Computer World, do Kraftwerk, faz 40 anos hoje. A história do disco seminal do grupo “mais influente que os Beatles”, segundo a imprensa inglesa.
Nosso especialista em discos clássicos Captain Wander fala sobre a enorme importância de Computer World, lançado há 40 anos pela banda Kraftwerk, citada pelo jornal inglês The Guardian como “mais influente que os Beatles”
Na semana passada, quando o Music Non Stop me convidou para escrever sobre os 40 anos do álbum Computer World do Kraftwerk eu alegremente aceitei, de “bate-pronto”. Achei que seria muito fácil escrever esta matéria. Afinal, para um fã completamente apaixonado, escrever sobre o que se tem muito conhecimento me pareceu fichinha.
Mas confesso que não foi assim. Cheguei algumas vezes a deletar a matéria inteira e começar novamente de outro ponto por enxergar “tietagem” demais da minha parte. Notei então que para mim Kraftwerk é algo tão forte, tão mítico, e que me toca tanto emocionalmente que a responsabilidade de escrever de forma mais sóbria, reta e direta ao ponto sem entrar em devaneios me pesou muito.
Pensando no impacto mundial de Kraftwerk, entretanto, imagino que muitas pessoas sentem o mesmo. Então se tornou impossível não compartilhar momentos de pura emoção, devaneio, veneração e memórias afetivas em meio a informações mais técnicas sobre este incrível álbum que este texto precisava. Então, peço esta licença e… senta que lá vem história:
Eu sei que sou fã dos quatro robôs de Dusseldorf desde criança. Muito antes da adolescência, quando comecei a me fascinar na audição de alguns discos. Enquanto passavam pela agulha, me impactavam visualmente pela estética única e instigante de suas capas e encartes. Tempos depois, na pista de dança e show no Free Jazz Festival em São Paulo (1998), já um jovenzinho clubber e raver recém formado, já era um seguidor completamente apaixonado e direcionado pela banda.
Muitas faixas do Kraftwerk eram usadas para relacionar algo futurístico e inovador em aberturas de programas de astronomia, ciências e tecnologia, telecursos ou campanhas publicitárias para produtos que precisavam passar a imagem de modernos (mesmo não sendo tão modernos assim).
Outras músicas, mais profundas e melódicas, eram usadas para nos remeter a algo mais melancólico, contemplativo, espiritual ou sombrio (a mais emblemática pra mim é o comercial dos calçados Starsax) e tantas outras mais experimentais eram usadas para os mais diversos fundos sonoros em alguma novela, filme, vinheta, propaganda etc. O fato é que a obra do Kraftwerk, desde a década de 70 mas principalmente nas décadas de 80 e 90, está fortemente plantada e enraizada na psique coletiva mundial.
O irretocável álbum Computer World, oitavo da banda, foi mais um marco na música eletrônica para as massas. Profético, visionário, pioneiro, musicalmente limpo, com timbres lapidados e sequências rítmicas inovadoras ao ponto de ditar o caminho para vários estilos eletrônicos como Synthpop, EBM,Newbeat, Hip Hop, Electrofunk, House, Acid House,Techno, Trance.
Além disso, o disco deu um tremendo “chacoalhão” em músicos e produtores de rock e tantos outros estilos que relutavam em aceitar a “interferência eletrônica” com seus beats programados e repetitivos, programação sequenciada com sintetizadores e vozes alteradas pelos vocoders e efeitos na composição e execução de suas obras.
Para estes, esta música não era feita com espírito.
Pausa para uma exclamação! Um álbum chamado “Computer World” foi inteiro composto eletronicamente sem sequer terem um computador pessoal no estúdio (na época ainda inacessível) só que incrivelmente profético ao ponto de prever precisamente nas letras e em seu visual a revolução que esta ferramenta traria ao mundo todo e o impacto que esta tecnologia toda causaria em nossas vidas.
Claudio Manoel, DJ, fundador do coletivo Pragatecno e grande pesquisador do Kraftwerk, falou ao Music Non Stop sobre este momento, na matéria especial sobre a influencia de Computer World para a música.
O disco Computer World (1981), do Kraftwerk, já apontava sobre o impacto das tecnologias computacionais na vida. Onde essa máquina – o computador – iria costurar uma nova camada mundial, passando a ser um dos regentes da vida cultural e econômica da sociedade, inaugurando assim um Mundo dos Computadores.
“Business, numbers/ Money, people/Business, numbers/ Money, people/Computer world” – letra trazida na faixa título do disco, identifica que essa máquina é local de negócios bem como de “Crime, Travel, Communication, Entertainment”: ou o mundo mesmo, como já era, dentro da máquina.
O computador também seria um um instrumento musical, já que “Pressionando uma tecla especial/Toca uma pequena melodia”. O Kraftwerk entende o computador como, também, ferramenta de produção sensível, um instrumento de geração de arte. Mas é na música Home Computer que a banda traz uma perspectiva sobre a importância de dominarmos a programação como ferramenta poderosa individual, reforçado em 2012 por Rushkoff “Programe ou será programado”: “Eu programo meu computador de casa, Transmitindo-me para o futuro”. Além das letras com frases curtas e proféticas, o disco traz músicas de sons essencialmente sintéticos, pensados para o mundo da dance music.
