Encontramos Tony Bizarro, um dos personagens centrais da soul music brasileira: “hoje me resta meu nome e olhe lá”

Danilo Cabral
Por Danilo Cabral

Tony Bizarro é um dos arquitetos da música brasileira. Ele não é famoso mundialmente como João Gilberto (equivalente musical ao Niemeyer), mas sabia produzir casas populares muito bem planejadas, com a mesma competência com que fazia mansões para consumo de poucos. Como cantor, começou no rock inocente da Jovem Guarda, porém viu a luz quando ficou amigo de Tim Maia.

Foi Tim quem introduziu o soul e funk americano para uma geração inteira de jovens músicos cariocas, Bizarro incluso. A partir daí só quis saber de balanço e de groove, tendo a oportunidade de, já no posto de produtor, trabalhar com gente do gabarito de Odair José, Cassiano, Som Nosso de Cada Dia e Sidney Magal. No final dos anos 70, arriscou de novo como cantor, juntando um time inacreditável de músicos (o Azymuth todo, Waltel Branco, Robson Jorge e Lincoln Olivetti, entre outros) para gravar um disco de composições próprias, onde pudesse colocar em prática tudo que tinha na cabeça. O resultado foi Nesse Inverno, um disco de soul brasileiro genuíno e que hoje vale ouro em sua edição original.

A vida de Luiz Antônio Bizarro sempre teve música como pilar central, seja com o microfone na mão ou atrás da mesa de mixagem. Mesmo depois de tanto tempo afastado, quatro pizzarias e “uns probleminhas de saúde aí”, Tony diz que pensaria com carinho voltar a se apresentar ao vivo. Aos 69 anos, ele diz que não aguenta um show inteiro, mas “umas três ou quatro dá pra levar”. Para ele e para nós seus fãs, certamente vale a pena.

Depois de um tempinho atrás dele, o encontramos para esta entrevista na loja to Tony Hits no Centro de São Paulo. Dá um play na sonzeira aí embaixo e siga para o papo com o mestre.

Estou Livre – Tony Bizarro

Music Non Stop – Tony, o começo da sua carreira foi como ator, certo?

Tony Bizarro – Sim, como figurante, fazendo cursinho para ator. Sendo figurante, você aprende a ter a cara de pau para atuar. Quando eu tinha 14 anos, em 1962 ou 63, fui lá na Rádio Nacional e vi que era fácil cantar e cantei (risos). O Antônio Aguillar resolveu então fazer um disco com os artistas que se apresentavam em seu programa, Ritmos para a Juventude, com Demetrius, The Jordans e eu fui lá e cantei. De repente eu era o cara da soul music e tava fazendo apresentações na Chic Show e Zimbabwe, os bailes dos blacks. Fui cantando e cantando, e quando eu vi, estava contratado pela Polydor para produzir os discos da gravadora. Discos como Sidney Magal, Odair José, que não tinham nada a ver com a minha música!

Music Non Stop – O primeiro disco cheio que você lançou foi o Tony & Frankye?

Tony Bizarro – O Frankye (Frank Arduini) já tinha um conjunto antes. Nós éramos muito amigos, eu ía aos ensaios do conjunto dele e logo comecei a cantar. Dos ensaios nós fomos para os bailes e logo em seguida formamos a dupla. Em 1968, um executivo da RCA nos viu no Almoço com as Estrelas e nos chamou para fazer o disco. Mas ninguém entendeu o que era aquilo e não aconteceu nada! Era um som muito moderno para a época. Tinha muito balanço e um pouco de guitarra “suja”, então ninguém entendeu. Mas foi ali que eu comecei minha aproximação com o Tim (Maia), aquela coisa do groove, fui contaminado com a doença do groove.

Music Non Stop – Foi com o Tim Maia que você começou a se aproximar do balanço?

Tony Bizarro – Foi, foi com ele mesmo. Muita gente entrou nesse caminho pelo Tim: eu, o Fábio (de Lindo Sonho Delirante), Renato Terra, Junior Mendes, o Robson Jorge, Lincoln Olivetti, todos eles. É tudo culpa do Sebastião. Quando ele chegou dos Estados Unidos, chegou com essa coisa nova, esse som novo. Não tinha como a gente ouvir aquele tipo de som que ele trouxe, não tocava em lugar nenhum. A Rádio Difusora de São Paulo tocava alguma coisa assim, mas era informação muito vaga, diferente de como era com o Tim apresentando (imitando a voz do Tim Maia) “mermão, aqui é o seguinte, Si Menor”. Ele ensinou mesmo como era, sentava na bateria e fazia a levada. Ele foi ensinando a rapaziada.

