St. Vincent, 2021. Divulgação

Do experimentalismo ao fenômeno pop: as raízes do sucesso da genial cantora e guitar hero St. Vincent, uma das grandes artistas da nossa época

Letty
Por Letty

O Music Non Stop fez uma imersão na trajetória da artista, que lançou seu último álbum no dia 14 de maio, para entender como ela foi do art rock experimental ao fenômeno pop sem perder sua singularidade.

St. Vincent, 2021. Divulgação

De um inicio de carreira experimental e provocativo a uma revolução no pop. Deciframos a origem de St. Vincent.

Junho de 2009. Uma mulher tímida, de cabelos pretos e encaracolados, sobe no palco do programa Austin City Limits empunhando uma guitarra. Acompanhada de 5 músicos, ela faz uma apresentação intimista tocando canções de seus dois álbuns. Na instrumentação e nos arranjos de sopro e cordas, cuidadosamente pensados para reproduzir as dinâmicas das gravações de estúdio, também há espaço para riffs dissonantes e fuzz.

Naquele momento, ninguém conseguiu definir com precisão que tipo de som estava acontecendo ali – ou até mesmo por qual nome chamar a artista; era difícil saber se St. Vincent era o seu nome ou o da banda. “Uma mina fofa de Dallas com uma bela voz e uma guitarra de cair o queixo”, escreveu um espectador poucos dias após a apresentação. Annie Clark já tinha certa notoriedade no cenário musical experimental: estudara na Berklee School of Music e começara sua carreira sendo musicista de apoio do grupo The Polyphonic Spree e do cantor Sufjan Stevens.

Quase uma década depois da apresentação no ACL, Annie se apresenta no festival Austin City Limits em 2018. A mina fofa havia desaparecido, dando lugar a uma artista imponente que orquestrou um espetáculo visual e sonoro. Quando ela surge no palco, de cabelo liso e botas laranjas que se estendem até suas coxas, traz consigo toda a força de uma artista que ganharia o Grammy de Melhor Álbum Alternativo no ano seguinte – e quebraria um hiato de 20 anos sem uma mulher levando a estatueta da categoria para casa.

 

O começo de tudo

Antes de se personificar em St. Vincent, Annie Clark lançou seu primeiro EP em 2003, quando ainda era aluna do Berklee College of Music. Ela também teve muita influência de seu tio, o guitarrista Tuck Andress, conhecido por seu estilo único de fingerstyle – notavelmente herdado por ela. Ao lado dele e de sua dupla de jazz Tuck & Patti, Annie teve a oportunidade de fazer alguns shows e incrementar seu repertório.

O EP Ratsliveonnoevilstar condensa, em 3 canções, a genialidade e o frescor de uma artista em início de carreira, disposta a explorar harmonias e sonoridades que provocam um estranhamento nos ouvintes. O resultado dessas experimentações é um álbum que alcança o math rock com elementos de jazz, mas que, ainda que muito técnico, é acessível.

Por mais que essa descrição pareça não condizer com a St. Vincent que conhecemos hoje, muito do que notamos atualmente em sua obra é uma adaptação de todas essas referências mais eruditas e não-convencionais que ela acumulou ao longo de sua formação. Vale destacar que Ratsliveonnoevilstar (palíndromo criado pela poeta Anne Sexton) foi gravado por Annie ao lado de dois colegas de faculdade, o baixista Mark Kelley e o baterista Walker Adams.

 

 

A construção de St. Vincent

Em 2006, Annie adotou o nome St. Vincent – uma homenagem ao nome do meio de sua bisavó e ao hospital onde morreu o poeta Dylan Thomas – e lançou o EP Paris Is Burning que, assim como o primeiro, contém 3 canções. O trabalho se encerra com uma bela versão da música These Days, de Nico. Em uma sessão gravada pela 4AD no Atlantic Sound and Union Hall, no Brooklyn, Annie mostra uma veia muito poética em uma apresentação semiacústica: acústica, pois há somente ela e uma Telecaster no palco; semi, pois a artista se utiliza de timbres que transcendem as fronteiras de um show acústico, e desde já predizendo a dificuldade de enquadrá-la em qualquer gênero musical.

