Diretor e atores falam sobre mudanças de perspectiva, ajuda do FBI e ressignificação dos filmes de faroeste
O cineasta Martin Scorsese emplacou nas últimas semanas a bilheteria de mais de US$ 100 milhões. Seu novo sucesso, Assassinos da Lua das Flores, é a adaptação do livro de mesmo nome de David Gran. A produção aborda uma série de assassinatos cometidos contra a população Osage (etnia indígena da América do Norte), nas primeiras décadas do século 20.
No último dia 15 de novembro, participei de coletiva de imprensa online, realizada com os votantes do Globo de Ouro, em que estiveram presentes o produtor, diretor e corroteirista, Martin Scorsese, e o elenco principal do filme: o ator e produtor executivo Leonardo DiCaprio, que interpreta Ernest Burkhart, a atriz Lily Gladstone, que faz Mollie Burkhart, Robert De Niro, atuando como William King Hale, e Jesse Plemons como o agente do FBI Tom White.
Confira abaixo como foi essa conversa.
Como o filme mudou sua perspectiva
A primeira pergunta foi para Scorsese, sobre suas escolhas criativas. Assassinos da Lua das Flores começou a ser desenvolvido em 2018, período em que o diretor estava realizando seu filme anterior, O Irlandês. O projeto começou com o livro de Grann e, em seguida, tomou forma com o roteiro sendo desenvolvido por Martin em parceria com Erich Roth.
Segundo o cineasta, DiCaprio inicialmente faria Tom White. Entretanto, a medida que a personagem foi sendo desenvolvida, eles perceberam que a história vista pelos olhos do FBI não faria sentido.
Em um certo momento, Leonardo questionou Martin sobre onde estaria o coração da história, no que o diretor respondeu: “Bem, o coração é que Mollie e Ernest estão apaixonados”. DiCaprio disse: “Então talvez eu devesse interpretar Ernest.” E foi nesse momento que tudo mudou de rumo. Em vez do filme ser sobre a investigação, ele se tornou um relato sobre a comunidade e seus membros.
Em mais um ano e meio de trabalho, o roteiro contou com a ajuda do FBI para preencher algumas lacunas sobre os fatos. Dessa maneira, a história é contada, na medida do possível, a partir do olhar de uma sociedade em que os nativo-americanos e os americanos-europeus estão vivendo juntos.
A colaboração dos Osage
A segunda pergunta da coletiva foi direcionada para Lily Gladstone. Questionada sobre a importância dessa colaboração e sobre a responsabilidade de fazer essa parceria da maneira correta, valorizando outras vozes, a atriz apontou que lamenta que essa escolha não tenha sido o precedente ao longo de todos os anos da existência do cinema, e desabafou:
“Sinto que, como atriz, sendo nativo-americana e tendo interpretado papéis de nativos, muitas vezes recebo papéis de nações tribais das quais não sou originária. Ou seja, a cada vez que isso acontece, você passa por um período de aculturação. E percebo que […] as pessoas simplesmente não se dão conta de que existem 574 nações diferentes reconhecidas pelo governo federal nos Estados Unidos. Não somos um monólito e não somos homogeneizados. Falo um pouco do idioma de onde cresci, na reserva do meu pai, em Blackfeet. Mas Osage é um idioma estrangeiro para mim. E muitas pessoas presumem que os atores nativos só sabem falar um idioma nativo-americano”.
Gladstone aproveitou a oportunidade de estar imersa em outra cultura indígena e se dedicou a aprender tudo o que pode “da maneira mais respeitosa possível”. A produção esteve engajada com a comunidade, e construiu relação próxima com ela. As trocas enriqueceram os aspectos abordados no filme, como o comportamento de uma mulher Osage daquela época.
“O elemento mais importante de tudo isso para mim foi o fato de eu nunca estar sozinha no set. Se eu não tivesse certeza sobre uma escolha que estava fazendo, não havia apenas um, mas vários osageanos em todos os níveis de produção por perto. Eu sabia que, toda vez que falava esse idioma, havia Janis e Chris [membros da comunidade] por perto. Eu realmente espero que todos os cineastas que estejam trabalhando com histórias como essa, que são tão relevantes ainda hoje, sejam cuidadosos, porque isso só fortalecerá o trabalho que fizerem”, complementou Lily.