Pois é. Na parte das profetizações os caras nas faixas “Computer World”,“Home Computer” e “It’s More Fun To Compute” acertaram em cheio sobre a era dos computadores pessoais que só viera 10 anos depois e como estas ferramentas através dos programas trabalhariam pra gente nos permitindo fazer muito mais coisas ao mesmo tempo e nos auxiliando com as habilidades que não possuímos. E também de como seria a vigilância que a rede mundial de computadores iria nos impor.
Em “Numbers”, faixa musicalmente mais visionária e influenciadora do disco, a limpeza, o minimalismo e o cuidado na criação dos timbres junto ao groove gordo,quebrado e bruto na criação de repetições fez dela uma das músicas mais sampleadas da banda. Basta checar no site whosampled.com (muito legal por sinal, dá pra ficar pesquisando por horas lá) que até o momento só a Numbers já foi sampleada em 159 músicas!
Neste quesito, aliás, Kraftwerk é um dos maiores fornecedores de samples do mundo (831 samples segundo o mesmo site). Uma verdadeira usina!
Ou uma verdadeira e abundante mina caso usarmos o que um de nossos mestres brasucas, o DJ e produtor musical KL Jay disse assertivamente em uma entrevista recente para site Almapreta sobre este trabalho de pesquisa na busca de “recortes” de música que foi: “O sample é uma matéria prima como ouro” no processo de criação e nascimento de outra nova música.
A faixa mais emblemática, por exemplo, que usou um teco da Numbers e outro teco da Trans Europe Express de 1977 (também do Kraftwerk sem surpresa) foi a Planet Rock de Afrika Bambaataa e Soul Sonic Force (1982) considerada o pontapé dos gêneros Electro Funk e Miami Bass.
A batida de Numbers foi composta por Karl Bartos. Lembro dele carinhosamente; como fã e tiete, propagandeio tanto Kraftwerk para qualquer pessoa que ainda não conheça, que é preciso me policiar algumas vezes.
Já fiz coisas como colocar alguns álbuns na sequência pros meus pais escutarem no carro durante uma viagem longa e também colocar os discos para meu casal de filhos escutarem desde bebês. Cheguei a filmar pra mandar para esposa no trabalho quando o filhote mais velho com mais ou menos dois anos soltou seu primeiro “Uííí Arrrr De Lúbotzzzz” brincando no vocoder do Mini-Korg.
Na total empolgação, enviei o vídeo para a página do percussionista Karl Bartos que, pra minha surpresa, após alguns dias respondeu seu fã e pai babão com uma mensagem “muito lindo o seu pequeno, mas como fã você sabe que não estou mais na banda desde 1991, envie para a página deles também”.
Com esta resposta meio seca de robô eu fiquei um pouco aflito e na dúvida se ele tinha gostado da homenagem ou não. Mais tarde entendi, lendo o prefácio escrito pelo próprio Karl no livro Publikation de David Buckley (que você precisa ler antes de morrer) que este é mesmo o “jeitão” alemão dele.
Na suave e maravilhosa música pop “Computer Love” o quarteto previu também os relacionamentos online e, pra não perder o costume, forneceram samples a rodo “pra geral”. O hit “Talk” de 2005 do Coldplay é o mais conhecido a beber desta fonte.
“Pocket Calculator” é umas das músicas mais engraçadas da banda. Segundo David Buckley, a música “zombava do Rock de forma sutil, mas devastadora. Porque o estilo é tradicionalmente baseado na guitarra elétrica, em arabescos engenhosos, nos acordes potentes e nos excessos masturbatórios dos solos. Era “coisa de homem”. Em Pocket Calculator, Ralf mostra como a música eletrônica dissipou toda a suadeira estúpida e a postura patética dos cock rockers, pois a estrela do show agora não era sequer um instrumento de verdade”
Ótimo né? Sempre gargalho sozinho quando me lembro dessa passagem. Uma simples calculadorazinha a pilhas que toca uma “A Little Melody” na mão destes robôs botaram a casa abaixo (neste caso o Teatro Ritz em Nova Yorque onde foi filmado o incrível vídeo promocional com o público dançando freneticamente).
Mesmo com a passagem pra outro plano de Florian Scheider em abril do ano passado, acho que a usina ainda deva continuar operando sob o comando de Ralf Hütter, só não sabemos se ainda veremos mais algum trabalho durante este período tão chacoalhado que estamos passando. Pra finalizar sugiro assistir o quão maravilhoso foi a execução da faixa “SpaceLab” do álbum “Man Machine” no festival aberto de Jazz de Stuttgart’s Schlossplat onde interagem ao vivo com um astronauta em órbita na estação espacial ISS. É de chorar de tão lindo!