca pela perfeição, mas pela fluência”
Perto de iniciar turnê no Brasil, contrabaixista americana fala com Jota Wagner sobre jazz, música brasileira e Inteligência Artificial
Esperanza Spalding está de volta, e agora para uma série de shows em que brilha como estrela única do palco. Tanto em sua visita no ano passado (para gravar um episódio da série Tiny Desk), quanto em sua primeira vinda, no Rock in Rio 2011, se apresentou ao lado de Milton Nascimento, que, pela longa estrada da vida, dominou os holofotes e acabou figurando como o padrinho brasileiro da sublime contrabaixista, cantora e compositora americana.

Spalding toca dia 14 de setembro no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, dia 18 no Vivo Rio, e finaliza a minitour com show em São Paulo, dia 20, na Audio. Antes, porém, conversou com o Music Non Stop sobre música, inspirações, Inteligência Artificial e, claro, um pouquinho de Milton.
Jota Wagner: Para começar, quero te dizer que não vou perguntar nada sobre Milton Nascimento. Você já deve ter respondido mil perguntas a respeito…
Esperanza Spalding: [Risos] Obrigada!
No entanto, eu conheci seu trabalho através da gravação de Ponta de Areia, e fiquei me perguntando como é que você conheceu a música brasileira…
A primeira coisa que eu ouvi foi Jobim. Eu tinha uns 14 anos, era uma adolescente, no colégio. Ouvi Egberto Gismonti e… poxa, qual é mesmo o nome? Ah, Tânia Maria! Eles me trouxeram a liga de instrumentista. Eu e um amigos gravávamos CDs uns para os outros, e sempre com coisas desconhecidas. Eram grandes playlists, e não havia Milton [risos]! Eu só fui conhecê-lo quando tinha uns 19 anos. Foi realmente impactante para mim.
Eu também fui conhecendo um pouco da música feita em diferentes partes do Brasil. É um país tão diverso, e é uma música do povo. Para mim soa vago e abstrato falar sobre música brasileira, por causa da sua diversidade. Tem a música do Norte, tem o samba, e eu também fui conhecendo todos esses gêneros novos que foram surgindo nesse lugar maravilhoso.
Tem algum outro artista com quem você tem muita vontade de gravar?
Não. Não desse jeito. É preciso acontecer uma conexão, sabe? Aparecer um sentimento entre as pessoas. Por isso, não tenho nenhum desejo específico… Ah, tem o Guinga! Nossa, nem acredito que não estava me lembrando de mencioná-lo na resposta! Aprendi tudo sobre ele e agora sou sua maior fã [a artista fez shows e gravou com o violonista brasileiro diversas vezes, a partir de 2014]. Sua música é realmente completa. É como um lugar…
Eu não fico me preocupando em fazer novas coisas. Se eu conheço algo e o amo, naturalmente topo fazer. Tem que haver uma afinidade ou a vontade de ser o complemento de algo. Para falar a verdade, estou ansiosa para que algo assim emerja de novo em mim. Mas não tem isso de: “nossa, como eu gostaria de gravar isso ou aquilo…”. Foi muito especial conhecer o Guinga e me conectar com sua música. Foi a mesma coisa com o Milton.
Você estudava música clássica na infância. Entrar de cabeça no jazz foi um jeito de fugir de todas aquelas regras e partituras que você aprendeu?
Cara, o jazz demanda muito mais técnica e estrutura do que a música clássica. Você precisa ter todos os requisitos técnicos de tom, ser capaz de ler música, conhecer harmonia e teoria. Os fundamentos mesmo. É só a partir daí que você pode ser capaz de utilizar isso para continuar em um contexto em que você não pode mais controlar.
É engraçado. Eu estava tocando em um festival nesse final de semana e alguns familiares meus foram. E minha melhor amiga disse: “nossa, vocês estavam fazendo uma jam tão legal no palco!”. Então eu entendi que há uma suposição sobre esse tipo de música. No entanto, todo mundo que pensa sobre isso um pouquinho percebe que não tem jeito de nós fazermos aquilo somente no esquema do improviso.
No meu caso, o jazz após um background da música clássica. Ele foi um lugar onde eu realmente poderia usar tudo o que aprendi, porque a ideia de ter de passar o resto da vida lendo partituras e interpretando-as não era muito satisfatória. Então, quando você entra num cenário musical que precisa de improvisações em grupo, pode aplicar toda a técnica e os fundamentos, criando em tempo real, representando o presente e a verdade daquele momento.
Em tempos de Inteligência Artificial, a imperfeição ganhou outro sentido, o de ser mais humano. Como você lida com isso?
É importante para todo músico soar, como você disse, humano. Eu não me preocupo com isso, porque tudo o que estamos fazendo nessa coisa chamada música é compartilhar nosso prazer uns com os outros. E o que te traz prazer quando você faz música? Soar belo para si mesmo, e isso é o meio que o fim da história. O motivo pelo qual a gente estuda, pratica, não é para que seja mais fácil ser perfeito. É para ter mais ar, respiro, mais fluência para comunicar o que você sente, pensa e o que acha belo.

Foto: Holly Andres/Divulgação
Nunca vi a música como uma busca pela perfeição, mas pela fluência. Se você entende o que eu estou dizendo e eu o que você está dizendo, isso é comunicação. E a comunicação entre os seres humanos, de um ser vivo para outro, rola o tempo todo, e a Inteligência Artificial jamais vai entrar nesse papo! É a natureza do nosso planeta e a natureza da vida.
Por isso, me sinto muito grata. Porque é muito raro no mundo fazer isso, se comunicar através da música o tempo todo, como sua principal linguagem. Me sinto abençoada todos os dias e, claro, cuido com muito carinho dos elementos que me ajudam a fazer isso. Poder se comunicar através da música, de uma pessoa para outra, sem nada intermediando além do sistema de som, removendo as barreiras dos idiomas, e tocando os ouvintes e toda a vida que há em volta da gente, como o pessoal do som, os atendentes do bar… Tudo é vida, e nos comunicamos com todos. Isso é sensacional!
Tem uma diferença entre tocar em um teatro, como será seu próximo show aqui no Brasil, e em um festival, onde as pessoas não necessariamente conhecem sua música, não é?
Bem, quando eu estou tocando em festivais, entendo que umas coisas não conseguem se traduzir muito bem, como uma música muito suave, um acapella, porque há muito barulho vindo de outros lugares. Se estivermos tocando em um palco gigante, eu provavelmente vou escolher canções que consigam atravessar o barulho. Até porque eu estou me apresentando para pessoas que não me conhecem. Eu quero a galera junto comigo, envolvida, mas também não quero que pensem que é algo feito sob medida para aquele contexto. Quero que as pessoas se conectem com a minha música, a que eu realmente faço.
Quando você está em um teatro, você pode ter seu tempo, falar um pouco mais, tocar coisas mais suaves, pode sair do roteiro um pouco, talvez nos solos ou coisa assim, porque as pessoas estão lá para ouvir você e o seu trabalho. É como se eles te dessem permissão para ousar mais um pouco. Eles compraram os ingressos e querem ver o que é que eu posso entregar para eles. Fora que o som geralmente é bem melhor!
