Discos Foto: Nihal Demirci [via Unsplash]

Discos não morrem: heranças, descobertas e despedidas em 33 rotações

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Neste Record Store Day, Jota Wagner investiga o que acontece com preciosas coleções de vinil depois do falecimento de seus donos

“Eu não tinha ideia do que iria ouvir quando eu coloquei o disco na vitrola, mas foi louco, e na hora, quis mostrá-lo para os meus amigos”, contou Jula, canadense de 24 anos, ao jornal inglês The Guardian. A garota falava sobre o álbum do compositor argentino Waldo De Los Ríos, um dos dez mil discos que herdou de seu pai, Richard, recentemente falecido.

Jula se tornou uma celebridade instantânea na internet, com mais de 500 mil seguidores, desde que decidiu fazer uma emocionante homenagem ao pai. Ouvir todos os discos, aleatoriamente, e por conselho de uma amiga, mostrar isso em suas redes sociais, no esquema “um disco por dia”. A garota fez da música uma forma de comunicação com Richard, e desde então vem espantando o mundo através do bom gosto e ecletismo que o colecionador tinha, em uma paixão que levou por toda a vida (agora eternizada graças à filha).

A eternidade, por sinal, é uma das maiores qualidades dos discos de vinil. Bem cuidados, podem durar para sempre, resistindo às intempéries do tempo, a mudanças no mercado da música e, principalmente, à vida de seu dono. E é justamente a morte a responsável pelas mais intrigantes, misteriosas e curiosas histórias das coleções pessoais de discos de vinil, um produto que, com o passar do tempo, vai se tornando mais e mais valioso, principalmente quando a quantidade disponível de cópias físicas vai rareando. O disco mais caro já vendido através da plataforma de intermediação de vendas de vinil Discogs é de um produtor desconhecido de drum’n’bass que só teve dinheiro para prensar uma única cópia de seu single.

Engana-se também quem pensa que, com o advento da internet e do mundo digital, todas as músicas já feitas estão disponíveis a um clique de seu Spotify. Um estudo da Library Of Congress, nos Estados Unidos, estimou que 87% de toda a música já gravada no mundo jamais foi digitalizada. Muita, mas muita coisa mesmo, só existe majoritariamente em discos de vinil. Dado para deixar qualquer colecionador com urticárias de ansiedade, pensando no próximo garimpo.

Mas o que acontece quando o dono de uma coleção de discos falece? Praticamente tudo. São histórias que vão desde a completa ignorância do valor daquela pilha de discos tão amada pelo ente querido quanto o completo desleixo em relação a uma paixão por tanto tempo cultivada. Captain Wander, DJ e dono da loja online Phono, foi chamado às pressas para avaliar uma coleção de três mil discos encontrada em estado de deterioração escondida no sótão de uma casa que estava sendo demolida. Nem mesmo a família sabia da existência da coleção.

“Fui chamado pelo irmão de um colecionador que havia falecido. Coleções de artistas inteiros, praticamente intactas. Quando fiz a avaliação correta do valor, fiquei sabendo que várias outras pessoas já haviam feito propostas ridículas, tentando levar vantagem sobre a falta de conhecimento da família”, conta Wander, lembrando-se de um dos vários casos em que isso acontece.

Mimi, tradicional comerciante de vinil de São Paulo com sua Show Me Your Case, loja online que acaba de ganhar sua versão física — a Collectivinyl na Galeria Metrópole —, também já testemunhou muitos casos onde a família, ao se deparar com aquele mundarel de discos, se vê perdida:

“Há casos de DJs e colecionadores que já partiram, e que despertam uma curiosidade na comunidade: ‘o que será que a família fez com aquela coleção?’. É um assunto que desperta curiosidade em outros colecionadores e vendedores. Teve coleções que eu paguei mais do que o cara me pediu, pois a pessoa não sabia nada sobre o assunto”, conta ao Music Non Stop.

Leo Bigode, da loja Monstro Discos, de Goiânia, conta um outro lado curioso do colecionador, o apego: “fui até o interior do estado conhecer um radialista, já acamado e com uma doença terminal, dono de uma coleção de oito mil discos. Mesmo sem poder mais ouvi-los, jamais aceitou se desfazer deles. Quando veio a falecer, o mesmo apego foi transferido para a viúva”.

A relutância em se desfazer da coleção do marido faz com que ela recusasse todas as ofertas e, quando pensa no assunto, exige valores muito maiores do que os de mercado em cada cópia. Quem vai ouvir esses discos no futuro? Nem Bigode ou qualquer outra pessoa sabe.

Como no Brasil é raro o costume de se fazer testamentos, praticamente não existem histórias de acervos que foram doados a museus e bibliotecas, por exemplo. Para quem não conhece nada de música, aquela coleção enorme acaba se tornando um transtorno para quem as herda. E há casos ainda mais absurdos, onde os discos são simplesmente… jogados no lixo.

Foi o que me lembrou o DJ Paulão, dono da Patuá Discos, sobre o episódio que ficou conhecido como o “Verão da Lata” dos colecionadores de vinil. Verão da Lata, para os mais novinhos, foi o nome dado para o sensacional verão de 1987, quando milhares de latas lacradas contendo maconha (da boa) começaram a aparecer no litoral do Rio de Janeiro, entre as praias de Cabo Frio e do Cassino. Estima-se que 22 toneladas da erva apareceram, boiando, como um presente de Jah para os banhistas do estado. A distribuição, que envolveu até investigação do FBI, foi feita pelos tripulantes de uma navio chamado Tunamar, vindo carregado da Austrália e interceptado por narcotraficantes caribenhos. Para se livrar da treta, os marinheiros jogaram toda a maconha no mar, trazida pelas correntes às praias fluminenses.

Mas o que isso tem a ver com disco de vinil? Dia 05 de setembro de 2018, quem passou pela Avenida Sumaré, em São Paulo, deu de cara com uma montanha de discos jogados na calçada, muitos com qualidade impecável. As fotos e vídeos do tesouro se espalharam pela internet, e em pouco tempo centenas de pessoas se ajoelhavam na calçada procurando discos de valor (sentimental ou financeiro mesmo) com mais avidez do que os banhistas da praia procurando latas “da boa”.

Jogar “entulho” na rua é ilegal e passível de multa, e por isso ninguém jamais ficou sabendo quem era o verdadeiro dono da imensa coleção de discos, que agora está espalhada em casas de amantes do vinil e lojas de discos usados.

“Me disseram que foi uma família que quis se livrar da coleção de um falecido”, conta Paulão. Mas lendas urbanas mais elaboradas começaram a surgir, como a de que uma esposa traída se vingou do marido jogando todos os seus discos no meio da rua.

Histórias que mostram dados tão assustadores como os que te contamos acima, sobre a quantidade de música não digitalizada. Um estudo de 2016 feito pela instituto Luminate calcula que, até então, 230 milhões de discos de vinil já haviam sido produzidos e vendidos no mundo. Imagine quantos ainda estão guardados em porões e sótãos, completamente esquecidos, aguardando ansiosamente por uma vitrola que lhes toquem? Impossível mensurar.

No dia mundial em homenagem às lojas de disco, o Record Store Day, só nos resta mandar um beijo enorme a Jula por sua iniciativa incrível, e desejar que sua atitude inspire outros herdeiros pelo mundo!

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.