Nina Simone

Nina Simone. A parceria com Maria Bethania, o show no Brasil e a história da “alta sacerdotisa do jazz”

Adriana Arakake
Por Adriana Arakake

Nina Simone, a alta sacerdotisa do Jazz, dona de uma voz potente e impecável e uma carreira toda trilhada combatendo as injustiças raciais norte americanas, é a estrela da coluna de Adriana Arakake.

Quando assisti sem pretensão “A assassina” nos anos 90, com direção de John Badman,  uma refilmagem de La femme Nikita, de Luc Besson (não tão bom quanto o original), não imaginava que o filme traria para minha vida as canções de Nina Simone. Eu tinha aproximadamente 17 anos e a artista preferida da personagem principal, encenada por Bridget Fonda,  se tornou uma das minhas preferidas também. Aquele som me arrebatou. Foi a primeira vez que ouvi Feeling Good, me tocou tanto que quando minha filha nasceu, hoje com 15 anos, não tive dúvida e a chamei Nina e claro, fui atrás de saber quem era Nina Simone.

Eunice Kathleen Waymon nasceu em Tryon, Carolina do Norte, em 21 de fevereiro de 1933 e começou a tocar piano com 3 anos de idade. A pianista, arranjadora e compositora era dona de uma voz poderosa, cheia de atitude e manifesto. O protesto permeou toda a carreira da artista. Em sua primeira apresentação aos 12 anos de idade viu os pais serem obrigados a deixar as fileiras da frente para ceder lugar a brancos e se recusou a subir no palco, a menos que eles fossem trazidos de volta. Financiada pelos membros da igreja que frequentava e onde se apresentava, foi estudar piano na Juilliard. Mais tarde tentou bolsa na Curtis Music Institute, na Filadélfia, onde apesar de sua ótima audição, foi negada, rejeição que atribuiu acertadamente à discriminação racial.  Se viu então obrigada a tocar em bares para sobreviver e ajudar a família, mas sabendo que o trabalho não seria bem aceito por seus pais ela assume o nome artístico Nina Simone, onde por insistência de um dono de bar e para nossa felicidade, começou a cantar.

Pouco tempo depois sua voz andrógina e sofisticada chamou a atenção da gravadora Bethlehem, que lançou seu primeiro disco, Little girl blue, em 1957. Este álbum contém o primeiro sucesso de Nina Simone, I love you Porgy, composição de George Gershwin para sua ópera Porgy and Bess, encenada pela primeira vez em 1935 com elenco composto unicamente por cantores líricos negros. O jazz standard  Summetime também fez parte deste espetáculo  e é uma das músicas mais regravadas de todos os tempos, com pelo menos 25.000 versões conhecidas. Você pode encontrar a versão de Nina Simone para este clássico no álbum Nina at Town Hall, 1959, Colpix Records.

Nina compôs dois dos mais influentes hinos da era dos direitos civis norte americanos.  “Mississipi Goddam”,  um divisor de águas na história da música negra de protesto, presente no primeiro trabalho da cantora com o selo Philips, Nina Simone in Concert, lançado em 1964 e gravado no Carnegie Hall, frente a um público majoritariamente branco, que ela conseguiu provocar e confrontar com seu desempenho impecável, indestrutível,. Sob um pano de fundo de uma música de show, Nina canta a mensagem com toda sua ira, mas dá ao publico a oportunidade de respirar entre um ataque furioso e outro. A canção é uma resposta ao assassinato do ativista Medgar Evers e ao atentado a bomba numa igreja do Alabama que matou 4 crianças em 1963. O disco tem produção de Hal Mooney, que trabalhou também grandes artistas como Frank Sinatra e Peggy Lee, entre outros.

Em 1969, To Be Young, Gifted and Black, é lançada como single e posteriormente regravada por vários artistas como Aretha Franklin, Donny Hathaway e Dionne Warwick. A música letrada pelo poeta e pianista Weldon Irvine é uma homenagem a então recém falecida amiga de Nina, Lorraine Vivian Hansberry, uma grande ativista e primeira autora afro-americana a ter uma peça encenada na Broadway, Raising Sun, onde os personagens vivem suas aflições, numa Chicago que sofre a segregação racial.

A  composição pode ser encontrada no primoroso Black Gold, (970, RCA Records), um dos últimos discos da artista, gravado no Philarmonic Hall de Nova York, diante de uma plateia completamente lotada que teve o prazer e a honra de presenciar o pico de sua carreira e paixão política, refletidas na incrível performance e escolha do repertório, acompanhada por um grupo de cantores que reforçam sua mensagem de revolta e a nobreza do talento negro.

Black Gold passeia com classe por vários estilos musicais desde o soul, jazz, canções folclóricas tradicionais e covers onde coloca seu próprio estilo como em Westwind, aprendida com sua amiga e militante Miriam Makeba, que usou a fama para lutar contra o regime do apartheid na Africa do Sul (e merece um texto só dela).  Outro  primor de Black Gold é uma versão maravilhosa de Ain’t got no, I got no life, uma das canções mais amadas de Nina Simone.

O álbum todo é um marco, um clássico imperdível, uma prova de que sem dúvida alguma Nina Simone merece o título de “alta sacerdotisa do soul”.

A elegância magistral de Nina Simone, sua postura de revolta, sua voz e música são até hoje de total relevância. Nos dias atuais, infelizmente ainda vivemos casos como o de George Floyd nos Estados Unidos, ou João Alberto, as primas Evelyn e Vitória, e tantos outros nomes aqui no Brasil vítimas de balas perdidas, num país onde as balas perdidas tem endereço certo e sabem muito bem em quem e onde podem “se perder”. Em 2019, o ator Chadwick Boseman, trouxe o poder das palavras de To be Young, Gifted and Black ao palco do Screen Actors Guide Awards, quando Pantera Negra, com elenco predominantemente negro, ganhou a maior homenagem da noite.

A artista esteve três vezes no Brasil, chegou até a gravar com Maria Bethania I’m Ready to Sing/ Pronta pra Cantar e em 1997 se apresentou no parque do Ibirapuera em SP, para uma multidão de 35 mil pessoas.

Nina Simone é fundamental, são mais de 40 discos ao longo de sua carreira, este texto ficou pequeno para citar uma obra tão vasta e imprescindível; Nuff Said! por exemplo, de 1968, gravado logo após a morte de Martin Luther King, tem uma sequência inacreditável de mais de uma hora com “The Blacklash Blues”, “Why? (The King of Love Is Dead)”, “Ain’t Got No – I Got Life” e “Don’t Let Me Be Misunderstood” e também merece total atenção, ouça e sinta o que essa diva do jazz tem para oferecer de melhor, a flutuação entre a melancolia e a felicidade, um dos talentos mais indomáveis da música do século 20, o espírito inquieto que nos leva exatamente onde quer: percorrer com maestria toda a gama de emoções humanas num som que como eu disse no começo do texto, te arrebata, deixe se fascinar por Nina Simone.

Adriana Arakake

Adriana Ararake é DJ é especialista em Jazz, Soul e Blues do Music Non Stop.

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