 

O primeiro full da carreira finalmente chegou no ano seguinte: Marry Me, lançado pela gravadora Beggars Banquet, já foi bem recebido pela crítica e pelo público. O álbum é uma extensão de seus experimentalismos anteriores, mas agora já começa a tomar uma roupagem mais pop. Além disso, é a partir desse trabalho que Annie começa a partir para o art rock, estreando clipes mais surreais conceituais e surrealistas.

Ela ainda se mantém nessa estética ao lançar o segundo álbum, Actor, co-produzido por John Congleton e lançado em 2009. Mas, desta vez, Annie deixa um tanto de lado os riffs e frases de guitarra e os substitui por arranjos mais sofisticados de cordas e sopro que se conectam a melodias de uma voz suave, criando uma ambiência cinematográfica. Em uma entrevista à Billboard feita na época do lançamento, a artista revelou que suas maiores inspirações para a construção desse álbum foram os filmes da Disney e de Woody Allen. “Eu era a presidente do meu grupo de teatro. Fazia peças para o ensino médio. É algo que amo, mas para o qual não levo o menor jeito. Mesmo assim, não deixei de aproveitar tudo aquilo. Eu amava absolutamente tudo, do palco às luzes e aos bastidores”, revelou.

 

De artista a ícone 

Amparada pela boa recepção de seus dois primeiros álbuns, Annie Clark deu continuidade à sua verve teatral ao conceber Strange Mercy. Lançado em 2011, seu terceiro full também foi produzido em parceria com John Congleton. Nele, St. Vincent se mostra decidida a seguir pelo caminho onde o experimental encontra o pop e o rock. Nota-se uma clara ampliação de elementos sonoros – sintetizadores começam a penetrar no som e os arranjos crescem e dialogam entre as canções. Annie conta que o processo de composição desse álbum foi diferente dos outros. Para criar e desenvolver Strange Mercy, ela se isolou no estúdio da banda Death Cab for Cutie para evitar interferências  que atrapalhassem esse processo e ter espaço para deixar sua criação fluir. E isso fica nítido ao compararmos a evolução de Actor com Strange Mercy.

Tudo se encaminhou para que St. Vincent fincasse o pé de vez nessa realidade sonora. Mas as 30 mil cópias vendidas nas três primeiras semanas do lançamento e a escalada à 19ª posição da Billboard 200 não foi o suficiente. Annie Clark queria mais.

Foi então que, em 2012, ela lançou Love This Giant em uma parceria com David Byrne. O que era para ser uma parceria pontual para um show acabou se tornando um álbum com 12 músicas. “Originalmente, nós iríamos tocar juntos em um evento beneficente em uma livraria. Então, pensei: ok, vai ser somente eu, ele e algumas guitarras e pronto. Mas é óbvio que tudo foi crescendo e crescendo”, conta a artista. Juntos, eles fizeram a Love This Giant Tour de setembro de 2012 até setembro de 2013, contando com um naipe de sopros e até bailarinos.

É provável que essa parceria tenha sido o trampolim para St. Vincent voar ainda mais alto. No final de 2013, ela assinou com a Loma Vista Recordings e logo lançou a faixa Birth In Reverse, primeiro single de seu quarto álbum, epônimo (2014). Nesse momento ela reaparece com um conceito visual definido e inédito: o cabelo descolorido e roupas compridas e largas. Um estilo de uma “líder de um culto religioso de um futuro não muito distante”, como ela mesma descreveu.

A partir daí, ela começou a olhar para o visual, de fato, como uma arte à parte que complementa seu trabalho sonoro. Annie estava deixando de ser uma simples musicista e compositora para se tornar um ícone. Ela se certificou disso ao ganhar seu primeiro Grammy em 2015, na categoria Melhor Álbum de Música Alternativa; feito que só havia sido concretizado por uma mulher até então: Sinead O’Connor, em 1991.

St. Vincent estava prestes a explodir. Era só uma questão de tempo.

 

 

Masseduction e a chegada ao pop

Desde o álbum epônimo, a artista demonstrara o direcionamento de sua estética a uma concepção mais futurista, embora ainda mergulhada em seu clássico surrealismo. Foi com o álbum Masseduction, de 2017, que ela se ancorou em uma distopia visual e sonora tão singular que a levou diretamente para o 10º lugar da Billboard 200. Seu novo visual plástico e artificial se transformou em sua marca registrada. Annie passou a ocupar não só palcos de todo o planeta, mas eventos luxuosos e revistas de moda: posou para a GQ vestindo peças de alta costura e fez campanha para a Tiffany & Co..

