Castro Festival Foto: Camila Pridia/Divulgação

Castro Festival: “No mundo queer, todos se encaixam”

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Jota Wagner conversa com Lily Scott e João Felipe Villanova — os nomes por trás do festival que rola neste sábado, 21, com Ney Matogrosso e Ludmilla

O que uma garota com quase duas décadas de experiência na condução de casas noturnas seminais em São Paulo e um empresário “gay que se assumiu muito tarde” fazem quando se encontram? Festa das boas. E o que a dupla de amigos inseparáveis decide fazer após dois anos sofrendo com a pandemia, cheios de bons instintos ao olhar para sua cena, muita coragem e alguma falta de juízo? A transformam em um dos maiores festivais dedicados à cultura queer do Brasil. Esta é a história de Lily Scott, João Felipe Villanova e seu Castro Festival, marcado para o dia 21 de junho no Vale do Anhangabaú.

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A quarta (e maior) edição do Castro traz um line-up de fazer cair o queixo de muita gente, LBGT ou não: Ney Matogrosso (que declarou aos produtores ter este como o “primeiro festival gay” em que ele se apresenta), Ludmilla, Karol Conká convidando Linn da Quebrada e Boombeat e Urias. Honrando suas raízes do tempo em que era uma party label dedicada aos DJs, uma pista de dança recebe Eli Iwasa, From House to Disco, Valentina Luz, Sergio Amorim, Nat Valverde, Trepanado feat. Selvagem e Etcetera.

Na correria que precede a realização de um grande evento João e Lily nos receberam para um gostoso bate-papo sobre a história do festival!

Jota Wagner: Queria que vocês me contassem um pouquinho da concepção do Castro Festival. Como tudo começou?

Lily Scott: Eu e o João viramos amigos na primeira edição do festival! Antes era uma label, uma festa para mil, 1.500 pessoas, sempre sold-out. Depois da pandemia, voltamos como um festival. Vimos que tinha mercado para isso.

Castro Festival

João Felipe Villanova e Lily Scott. Foto: Lusca San/Divulgação

João Felipe Villanova: O nome “Castro” é uma referência ao bairro de São Francisco [EUA], um lugar acolhedor, que defende a causa LGBT e fala sem precisar falar. Um bairro de luta. Eu sou um gay que se assumiu muito tarde. Então, muitos dos meus amigos até hoje são hétero. E todos saem em noites hétero. Passei, então, a conhecer a noite gay. Vi que tínhamos muita coisa legal acontecendo em clubes, mas não tínhamos uma festa com padrão elevado. Nos clubes, muda-se a festa, o DJ, mas o formato é meio padrão. Então veio a ideia de fazer a Castro. Fizemos umas 15 edições e, tirando a primeira, todas foram sold-out.

Vocês já tinham shows na programação?

Lily: Não, só DJs.

João: Era realmente um formato festa. Chegamos a ter dois palcos em algumas edições, mas só com DJs. E no pós-pandemia, a gente falou: “cara, estamos com um público que está com sede de eventos”.  E nós tinhamos um histórico que talvez nos permitisse colocar ali umas cinco mil pessoas. Então decidimos fazer o primeiro festival, com Gloria Groove e Vintage Culture.

Lily: Já havia muito a união desses mundos desde o começo. Nasceu de uma label de música eletrônica, mais voltada para a disco e a house, e às cinco da manhã entrava a Luísa Viscardi, nossa DJ residente até hoje, tocando pop e funk até as 07h pra galera. Sempre existiu essa demanda por uma sonoridade mainstream dentro da festa. Quando a gente foi para o festival, pensamos: “vamos pegar o melhor dos dois mundos”. Porque nossa comunidade nunca havia tido acesso a um evento 100% LBGT com, por exemplo, um Vintage Culture no palco. Juntamos com a Gloria Groove, e o negócio ficou grande.

Quando a gente parte para o pop, se comunica com um público que não é necessariamente LGBT. Isso afetou a frequência do festival?

João: Acho que a gente renova muito o público e este é o motivo de estarmos crescendo há nove anos. Sou de uma geração um pouco mais antiga da noite, e a galera que chega hoje sai uma vez por mês. Mas uma das ideias do festival é se tornar um ambiente de todos. Que abrace todo mundo. Quando eu ia a uma festa, conversava com muitas mulheres e não havia um ambiente onde a gente podia dançar, se divertir, sem ninguém puxando pelo braço, pegando no pescoço… Queríamos uma experiência diferente.

Este ano mesmo, ouvimos do nosso público que o nosso palco eletrônico era todo hétero. Foi de propósito? Não. E o comentário veio como um elogio. Nós não trazemos só artistas LGBT. Nesse ano, coincidiu que os dois headliners são, mas já tivemos Marina Sena, Vintage Culture, que são figuras hétero, mas amadas pela comunidade. Nossas missão é trazer ídolos da comunidade para o palco, independente do gênero.

Castro Festival

Foto: Camila Pridia/Divulgação

Fazer uma festa de sucesso é uma coisa. Pular para um festival é outra totalmente diferente. Lidar com artista, equipamento, troca de palco… Como vocês encararam a mudança?

