Corciolli Foto: Lucio Cunha/Divulgação

Ambient, trance e disciplina: Corciolli anuncia o álbum “Abstracta”

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Perto de lançar novo disco, músico conversa com Jota Wagner sobre sua história, carreira, referências e sintetizadores

Em busca da imperfeição tão necessária em tempos de Inteligência Artificial, José Antônio Marchezani Corciolli, mais conhecido como Corciolli, desfilará seus 32 anos de carreira na música ambiente com o novo álbum Abstracta, com lançamento marcado para dia 18 de outubro — o mesmo dia do ano em que despontou musicalmente para o mundo com All That Binds Us, em 1993.

Três décadas se passaram e ele segue um dos músicos mais amados pelo povo da música eletrônica, especialmente do trance, em que seus álbuns eram (e continuam sendo) tocados nas pistas de chill-out.

O mestre conversou conosco diretamente de seu estúdio na semana em que lançou Discipline (nas plataformas desde 1 de agosto), um dos singles lançados para promover o futuro disco. Falou sobre disciplina também, entre vários outros temas que permearam o bate-papo, como meditação, equipamentos, imperfeições e, claro, sua relação com a música eletrônica.

Jota Wagner: Conheci seu trabalho através de um vinil triplo, lançado em 2001. Um presente do DJ Jason Bralli. Já marcava uma aproximação muito grande entre você e o universo da música eletrônica…

Corciolli: É incrível você ter uma cópia disso… Já é rara. Eu mesmo só tenho uma última aqui, que sobrou. Fizemos uma loucura na época: um vinil tripo… Foi pensando nos DJs, mas era uma dificuldade imensa. Na época, foi uma experiência visionária. Poucas lojas trabalhavam com vinil, no começo dos anos 2000.

Era um época em que muita gente acreditava que o vinil havia morrido, exceto os DJs.

Exatamente. Além da Fnac e da Saraiva, poucas lojas ainda comercializavam vinil. Então começamos a vender em lugares alternativos. Esse projeto foi de um cara chamado Thomas Wall. Um alemão que eu conheci na época em que ele trabalhava com o Nude [um dos primeiros live-acts de trance brasileiros], do Marcelo Gallo e o Gonçalo Vinha. Ele veio com a ideia de fazer um álbum com remixes, para levar minhas músicas para a pista de dança. Eu topei a experiência. Jason Bralli foi um dos que participaram…

Sim, além de Renato Lopes, Level 202, D Julio…

Tem muita gente legal ali. Uma das faixas bombou em Londres, do DJ Ivan [Nave D’Amore – Acid Techno-Rmx]. Chegou a entrar em uma coletânea internacional. Acabamos exportando uma parte das cópias, mas foi uma experiência muito rarefeita.

Você já tinha conhecimento desse universo das raves e dos clubes? Porque você já fazia música eletrônica muito antes disso…

Verdade, mas sempre voltada para a ambient music. Justamente por isso, fazer o disco foi uma experiência de entender como era esse mercado. Mas então entendi que tem tudo a ver com aquela atmosfera criada, bastava criar um beat para a pista de dança e virou uma outra coisa — dance music com textura. É a batida que vai dizer para onde você quer levar a coisa. Eu achei uma experiência muito interessante. Você pega dois mundos aparentemente antagônicos: um desacelerado, da minha música, e outro upbeat, pra cima. Essa união traz muitas riquezas e possibilidades, porque aí entra o DNA do remixer. Pode criar um drum’n’bass, um 2-step, e a textura, que já existia sem o beat, sobrevive.

Eu queria puxar nossa conversa um pouquinho para trás, para saber como você se envolveu com os sons sintetizados. Afinal, você era um pianista…

Cara, eu comecei já querendo ser um sintetizista. O piano, por incrível que pareça, veio um pouco depois. Quando eu tinha lá os meus 11 anos, me deparei com a música do Vangelis e do Jean-Michel Jarre. Como todo moleque daquela época, eu pensei “cara, que som é esse?”. Foi em uma propaganda de cigarros, tinha coisas de computação gráfica. A música era Pulstardo Vangelis.