Tim Maia – Ela Partiu

Music Non Stop – Como era sua relação com o Tim Maia?

Tony Bizarro – A gente começou a cantar junto, eu fazia vocais para ele, tocávamos o dia inteiro. Nessa época eu morava no Rio, e ele tinha uma casa bem legal lá na Barra, bem afastada, então a gente tocava o dia todo. Eu ia aprendendo, ia assimilando, cantando com ele e com Os Diagonais. Começou a surgir um negócio em mim e fui fazer meu disco.

Music Non Stop – Então entre o Tony & Frankye e seu disco solo teve um bom tempo sem gravar…

Tony Bizarro – O Tony & Frankye foi uma decepção tão grande que eu dei um tempo. Comecei a entrar numas de ouvir Novos Baianos, mas aquilo não era a minha. Até que um dia encontrei o Jairo Pires (produtor musical, tido como descobridor do Tim Maia), na Avenida Rio Branco, no Rio e ele me chamou para conversar, lá na Polydor. Fui lá, conversamos e acabou que fiz o compacto O Carona, como Tony e o Som Colorido, que na verdade era eu e a banda da Polydor.

Tony & O Som Colorido – O Carona

Music Non Stop – Foi a partir desse compacto que você passou a trabalhar para a Polydor como produtor?

Tony Bizarro – Comecei a trabalhar junto com o Jairo Pires na produção. Ninguém acreditava que era eu produzindo Odair José, Diana, Magal, era muito diferente do meu som próprio. Então o Jairo recebeu um convite da CBS, mas ele não estava com vontade de entrar nessa sozinho e me chamou para ir junto. Era um salário bom, mais não sei quanto de comissão, então fomos lá falar com a CBS, que na época estava parada, quebradinha. Eles acabaram entregando a gravadora na mão da gente. O primeiro disco que fiz lá foi o Som Nosso de Cada Dia.

O Som Nosso de Cada Dia – O Som Nosso (álbum completo)

Music Non Stop – O segundo deles? O que tem a faixa Pra Swingar?

Tony Bizarro – Isso, esse mesmo! Pra Swingar estourou, foi uma loucura. Pedrinho na batera, Pedrão no baixo, Manito nos teclados, era uma banda muita boa.

Music Non Stop – Mas como você chegou naquele som? Quem veio com essa ideia de fazer um som suingado? Como foi gravar este disco?

Tony Bizarro – Eu deixava todo mundo à vontade. Alguém chegava com a linha de baixo (faz a linha com a voz), colocava uma ideia em cima, não tinha restrição. Fique à vontade, vamos criar, vamos fazer música. Eu tinha o Jairo atrás de mim, então não tinha problema em mostrar o que estávamos fazendo, ele podia falar “não tá legal, muda isso, muda aquilo”. E quando estourou o Som Nosso, provou que estávamos certos.

Music Non Stop – Tony, fala mais sobre o teu processo de produção.

Tony como produtor de Magal: “estas são as músicas, aprende aí as letras”

Tony Bizarro – Então, deixava os músicos à vontade, mas sempre dentro de um quadrado (risos). Com o Som Nosso de Cada Dia eu perguntava quem tinha música, eles mandavam para mim e eu fazia a triagem. Fazíamos uma votação também, era bem democrático. A palavra final vinha no estúdio, se com a execução da música ela entraria ou não no disco. Mas era diferente com outros artistas. Com o Magal, ainda na Polydor, eu selecionava as músicas e passava para ele – “são essas, vai aprender as letras” – falava com o maestro, passava os arranjos e vamos gravar.

Music Non Stop – Você que montava a banda que acompanharia o artista no estúdio?

Tony Bizarro – Bom, as bases das músicas eram feitas, na sua maioria, pelo Azymuth, que sempre trabalhou comigo. Então nas bases você já “balançava” tudo, fazia o que podia e deixava rolar, deixava a coisa acontecer. Mas cada caso era um caso, não tinha uma fórmula, dependia muito do artista. Eu costumava deixar o baixo mais gordo, com as notas juntas ao pedal do bumbo do Mamão (baterista do Azymuth), aquela coisa para deixar meu estilo. Mas sempre tinha o lado comercial, pois a chefia sempre olhava para os números e ficava no nosso pé. Você tinha que pensar que tinha que vender discos.