Lily: Jota, vou ta falar que não tem ninguém numa boa aqui [risos]. Tá todo mundo medicado, em terapia, com a rede de apoio em dia… Mas esse ano o João olhou pra mim e falou: “acabei de receber mensagem da Ludmilla. Ela está dentro”. É uma artista que escolhe onde quer estar, além do cachê milionário. Foi quando ele me disse isso que eu respondi: “vamos fazer!”. A partir disso, nunca mais olhamos para trás.

Ao mesmo tempo, a gente sente que isso é muito importante e necessário, estar aqui levantando as bandeiras que a gente levanta. O nosso festival é para todos, mas é óbvio que a gente tem um cunho político, nossos valores e nossas crenças, e isso é inegociável. Vivemos em um mundo difícil para falar de pautas que cerceiam diversidade.

 

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Esse frio na barriga é gigantesco. Vem em dose tripla, porque fazemos sozinhos e a responsabilidade é 100% nossa. Mas é muito legal. Hoje falei com o manager do Ney Matogrosso e ele veio me dizer que o Ney estava superanimado, porque nunca tocou em um festival gay. “Nunca fui de levantar bandeira porque eu sou a própria bandeira”, nos disse. Já tocou em milhares de eventos e acho que isso é o legal do Castro: a identificação do artista com o público.

Como receberam a confirmação do Ney para tocar no Castro?

Lily: A gente chorou. Chorou de verdade. Ele representa muito da nossa caminhada até aqui. Há dez anos, falávamos que seria um sonho tê-lo no Castro, e agora estamos aqui.

Levando em conta a idade do Ney (83 anos), acredito que as exigências são muitas. Como foi cuidar disso?

Lily: Tanto da Ludmilla quanto do Ney, parece que rolou um alinhamento de planetas. Foi tudo muito tranquilo. Eles estão querendo fazer o show. Eles querem fazer acontecer. Temos também a Karol Conká, que já havia tocado no Castro, então precisávamos oferecer algo diferente. Então ela sugeriu esse show com a Linn da Quebrada e a Boombeat, achamos foda pra caralho. São outras sonoridades juntas. Quando a gente fala de diversidade, não é somente a de corpos, gênero e sexualidade, mas a sonora também.

Vocês têm um teto de crescimento na cabeça? Algo que jamais aceitariam fazer?

Lily: Eu e o João somos como o Pinky e o Cérebro. Um segura e o outro eleva. Essa é a parte boa. Dizer que temos “nãos” é muito dramático da minha parte, mas eu vejo o projeto como uma crescente de experiência para o público.

João: Não podemos perder a essência daquilo que produzimos. 15 mil pessoas já é um número elevado para o que estamos propondo aqui. O que a gente quer é pagar a conta, contar nossa história e ser feliz.

Castro Festival

Foto: Camila Pridia/Divulgação

Como as empresas e o governo veem hoje o mercado LBGT? Falta compreensão?

Lily: Para ser bem honesta, Jota, não falta nada. Tem um monte de gente de olho no pink money. Temos um monte de marcas grandes que, no momento em que é conveniente, pegam toda essa jornada construída, fazem uso dela pra vender produto e depois vazam. Todos reconhecem esses recortes da comunidade LGBT como potencial de consumidor. Principalmente a galera 30+, em grande parte masculina. Agradecemos o dobro pelos parceiros que temos, em um momento em que as marcas não estão mais colocando dinheiro em pautas que falam de diversidade.

Vocês partiram para um novo projeto a partir do ano passado. Contem!

João: São dois projetos. Um não é novo, a Arena do Orgulho, uma decisão que tomamos ano passado [ano em que decidiram não fazer o festival] e que significou dois passos para trás e dez para a frente: a bandeira LBGT estendida no MASP, no dia da Parada. Foi um trabalho nosso, como Castro Festival, articulado por dois anos junto com o time do museu. Nosso outro projeto está mais na área de lazer, arte, cultura e educação.

Lily: Quando fomos para o Vale, tínhamos o braço beneficente do festival. Fazíamos uma festa um dia antes e doávamos todo o lucro para ONGs que a gente elencava. Arrecadamos meio milhão de reais. Foi daí que entendemos que a conta não estava fechando, justamente por causa do dinheiro que estava sendo doado. Olha que loucura!

João: Decidimos entregar esse braço social do Castro. Temos muita vontade fazer algo fora desse momento high energy, de festa. Daí nasceu a Arena do Orgulho, entregue ao MASP entre agosto e dezembro de 2024, com uma série de palestras, mostras de filmes, teatro e oficinas profissionalizantes, tudo de forma gratuita. Um projeto incentivado pela Lei Rouanet, algo tão importante sobre o qual falam muito, mas entendem pouco. Foi um projeto aprovado para fomentar a cultura LGBT. E em 2025, renovamos a ação no MASP por mais um ano.

Esse é um projeto com a sociedade, e não somente com a comunidade, e isso é uma coisa muito legal. Várias pessoas ali absorvendo esse conteúdo que vem da luta de uma pessoa bissexual, trans, etc. São vários recortes, para que a gente consiga falar, com propriedade, de cada um deles.

Lily: Falamos muito sobre o que é a cultura queer. Entendemos que a siga está gigante, LGBTQIAPN+, e às vezes ela separa, até mesmo quem está dentro da comunidade. Nós mesmos. No mundo queer, todos se encaixam.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.