Vi na televisão e, em uma época sem internet, ninguém sabia o que era. O compacto foi lançado meses depois, porque a gravadora vislumbrou um mercado. Foi o irmão mais velho de um amigo que me falou: “isso é de um cara grego chamado Vangelis”. Então fui atrás dele. Na mesma época, em 1981, estava sendo lançado o terceiro álbum do Jarre, o Magnetic Fields. Me lembro que fui com minha mãe ao shopping, no Museu do Disco, e ela me deixou escolher três discos como presente de natal. Os três foram do Jean-Michel: Oxygen, Equinox e Magnetic Fields!

Arruinei o disco de tanto ouvir. Dai veio o interesse por música eletrônica. Um amigo tinha acabado de comprar o The Man Machine, do Kraftwerk. Conheci também a Wendy Carlos, que na época ainda se chamava Walter Carlos, depois Tangerine Dream… Resolvi que eu queria tocar sintetizador. Mas aqui não tinham aulas disso.

Porque não eram só os discos que não chegavam, como também os instrumentos, né?

Não tinha como. Você olhava tudo aqui com um olhar sonhador…

Aqui no Brasil só tinha uma loja, no centro de São Paulo, perto da Avenida Tiradentes. A gente ia lá e ficava olhando alguns sintetizadores que chegavam. Uma vez eu estava lá e chegou a Rita Lee. Ela comprou um Moog. Chegavam algumas coisas, na época, mas quem tinha dinheiro para isso?

Era impossível com as nossas mesadas. Eu ficava vendo as bandas profissionais que eu curtia, como A Cor do Som, 14 Bis… Então fui fazer aula de órgão eletrônico. Era o que existia. Comecei a ouvir Van Halen, Rick Wakeman, Yes, Genesis… Tive uma fase de rock progressivo. Aí descobri que estes caras tocavam e estudavam piano. Vieram da escola “pianística”. Todos esses caras eram exímios pianistas. Fui aprender, mas nunca deixei o lado eletrônico. Foi uma curva ascendente e, no final, convergente, em que o piano e o synth me ajudaram desde o início.

Uma grande referência da sua obra, que com certeza te ajudou a se aproximar do pessoal do trance, foi a coisa da meditação, da Yoga. Você foi fazer música ambiente por causa de alguma prática?

Eu não sou um típico iogue ou praticante. Costumo dizer que minha forma de meditação vem através da música. Porque se eu for meditar e tiver música, eu fico pensando em como o cara compôs aquilo. A meditação sempre foi muito difícil para mim. Essa coisa de esvaziar a mente, só consigo se estiver em silêncio.

Naturalmente, a minha musica começou a me identificar com essa coisa dos movimentos mais lentos. Eu acho que nos movimentos mais desacelerados, dá para entender melhor a história. A sensação se completa com o intelecto. Tudo isso foi chegando naturalmente a um ponto em que resolvi montar minha gravadora em 93, a Azul Music, para lançar meu primeiro trabalho. Era uma época em que havia esse nicho das terapias alternativas, a yoga, o reiki, meditações trancedentais, e aquilo naturalmente se encontrou.

Discipline é o título de seu mais recente single. Como é a sua disciplina para fazer música?

Eu costumo ter uma rotina. Agora mesmo, antes de falar com você, eu aproveitei o tempo que tinha para estudar. Sentei ao piano e já fiz uma música nova. Abri o computador para escrevê-la, ou amanhã já não sei mais tocá-la. Essa disciplina, na verdade, acaba sendo fundamental. Não dá para viver só no caos. Se você usar o pensamento desordenado e meio caótico com regularidade, você atinge resultados muito legais. Porque você obriga seu cérebro. Seu cérebro precisa dos padrões repetitivos para poder entronizar as coisas. Isso é comprovado pela ciência. Então, se você se obrigar a escrever mil palavras, ou tocar, ou estudar, você incorpora aquilo, e vai se transformando em algo cada vez mais natural.