Um alô do Tony, pra você, leitor do Music Non Stop

Music Non Stop – O catálogo da Polydor era incrível, não era tão difícil assim vender os discos, não?

Tony Bizarro – Na época, a Polydor era a principal gravadora do Brasil, o Midani (André Midani, lendário ex-presidente da Polydor) e o Jairo fizeram um bom trabalha lá. Tanto que quando a CBS veio contratar a gente, eles queriam aquele posto. Depois de um tempo, conseguimos fazer a mesma coisa com a CBS, torná-la a gravadora número 1.

Music Non Stop – Em algum momento você pôde escolher com quais artistas queria trabalhar?

Tony Bizarro – Sempre tinha aquele negócio de pessoas que chegavam para mim e diziam: “você precisa ouvir esses garotos!”. Era num bairro aqui de São Paulo, depois do Butantã, onde o pessoal do Som Nosso ensaiava. Fui até lá, vi o Pedrinho tocando e cantando para caramba e logo levei eles para o Rio, fiz o contrato com a CBS e gravei o disco. Quer dizer, fui eu quem “descobriu” esse lado do Som Nosso de Cada Dia, quem ajudou a formar o som deles. Na primeira reunião de produção com eles, o Jairo me fala “vocês está louco, você está pensando na sua música e não no que vai vender”. E foi o que foi.

A formação original do Som Nosso de Cada Dia: banda que estourou com Pra Swingar foi descoberta por Tony

Music Non Stop – Vamos falar um pouco então do seu disco solo, Nesse Inverno. Você já tinha as músicas? Foi juntando ao longo do tempo, foi compondo enquanto gravava, como foi?

Tony Bizarro – Eu fui fazendo enquanto gravava. Quer dizer, tem um processo, você escolhe as músicas, o repertório, mas nesse caso entrei no estúdio e fui fazendo. A criatividade sempre fala mais alto que a razão, eu tirava o que não ficou legal, lembrava de outra e gravava e assim ía. Mudava a bateria, mudava o arranjo, sempre com criatividade. Tudo partiu da faixa Nesse Inverno, que eu gravei e ficou legal. Fomos fazendo o disco a partir dela.

Ouça Nesse Inverno no Spotify

Music Non Stop – O disco foi basicamente composto por você e o Carlos Lemos?

Tony Bizarro – Exatamente. O que a gente fez, para não ficar tudo em nosso nome, foi creditar algumas faixas como sendo da Tulia, irmã do Carlos Lemos, e da Yara, minha irmã. Para não ficar aquele negócio de tudo composto por uma dupla só (risos). E quem tocou no disco foi o Azymuth, o Robson também, o Lincoln Olivetti deu uma força. Hoje em dia você não tem uma banda desse porte, dessa categoria.

Music Non Stop – A estreia do Robson Jorge e Lincoln na produção foi no teu disco?

A dupla de ouro do swing nacional, Lincoln Olivetti & Robson Jorge fez os arranjos do disco Nesse Inverno

Tony Bizarro – Eu que trouxe os dois para tocar comigo. O Lincoln eu conheci nos bailes, fui fazer um show no subúrbio do Rio e ele tava lá tocando com a banda dele, ele e uns paraguaios lá. Começamos a conversar, ele me chamou para ir até a casa dele. Fui lá, ele tocou maior sonzera, eu disse que ele estava tocando no lugar errado, que ele tinha que tocar essa suinguêra num lugar melhor (risos). Quando fui fazer meu disco, chamei ele para fazer os arranjos todos.

Lincoln Olivetti – Brazilian Boogie Boss (1978 – 1984)

Music Non Stop – O Robson Jorge veio junto com ele?

Tony Bizarro – O Urubu (apelido do Robson Jorge) já tocava com a gente desde o Tony & Frankye, ele era nosso guitarrista. Na época do Nesse Inverno ele começou a tocar teclados. Ele tocava muito, muitas vezes o Lincoln saia dos teclados para o Urubu tocar.

Music Non Stop – Foram os dois que trouxeram esse novo som dos sintetizadores, novidade na época, para o som brasileiro?

