Neste Dia Nacional da Música Clássica, próximo ao Dia Internacional da Mulher, nosso papo só poderia ser com ela!
Conheci Claudia Feres quando discotecava na inauguração de uma casa noturna, há uns 20 anos. Ela chegou na cabine para me perguntar o que faziam os knobs do mixer. “Gosto de saber como funcionam as coisas”, me disse. Quando o breve assunto cerrou, uma amiga, toda orgulhosa, me contou: “ela é maestrina”.
Como diz bem o lema popular, maluco saca maluco. “Essa mulher deve ser galáctica”, pensei com meus botões (ou knobs). Anos depois, assistindo a um concerto transmitido ao vivo pela TV Cultura da Orquestra Filarmônica de Mulheres — um projeto sensacional da Avon —, eis que vejo Sua Excelência Claudia Feres regendo a mulherada. Competência. Altivez. E humildade em procurar saber, do alto de quem maneja uma centena de timbres e dinâmicas em uma complexa orquestra, o que fazia um mero botãozinho de um mixer.
Nas divertidas e criativas reuniões de pauta semanais do seu Music Non Stop, precisávamos de uma pauta para o Dia Nacional da Música Clássica (05 de março), celebrado apenas três dias antes do Dia Internacional da Mulher (08). A ideia caiu pronta. Vamos entrevistar Claudia Feres, uma das mais importantes regentes brasileiras, nascida em casa de músicos e formada em Chicago (onde concluiu seu mestrado), após ter passado pela Unicamp.
Com a pauta aprovada, acariciei dois coelhos com um afago só. Teríamos a visão feminina sobre a regência de uma orquestra, e eu mataria a vontade de trocar dois dedos de prosa com a maestrina que já liderou concertos das orquestras sinfônicas de São Paulo, Porto Alegre, Campinas e da terra onde cresceu, Jundiaí/SP, polo da música erudita no Brasil. Terra do renomado violonista Fabio Zanon, da própria Claudia e, principalmente da “Tia Josete”, apelido carinhoso dado a Josete Silveira Mello Feres, uma das maiores educadoras musicais do país, amiga de Monteiro Lobato, aluna de Heitor Villa-Lobos, estudiosa em educação musical para bebês.
E mãe da Claudia.
Em mais de 20 anos como regente, Claudia Feres passou por salas em diversas cidades do mundo, dividiu palco com Milton Nascimento, Rita Lee e Daniela Mercury, comandou por cinco anos uma orquestra só de mulheres, a garotada de Heliópolis e muito mais, creditando-a como uma das mais ativas e transformadoras profissionais da música brasileira.
Conversamos com ela sobre a experiência em reger uma orquestra, democratização da música clássica e muito mais. Divirta-se!
Jota Wagner: Você regeu a orquestra de Heliópolis. Como foi a experiência?
Claudia Feres: Muito emocionante. Tem um nível de qualidade muito alto. O nível musical é impressionante, e os professores, os melhores músicos que temos por aqui. Os jovens são muito focados. