
Entenda por que Milton Nascimento está processando seu time do coração
Apesar de ser torcedor do Cruzeiro, o lendário cantor e compositor brasileiro moveu ação judicial contra o clube
A utilização da música Clube Da Esquina Nº2 pelo Cruzeiro Esporte Clube em janeiro para anunciar a chegada do jogador Gabriel Barbosa, o Gabigol, expôs um buraco jurídico nas leis de direito autoral brasileiras e causou mal-estar entre o clube e um de seus torcedores mais simbólicos, Milton Nascimento. Mais uma vez, nossos apinholados juízes terão de decidir sobre qual “regra” impera: a da legislação ou as criadas pelas big techs.
Explicando: quando você cria um vídeo para o Instagram, é possível adicionar uma música de fundo. Basta apertar o botão e uma lista gigantesca de canções já lançadas aparecem como opções. Basta escolher e, pimba, seu reel pode usar a trilha sonora de canções que vão desde os Beatles a grupos mais desconhecidos, de qualquer lugar do mundo. Isso é possível porque a Meta fechou um acordo com as maiores gravadoras e distribuidoras de música do planeta, a nível internacional. O dono da canção recebe os direitos autorais no novo padrão das plataformas de streaming, microcentavos por cada vez que o vídeo é assistido.
Foi o que fez o departamento de comunicação em mídias sociais do Cruzeiro, achando que estariam saudando o grande cruzeirense Bituca. Mal sabiam que estavam criando um problema para o clube. Tanto Milton Nascimento quanto Lô Borges e a própria Sony Music, gravadora responsável pelo catálogo atual dos artistas, consideraram que o clube deveria ter pedido autorização para eles antes de incluir a música no vídeo de boas vindas. A leitura de quem está processando (cada parte está pedindo 50 mil reais em indenizações) é que a postagem é uma peça de marketing corporativa, assim como um comercial de TV, e não um reel pessoal, publicado por um torcedor, por exemplo.
Atualmente, os artistas estão putos com o Cruzeiro, e os torcedores do time estão putos com os artistas, acusando-os de ganância. 50 mil reais, segundo comentários nas redes sociais do time, não mudarão a vida nem de Milton e nem do clube. Então, por que a briga judicial?

A questão é mais pessoal do que financeira. Ao aparecer como trilha sonora para uma campanha, o público recebe a mensagem de que o artista está apoiando determinada ação. Pesa o fato de que o time de futebol usou a canção mais icônica de Nascimento e Borges, reconhecida no mundo todo como uma pérola do jazz.
Clube da Esquina Nº2 é uma faixa instrumental incluída no seminal álbum de 1972 Clube Da Esquina, o que pode ser uma das explicações para a inclusão do número no final do título — afinal, nenhuma Nº1 havia sido gravada e lançada anteriormente. A canção foi composta pela turma que se reunia na esquina da rua Divinópolis, em Belo Horizonte, para tocar violão: Milton Nascimento e os irmãos Lô e Márcio Borges. A decisão de não escrever uma letra (há apenas vozes esparsadas pela melodia, como um coro) surgiu como um protesto à repressão e censura promovidas pela Ditadura Militar.
O curioso é que, por “pressão” de Nana Caimmy, Márcio Borges escreveu uma letra para a música depois que ela foi lançada, com versos como “sonhos não envelhecem” e “em meio a gases lacrimogênios ficam calmos”. O compositor, no entanto, o fez em segredo, com medo de que Milton ficasse bravo. Bituca só ficou sabendo da versão quando Nana estava prestes a regravá-la. E gostou tanto que a incluiu em seu próprio álbum, Angelus, de 1993.

Uma música forte, dolorosa, inspirada em autores como Villa-Lobos e Debussy, extraída dos tempos acinzentados, chamados “Anos de Chumbo”, no Brasil. Usar em vídeo de rede social para promover contratação de jogador de futebol? Na visão de seus criadores, por mais cruzeirenses que sejam, não teve nada a ver!