Encontrando o tom
Para que Lua das Flores fosse consistente, houve um trabalho entre direção e elenco para que os personagens tivessem complexidade em sua estrutura. Originalmente, o casal protagonista era apenas uma nota de rodapé em meio ao relato de uma investigação. Mas Martin optou por inverter a história e abordar a “exploração da condição humana”, como disse Leonardo DiCaprio. E completou:
“Ele busca a emoção. E sei que, quando lemos o roteiro inicial, ficamos chocados e sentimos a tragédia dessa dinâmica entre esse homem branco e essa mulher Osage, e ele admitindo a cumplicidade e a traição que havia cometido, não apenas com a comunidade, mas com a mulher que amava”.
Essa escolha do cineasta permite a compreensão de que a ajuda do FBI foi importante para a resolução do crime, mas também de que Mollie foi o seu catalisador. A verdadeira heroína de uma história esquecida pelos Estados Unidos.
Entretanto, a importância do FBI não foi esquecida, de tal forma que o ator Jesse Plemons relatou que o material enviado para ele sobre seu personagem era extenso:
“Quando cheguei, era evidente que muito trabalho já havia sido feito. […] Recebi um pacote de pesquisa com praticamente tudo o que eu poderia querer saber sobre Tom White, além do livro de Grann. Em minha experiência de trabalho com Marty, sei que há uma busca constante para encontrar a essência do que realmente está acontecendo em cena”.
A complexa dinâmica entre Ernest e Mollie
O casal central do filme se destaca pela relação em que a possibilidade de amor é sobreposta pela ganância. A fim de que ele fosse retratado da maneira mais verídica possível, Scorsese contou com a ajuda de Margie Burkhart, neta de Mollie e Ernest e filha do Cowboy, o garoto que vemos no filme. Apesar de não ter conhecido a avó, que faleceu anos antes dela nascer, a senhora e outros membros dos Burkhart (do lado não Osage da família) contaram histórias sobre Ernest para Leo e Lilly.
A imagem apresentada pelos familiares, segundo DiCaprio, era de um Ernest calmo e tranquilo. Uma pessoa que se irritava quando alguém falava de Mollie, e que sempre se referia a ela como o amor de sua vida. Gladstone apontou que aquilo parecia ser “divagações de um velho culpado”, mas que poderia ter um fundo de verdade.
A atriz comentou que, naquele período, as indígenas casadas com os brancos viviam sob as asas de maridos controladores, como vemos no filme Ernest (DiCaprio) sendo incentivado por Hale (De Niro) a fazer. Leo apontou o desafio que foi dar forma a esse relacionamento:
“Além de ser absolutamente bizarro o fato de essa história de amor existir, quando li sobre ela pela primeira vez, conversei com Marty e começamos a assistir a filmes antigos e a dialogar sobre como fazer uma história como essa funcionar. Analisamos muito o trabalho de Montgomery Clift no filme Um Lugar Ao Sol, que trata da ganância e da corrupção do sonho americano. E pensamos: esse tipo de história de amor já foi feito antes, sabe?”.
Assim sendo, o maior desafio era lidar com o fato de Scorsese não querer fazer as coisas da forma tradicional — ou seja, da mesma maneira que estava no livro. Mas se tratava também de concentrar os esforços em uma construção crível. Leonardo disse estar ciente sobre o quanto as atrocidades cometidas por Ernest e sua família e sobre o quanto a compreensão de Mollie podem ser incômodas para o público.
Entretanto, o ator relatou que “isso se baseia em evidências concretas, em um senso de comunidade dos Osage sobre uma história sobre a qual, de várias maneiras, eles não falaram abertamente. E aqui estávamos nós, cem anos depois, meio que trazendo à tona esses fantasmas e essas histórias do passado, nas locações reais e trabalhando com descendentes diretos dessa tragédia”.
E seguiu:
“Além do meu personagem, o que é fascinante para mim nessa história é que achamos que ela tem um século de idade. Mas os lugares que são ricos em recursos são geralmente os mais encharcados de sangue, e vemos isso não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. Essa história é um microcosmo de outra muito maior sobre povos e terras indígenas, e isso ainda está acontecendo hoje. Para mim, essa foi uma das revelações mais chocantes”.
Scorsese, DiCaprio e De Niro: parceria de décadas
Em uma coletiva na qual estiveram presentes Martin Scorsese, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio, não poderia deixar de ser citada a parceria de anos entre eles. Com Robert, o diretor fez dez filmes, e com Leo, seis, sem contar Lua das Flores.
