Conheça a história do Festival Cultural do Harlem, que inspirou o premiado documentário Summer Of Soul
Em 1969, o Festival Cultural do Harlem reuniu a nata da música negra americana. O evento finalmente foi documentado e já está disponível nos cinemas americanos. Conheça a história que gerou o documentário Summer of Soul
Que tal ouvir esta playlist especial enquanto lê sobre o Summer Of Soul?
O apresentador anuncia, em meio a gritos e uma euforia contagiante de um verdadeiro mar de gente, Stevie Wonder entra, começa a cantar “faça o que Stevie diz…Batam palmas… Está com vocês, façam o que quiserem” E aquele poderoso homem negro e cego, quebra tudo na bateria, mostrando àquela plateia massivamente negra que é possível, não acredite no que te disseram, tudo e possível pra você, é a mensagem intrínseca. Assim começa o documentário “Summer Of Soul (…Or, When The Revolution Could Not Be Televised)”, sobre o gigante Festival Cultural do Harlem, realizado em 1969.
O Harlem e a revolução
Já falei nos meus textos anteriores sobre a luta pelos direitos civis norte americanos e sua intensa ligação com a música, as mudanças e conflitos não podem ser dissociados da arte e da moda. Num Harlem extremamente fervilhante, palco de diversos protestos, como o famoso Motim do Harlem, que durou 6 dias, em 1964 e aconteceu duas semanas após a sanção dos direitos civis, pelo então presidente Lyndon Johnson. As novas leis proibiam a discriminação racial, mas nas ruas, não era bem assim. Logo após o garoto James Powell, de apenas 15 anos, ser assassinado pela polícia, o Harlem explode. Infelizmente, pleno 2021, mais de 50 anos depois, esse tipo de crime ainda acontece, então você leitor, tente imaginar como era na época.
Os costumes estavam mudando, a postura estava mudando e a moda também acompanhou isso, a marca New Breed Clothing, inaugurada em 1967, é uma das mais importantes no resgate da cultura africana, os dashikis (ou túnicas) viraram rapidamente uma febre, transformando a vestimenta em motivo de orgulho e empoderamento. A loja, localizada no coração do Harlem, tornou se ponto de encontro de ativistas, celebridades, políticos e pessoas comuns que queriam se juntar à luta. Preciso citar também uma das fotos mais importantes da música, tirada em 1959, por Art Kane, numa rua do Harlem; 57 dos maiores talentos do jazz da época estão nessa foto, foi batizada “A great day in Harlem” e tem um lindo documentário homônimo, que conta como a imagem histórica foi feita e também vale muito a pena ser conferido.
Originalmente, o bairro foi colonizado por holandeses e só séculos depois se tornou um bairro essencialmente negro e latino. Nos anos 1920, após a primeira guerra mundial, houve um grande movimento de expressão cultural e artística, período que foi batizado de Renascimento do Harlem e floresceu importantes autores, músicos e intelectuais, que foram apresentados ao mundo. Para entender o movimento, e preciso contextualizar que no começo do século 20 houve a Grande Migração e o Harlem atraiu milhares de afro americanos, entre os quais, estavam algumas das mentes mais brilhantes da época, poesia, prosa, pintura e o jazz, transformaram a “desilusão social em orgulho racial”. A lista de artistas que ajudaram trazer uma, até então nova, consciência sobre a militância e afirmação de direitos civis e políticos, é enorme: Josephine Baker, Louis Armstrong, Billie Holiday, Cab Calloway, Duke Ellington, Count Basie, entre outros. Atividades também nos anos 1930 e 1940, prepararam o cenário para os anos 1960, quando foi largamente usado na articulação do povo nas esquinas e púlpitos de toda a comunidade. Comunidade essa, que enterrou diversos de seus líderes e estava cansada.
Nascia o Festival Cultural do Harlem
Isso tinha que culminar em um festival de música, e foi o que os organizadores do evento fizeram no intuito de encorajar um novo impulso por justiça social O Festival Cultural do Harlem, é sim um evento de música, mas também é bem mais que isso.