Masseduction, gravado no icônico Electric Lady Studios, é a compilação e o desenvolvimento de anos de fragmentos de letras no bloco de notas do celular e gravações de voz acumuladas ao longo de suas turnês mundiais. Embora tudo isso tenha se desdobrado em um trabalho extremamente comercial (não no sentido pejorativo), Annie confessou que o teor de Masseduction é muito subjetivo. “Se você quiser conhecer a minha vida, ouça este disco”, declarou. A propósito, seus tios Tuck e Patti fazem participações especiais no álbum.

Apesar da subjetividade, as músicas apresentam um tom irônico em críticas satíricas de um mundo pasteurizado e espetacularizado – que alcançam sua maior expressão na canção Los Ageles. Talvez Annie esteja debochando do lugar aonde ela mesma chegou e utilizando-se dele para cutucar feridas coletivas e individuais.

 

Teorias e confabulações à parte, é fato que Masseduction levou St. Vincent a um lugar jamais imaginado e até improvável para uma artista cujas raízes estão no submundo do rock e do jazz. E ela é uma das raríssimas artistas que conquistou, ao mesmo tempo, a alcunha de popstar e rockstar. Em 2016, lançou sua linha de guitarra em parceria com a Music Man, que se popularizou em 2018, quando Jack White se apresentou no Saturday Night Live com uma Vincent Blue.

Obviamente, o álbum produzido por Jack Antonoff (que já trabalhou com artistas como Taylor Swift e Lana Del Rey) rendeu muitas aclamações: foi o quarto álbum mais citado nas críticas daquele ano, além de ganhar duas categorias do Grammy e ter uma indicação. Depois disso, seguiram-se a turnê Fear of the Future (que desembarcou no Lollapalooza em 2019) e a apresentação com Dua Lipa, na cerimônia do Grammy de 2019.

 

Daddy’s Home: o álbum que já nasceu clássico?

Quando uma artista chega ao patamar que Annie Clark chegou, mídia e fãs ficam na expectativa dos próximos passos. Todo mundo sabe quão difícil é parir uma obra-prima. Mas e depois dela, o que resta? Essa é uma pergunta valiosa para artistas. Muitas e muitos deles se perdem após o lançamento de um trabalho muito aclamado. Suas identidades acabam sendo tragadas e cooptadas pela indústria musical na tentativa de se manterem no topo.

Mas o que aconteceu com St. Vincent foi exatamente o contrário.

Daddy’s Home, lançado no dia 14 de maio, é a prova de que seu sucesso astronômico deu-lhe ainda mais ferramentas para que ela trabalhasse seu processo criativo de forma cada vez mais ousada e robusta. O álbum pôs fim à era Masseduction e ao visual plastificado. Agora, entra em cena uma artista que mergulhou no que há de mais revolucionário no cenário musical da década de 70 – como Stevie Wonder e Sly & the Family Stone – e voltou de lá com um álbum que, ao que tudo indica, já nasceu clássico.

Novamente, este é um trabalho muito pessoal, cuja inspiração vem de um fato que Annie tentou esconder da mídia durante muito tempo: a prisão de seu pai, que durou dez anos. Enquanto a carreira da filha decolava, ele estava encarcerado por dar um golpe financeiro avaliado em mais de US$ 40 milhões. A história chegou ao fim em 2019, quando ele foi solto, e Annie viu nela a matéria-prima de seu novo trabalho.

St. Vincent é de uma grandiosidade ímpar. Sua genialidade e engenhosidade é tamanha que as comparações à fase Young Americans de David Bowie parecem mais uma restrição do que um elogio. Ver a artista criando seus próprios limites para depois superá-los é ter o privilégio de acompanhar, em tempo real, a evolução e a transcendência de uma mulher completamente apaixonada pelo que faz. “Nós não nos tornamos bons lutadores sem deixar um pouco de sangue no tatame”, disse ela, em entrevista ao The Guardian.

A boa notícia é que ela já é uma ótima lutadora. Agora, cabe a nós vê-la brilhar cada vez mais.

Letty

cantora, compositora, guitarrista, entusiasta do faça-você-mesma e das mirabolâncias artísticas inquietas e independentes.

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