“Tudo é ótimo quando trabalhamos juntos, é um processo tão agradável… Não sei mais o que dizer.” A espontaneidade de De Niro tirou algumas risadas do mediador.
Em seguida, com reverência, Leonardo demonstrou o carinho que tem por seus companheiros de bastidores:
“De várias maneiras, esses dois homens de quem estamos falando foram como figuras paternas cinematográficas para mim. Fiz meu primeiro papel principal ao lado de Bob [em O Despertar de Um Homem, de 1993] e foi ele quem falou de mim para Marty. Depois disso consegui fazer uns seis filmes com ele. E aqui estamos, 30 anos depois, e tem sido uma experiência incrível poder trabalhar com os dois juntos e observar a maneira como eles se comunicam telepaticamente uns com os outros no set, por meio de gestos e acenos”.
O faroeste enquanto manutenção de uma imagem preconceituosa dos indígenas
Apesar de ser um drama, Assassinos da Lua das Flores tem um início que remete a filmes de faroeste. A chegada de Ernest acontece em um centro próximo a uma estação de trem. Em seu entorno, vemos pessoas que parecem buscar trabalho naquela próspera região. A população local é composta por nativos-americanos e brancos. Sem dúvida, uma descrição que se assemelha ao cenário de um western.
Coincidência ou não, o ator Jesse Plemons esteve envolvido na produção de Ataque dos Cães, da Netflix, em 2021. Foi perguntado a ele como é estar em filmes que rompem com o molde do faroeste, tanto em termos de gênero quanto de política — principalmente em Lua das Flores, que deu destaque aos povos indígenas.
Plemons falou sobre como fez sua escolha, e ela passou mais pela qualidade do roteiro do que apenas pela temática:
“Eram filmes com um roteiro incrível. Quando o li [o roteiro de Ataque dos Cães], percebi que parecia algo que eu nunca havia lido, uma versão de um faroeste que eu nunca havia visto antes, foi empolgante. E a minha introdução a Lua das Flores foi o livro de Grann. Não sei se a considerei necessariamente um faroeste, embora eu saiba que ela se enquadra nesse gênero, mas fiquei impressionado apenas com a história em si”.
O gran finale: como escrever um obituário
A última pergunta, também relacionada à forma de se contar uma história, foi direcionada para Martin Scorsese. O cineasta aparece no fim do filme lendo o obituário de Mollie Burkhart, em um programa de rádio. Na versão de Erich Roth (roteirista), era um programa real, continuidade dos fatos que ocorrem no filme, com meia hora de duração. Entretanto, algo nesse desfecho incomodou o realizador:
“Fiquei impressionado com o impacto da percepção de que todas essas gerações de sofrimento, genocídio, trauma, traições, amor, ódio, tudo isso foi reduzido a uma peça de entretenimento de meia hora. De alguma forma, eu tinha que encontrar uma maneira de fazer a transição de algo tão chocante como o programa de rádio para nos trazer de volta ao centro da imagem”.
“Sinceramente, eu não sabia como dirigi-lo. Estava em Nova Iorque, editando, quando algo me chamou a atenção. Enquanto estava repetindo as falas, senti de uma forma estranha que este é um filme que podemos chamar de entretenimento.”
Martin concluiu que o equilíbrio é necessário para que a obra mantenha o respeito à memória, pois o que chamamos de entretenimento é sobre a vida de pessoas. Ele se sentiu culpado, repensou na forma de fazer o desfecho da produção, mas também sentiu que deveria assumir o papel. Foi assim que Scorsese apareceu, como ator, no fim de Os Assassinos da Lua das Flores, surpreendendo a todos.
Ao fazer essa e outras escolhas, Scorsese mostra que acompanha as mudanças do tempo não apenas na parte técnica, mas na parte humana envolvida em uma produção cinematográfica. E sem esquivar, ele confessa:
“Se você me perguntar: ‘Marty, você gostava dos antigos westerns?’, eu digo que sim, gostava. E eles mostram os nativos americanos como maus. Sim, faço parte do sistema, sou europeu-americano, e sim, sou culpado. Então, acho que assumi isso, ainda que não tenha conseguido verbalizar quando estava fazendo. Mas, quando Thelma [Schoonmaker, montadora do filme e parceira de trabalho de Scorsese] e eu inserimos essa parte na edição, sentimos isso. Então, acho que coloquei [essa responsabilidade] em mim”.
Assassinos da Lua das Flores está em cartaz nos principais cinemas do Brasil.