O festival foi idealizado e produzido pelo cantor Tony Lawrence, aconteceu no Mount Morris Park, nos dias 29 de junho a 24 de agosto de 1969 e teve um público de mais de 300 mil pessoas. O produtor de TV Hal Tulchin, foi o responsável pelas imagens do evento. Gravou cerca de 40 horas de shows, e tinha grandes esperanças para o projeto na época, mas não conseguiu interesse por parte de nenhuma emissora. Apenas alguns momentos da apresentação de Nina Simone foram divulgados. Tulchin acabou armazenando as fitas em seu porão, mas sabia que “mais cedo ou mais tarde, alguém teria interesse nisso”. Cinquenta anos depois, os direitos dos vídeos foram comprados pelo produtor Robert Fyvolent. O multi-instrumentista, integrante da banda The Roots (entre outras coisas, residente do programa The Tonight Show, com Jimmy Fallon), Ahmir Questlove Thompson é procurado e chocado por nunca ter ouvido falar do festival, assume a direção do documentário. E fez um belíssimo trabalho de estreia. Contando ainda com um filme sobre o Sly and the Family Stone em inicio de produção e outros projetos como esse em andamento, Questlove é um diretor que promete.
Woodstock Negro?
Algumas pessoas se referem ao evento como Woodstock Negro, mas eu não concordo muito com essa denominação. Primeiro porque o Festival do Harlem começou um pouco antes e durou mais tempo. Além disso, a mim parece reduzir sua importância a uma “imitação”, quando está bem longe disso. Apesar de o Woodstock ter também uma pauta política, o clima é outro. O Festival do Harlem é puro orgulho, bem mais profundo.
As poderosíssimas palavras de Nina Simone, a rainha maior do evento, traduzem o sentimento. As diferenças entre os dois continuam, o evento rico e branco foi super divulgado, fez sua história, o do Harlem foi esquecido num porão. O termo “Black Woodstock” foi cunhado pelo próprio Tulchin, numa tentativa frustrada de emplacar o festival, mas nem assim as pessoas deram importância. Até agora, resgatado (para sorte nossa) e exibido no Festival de Cinema Sundance, em janeiro deste ano (2021). No início, Questlove também pensou em adotar o termo, mas depois chegou à conclusão que seria “um péssimo serviço ao filme, contextualiza-lo dessa forma e pintá-lo como uma meia irmã da Cinderela. Isso iria colocar uma mancha para sempre nele, quando de outra forma, poderia falar por si só” declarou.
Óbvio que Summer of Love que emocionou absurdamente e foi premiadíssimo no Sundance. Além disso as palavras fortes do documentário, de dor, amor e luta, são relevantes ainda. Infelizmente o racismo continua sendo um imenso mal a ser combatido e as “balas perdidas” continuam chovendo com endereço certo: as comunidades pobres e pretas aqui no Brasil, por exemplo.
Summer Of Soul é recheado de jazz, soul, gospel, blues da melhor qualidade; com as imagens num tom alaranjado que dão a sensação de estar assistindo numa televisão da época, surpreenderam a equipe quando precisaram de pouquíssimo tratamento, o som, mesmo tendo sido captado por apenas 12 microfones é perfeito.
Sly and Family Stone, com seu visual glam e diversidade no palco, a latinidade de Ray Barreto, o africano Hugh Masekela, as vigorosas palavras do reverendo Jesse Jackson, Mahalia Jackson, Max Roach, e muitos outros, uma constelação sem fim de estrelas, cantando, performando e fazendo discursos sublimes, tudo isso, em meio a depoimentos de artistas que participaram e pessoas comuns que presenciaram o festival quando eram crianças, fizeram meus olhos ficar marejados do começo ao fim. Estreou no streaming Hulu, no dia 2 de julho, infelizmente ainda não tem data para estrear nos cinemas brasileiros.
Recomendo. É maravilhoso. E necessário.