Corciolli

Foto: Raphael Tartari/Divulgação

Você joga muita música fora?

Cara, eu jogava. Eu acabava não escrevendo o que eu criava. Nesse momento eu tenho umas 30 ou 40 músicas escritas para piano solo. Estou voltando a estudá-las e finalizando-as com alguns detalhes que eu teria perdido se não tivesse escrito. Na parte da produção, a mesma coisa. Eu criava músicas no computador e depois as jogava fora. Hoje, não jogo mais nada.

Esse disco novo, Abstracta, foi feito assim. Liguei todos os instrumentos juntos: piano elétrico, o Fender Rhodes, os Prophet 5, o Juno, tudo aqui no meu estúdio, e só comecei a gravar. Nem sempre pensei para onde ia. E então aprendi a fazer o seguinte: gravo tudo, fecho o computador e vou dormir, assistir a televisão ou fazer outra coisa. No dia seguinte, partia de onde havia parado e seguia gravando. Só depois de uns dez dias é que fui ouvir o que eu fiz. Foi bom. Se você se distancia desse momento criativo e espontâneo, começa a reconhecer coisas muito legais. O lance é desconstruir a expressão expontânea e criar uma ordem nesse caos. Isso gerou o Abstracta. Foi uma experiência muito interessante.

Enquanto discípulo de Jean-Michel Jarre, você pensa em levar toda essa parafernália para um palco? Não é fácil…

Na verdade eu não sei. O Abstracta tem muita coisa interessante para reproduzir ao vivo. Seria impossível reproduzi-lo em um palco, por conta das improvisações. Eu teria os climas, as atmosferas, para poder tocar em cima. O bacana é que é um álbum e um projeto extremamente mutável. A própria Discipline já foi tocada umas cinco ou seis vezes depois da versão lançada, e em todas, saiu um pouco diferente. E isso é demais, né?

Levar isso ao vivo é muito trabalhoso, como você disse, poi demanda montar uns seis teclados, sequencer, um piano acústico… O lugar precisaria de um sistema de som muito legal, algo difícil em termos de Brasil. São poucos espaços quando você sai do eixo Rio–São Paulo. Já toquei em lugares onde você para e pensa: “como é que eu vou fazer um show aqui?”. Para poder reproduzir isso, transformar em experiência para o público, é preciso ter qualidade de som e luz, para criar o ambiente certo.

O Abstracta sairá na mesma data de seu primeiro disco, 18 de outubro…

Foi uma coincidência, estava previsto para o dia 17 de outubro. Então pensei: “espera um pouco, meu primeiro álbum foi lançado dia 18 de outubro de 93”. Então decidimos colocar na mesma data. Nos últimos anos, abriram-se novas janelas para mim. De composição, de experiências, e também, o que é inevitável, a maturidade de três décadas nas costas. A música não é só técnica, também vieram muitas coisas de qualidade no áudio, no sentido de como poucas coisas podem trazer grandes resultados.

Pois é, você já viu muita novidade né. Muita coisa mudou na produção musical. Isso te faz mais resistente com as novas tecnologias?

Não, nunca fui. Sou uma pessoa bastante aberta. Mas eu acho que, pela quantidade, pela multiplicidade de opções que você tem hoje, você tem que fazer escolhas.

Às vezes, tudo isso confunde mais do que orienta…

É uma das razões pelas quais, não por resistência ao novo, mas por opção, tenho voltado mais para a performance de sinteziadores como Minimoog, Prophets e Juno, teclados que têm hoje coisas muito sofisticadas. Estou voltado à experiência pessoal, de retorno àqueles synths clássicos, àquele equipamento que você precisa colocar a mão mesmo. Eu entendo a Inteligência Artificial, mas não a uso em nada do que eu faço, por questão de escolha. Aquilo não sou eu. O barato é a minha imperfeição.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.