Assassinos da Lua das Flores Imagem: Reprodução/IMDb

Em novo filme, Scorsese denuncia massacre indígena e expõe o verdadeiro caubói americano

Yasmine Evaristo
Por Yasmine Evaristo

Assassinos da Lua das Flores chega aos cinemas nesta quinta-feira (19)

Dirigido por Martin Scorcese, Assassinos da Lua das Flores, nova produção da Paramount Pictures em parceria com a AppleTV, chega aos cinemas nesta quinta, 19 de outubro. Baseado no best seller homônimo, escrito por David Grann, lançado no Brasil pela Companhia das Letras, a produção tem quase quatro horas de duração.

Entretanto, a longa metragem só proporciona um aprofundamento em todos os aspectos abordados pelo cineasta nas relações entre brancos e indígenas estadunidenses. Scorsese narra o filme pela perspectiva de Ernst Burkhart (Leonardo DiCaprio), veterano da Primeira Guerra que se muda para a casa do tio fazendeiro, William Hale (Robert De Niro), na cidade de Fairfax.

O filme tem a forma de um suspense policial, com ares de faroeste e drama. Além de contar sobre o crime cometido contra a tribo dos Osage, a produção também aborda a criação do FBI. O elenco ainda conta com a presença de Lily GladstoneJesse PlemonsScott Shepherd e outros grandes nomes do cinema.

Fairfax e o sangue negro

No início da década de 1920, os indígenas da Osage descobriram embaixo do solo pedregoso da região em que viviam, petróleo. Cerca de 50 anos antes, os nativos-americanos haviam sido deslocados de suas terras originárias para uma região pedregosa em Oklahoma. Foi nesse solo que encontraram uma nova perspectiva de vida.

Com o conhecimento da valorização das terras, o fluxo migratório de pessoas não indígenas para a região aumentou. É a partir desse deslocamento de pessoas em busca de uma maneira de ficarem ricas que Martin desenvolve sua mais nova obra.

Os crimes cometidos contra os Osage foram movidos pela ganância e pelo ódio aos grupos racializados. No filme, o tio de Ernest induz tanto o sobrinho quanto outros membros da comunidade a se casarem com as mulheres indígenas para darem o “golpe do baú”. Dessa maneira, o que vemos ao longo das 3h30 de projeção são as inúmeras estratégias para que os nativos morram. O objetivo, que suas propriedades e riquezas passem por meio da herança para seus filhos e viúvos.

Permissão para prosperar

Interpretada por Lily Gladstone, Mollie, única sobrevivente de sua família, se destaca. A indígena nunca desistiu de obter justiça, morreu aos 50 anos, mas antes disso denunciou a exploração de seu povo.

Hale, um homem comum com discurso cristão e aparência de homem sério e distinto, controla a cidade de Fairfax. Além de ser assistente do xerife, possui propriedades e serve de referência de hombridade para os habitantes. De Niro imprime em sua interpretação as inúmeras facetas de um lobo em pele de cordeiro. Sua personagem gradativamente se torna mais corrompida pela ganância, assim como os que orbitam em seu entorno.

Imagem: Reprodução/IMDb

O fazendeiro articula com amigos e familiares os casamentos e as mortes dos indígenas para que suas heranças permaneçam com seus descendentes e/ou com os cônjuges. Do início ao fim, entendemos que não há possibilidade de justiça para os Osage, pois o Estado era conivente com a prática. Os nativos viviam sob tutela, considerados incapazes, privados de controle de suas riquezas.

Além disso, o adoecimento provocado pelo preconceito étnico, pelo racismo, aparece em cena tanto por meio de diálogos, quanto por meio das expressões do elenco. De Niro e DiCaprio encontram o tom perfeito de interpretação entre as personas de presa e predador, canalha assumido e cretino arrependido, funcionando sempre como a mesma parte de um pacto de destruição a tudo o que difere deles.

Saúde fraca: a branquitude como patologia

Muito questionado há alguns anos sobre o fato de seus filmes serem centrados em personagens masculinos e caucasianos, Martin Scorsese prova, mais uma vez, que entende quais as necessidades que o público adquire com o passar dos anos, e realiza seus filmes sem perder sua essência.