Azymuth: Ivan Conti, José Roberto Bertrami e Alex Malheiros

Tony Bizarro – Foi o Bertrami (tecladista do Azymuth). Quem trouxe o primeiro Moog para o Brasil foi ele, e o Lincoln foi na cola. A diferença dos dois é que o Lincoln era mais do balanço, o Bertrami era mais do jazz, da bossa nova, uma coisa mais rígida. O Lincoln era mais porra-louca.

Music Non Stop – E definiu uma sonoridade para o que veio depois dele.

Tony Bizarro – Sim, era o som do estúdio dele, a acústica do local, o equipamento que ele tinha. Lincoln tinha uma situação financeira confortável, tinha família rica. Ele viajava e voltava cheio de instrumentos, de novidades. Eu ía buscar junto com ele, as coisas chegavam aqui de navio e tinha que ir no porto pegar. Quando ele trouxe o primeiro teclado Oberheim, fomos lá pegar e parecia um caixão de defunto (risos). Quase não coube no meu Maverick.

Music Non Stop – Ele também trazia discos e músicas de fora?

Tony Bizarro – Não, esse era meu departamento. Eu e ele entrávamos no setor internacional da CBS e debulhávamos aquilo lá. A gente ouvia tudo o que você pode imaginar, chegava dos Estados Unidos, a gente já estava ouvindo. Sabia das novidades, do que era novo, do que era sucesso. E passava aquilo para eles também, tocava Earth, Wind & Fire para eles de manhã e à noite eles já estavam fazendo a levada dos teclados em casa.

Music Non Stop – E depois do disco solo, o que aconteceu?

Tony Bizarro – Na realidade, depois do Som Nosso, eu produzi pouca coisa. Era a época do rock, vinha muita banda de rock, que não era a minha. Eu passava todas elas para o Guti (Augusto César Nogueira de Carvalho, produtor do A Cor do Som, Frenéticas e Kid Abelha, entre outros). Então não pintava muito coisa na minha praia, eu acabei me afastando um pouco da música e indo para o ramo das pizzarias, cheguei a ter quatro.

Music Non Stop – Você acha que ainda tem muita coisa a ser descoberta no groove brasileiro? Muita coisa que ficou enterrada nos arquivos das gravadoras?

Tony Bizarro – Tem muito! Lá no estúdio do Lincoln mesmo tem muita coisa, era um ponto de encontro, todo mundo ía lá. Ía anoitecendo e chegando o Oberdan (Banda Black Rio), chegava o Paulinho Batera (que tocou com todo mundo da MPB, inclusive Tom Jobim e Som Imaginário), Paulo César Barros (Renato e Seus Blue Caps) e muito outros para fazerem um som. E o Lincoln não perdia nada, ele gravava tudo! Ele tem umas fitas de 8 canais, tudo gravado, um acervo enorme. Ele teve o mesmo papel do Tim – que estava nessas sessões frequentemente – de juntar esses músicos todos. A turma era uma só, a rapaziada era a mesma e não deixava ninguém de fora entrar. A harmonia era aquela, mas ninguém de fora sabia como fazer (risos).

A farra no estúdio de Lincoln Olivetti era intensa

Music Non Stop – Você tem alguma participação em algum disco que não foi creditada?

Tony Bizarro – Tem vários que não vou me lembrar de cabeça. Os primeiros discos do Tim Maia estou em todos, canto em todos. Primavera, por exemplo, eu estou lá. Na época do ácido, lá pelo Racional, ele estava tão doidão que gravava qualquer coisa e quando chegava na reunião de produção achava tudo ruim (risos).

Tim Maia – Primavera

Music Non Stop – Para você foi uma surpresa ele ter largado tudo para se converter à Cultura Racional?

Tony Bizarro – Ele nunca largou nada, né? Era tudo conversa mole. O Tim era altamente comercial, ele fazia tudo pensando na grana. Tanto que ele lançou os discos dessa fases aí pela gravadora dele, era um cara muito comercial e, acima de tudo, comerciante.

Music Non Stop – Você sabe que seus discos atualmente são cultuados e disputados no tapa?

Hoje em dia me ligando perguntando se eu tenho o meu disco em casa. Não tenho! Tenho meu nome e olhe lá

Tony Bizarro – É, eu sei. De vez em quando me ligam, me procuram perguntando se eu não tenho o disco em casa. Mas eu não tenho não, tenho o meu e olhe lá. Não dou, não vendo, não empresto (risos). Eu fico orgulhoso por isso, as pessoas reconhecerem meu trabalho, fico muito feliz. Fiz tudo com muito sentimento, foi muito bom.

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