Ao acompanhar sua carreira, nos deparamos com personagens corrompidos pela raiva e pela certeza de impunidade, como podemos ver em Os Bons Companheiros ou Cassino. Da mesma maneira, vimos o niilismo e a desesperança consumindo o homem comum que não alcançou o tão prometido sonho americano, muito bem desenvolvidos em suas parcerias com De Niro em Taxi Driver Touro Indomável.

Imagem: Divulgação/Paramont/AppleTV

Assassinos da Lua das Flores pode ser interpretado como um olhar sobre a fonte dessa decadência moral e ética. Afinal, se em todos esses filmes supracitados, os personagens fazem de tudo por luxo e poder sem se importar com os que consideram semelhantes — outros homens brancos, descendentes de irlandeses ou italianos —, imaginemos o que eles não fizeram com os que consideram inferiores por sua raça ou etnia.

Em dado momento, uma das lideranças indígenas do filme fala do entorpecimento provocado pela medicina oferecida como presente pela comunidade branca. A prenda oferecida pode ser comparada ao Cavalo de Tróia, pois por fora aparenta ser bela, mas contém em seu recheio uma maldição. E a maldição também deixa máculas em quem a inflige.

Ainda que não narre a história do ponto de vista de uma Osange, Martin não se escusa de criticar duramente a prática vil e conspiratória de eliminação de povos racializados do território estadunidense.

O silêncio como estratégia narrativa

Tão potente quanto os diálogos estabelecidos entre a comunidade masculina de Assassinos é o silêncio de Mollie. Lily Gladstone expressa no rosto e postura toda a pressão pela qual os Osage passaram. Mais ouve do que fala, às vezes por não ter espaço para se impor, outras por preferir observar o que acontece em seu entorno. Ela também se apresenta como uma força ancestral e sábia e, contraditoriamente, como a fragilidade que sucumbe diante da promessa de receber afeto matrimonial.

E não apenas essa personagem apresenta muitas informações por meio do silêncio. Acontecem diálogos com os olhos, ora entre aqueles que estão em cena, ora entre atores/atrizes e a câmera. Não estou falando de quebra da quarta parede, mas de uma cumplicidade entre espectador, interpretes e diretor, que desloca todos os que experienciam assistir ao filme para um estado de suspensão em que a câmera, enquanto mirada, nos torna cúmplices de toda a situação.

Imagem: Divulgação/Paramont/AppleTV

Assim sendo, ao presenciarmos as cores, luzes e ritmo agradável dos Osage em contraponto à frieza e rigidez dos homens brancos, assumimos o tão desejado lugar da mosca que observa tudo sem interferir. Um espectador do que aconteceu no passado, frustrado por não poder mudar os rumos da ficção. Ainda mais uma ficção que se estrutura como um romance policial para comunicar sua história de forma atraente, o que não a torna mais palatável.

De que são feitos os heróis?

Em entrevista para o El País, David Grann conta que, em sua investigação, percebeu como esse capítulo dos Estados Unidos foi apagado por anos. Os papeis tradicionais do bang bang estão ali, mas agora conhecemos mais sobre os bandidos e os mocinhos. Também entendemos o quanto o cinema foi responsável por omitir grandes e horríveis feitos da civilização americana.

E se um dia Hollywood criou seus heróis com a forma de intocáveis deuses incontestáveis, Martin Scorsese, um dos maiores cineastas vivos, nos apresentou uma outra maneira de encarar o que já foi uma verdade.

Após Assassinos da Lua das Flores, o caubói, mais uma vez observado por outro ponto de vista, tem seus pés de barro expostos.

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Yasmine Evaristo

Artista visual, desenhista, graduanda em Letras - Tecnologias da Edição. Membro Abraccine, votante do Globo de Ouro (Golden Globe Awards). Pesquisadora de cinema, principalmente do gênero fantástico, bem como representação e representatividade de pessoas negras no cinema. Devota da santíssima trindade Tarkovski-Kubrick-Lynch.

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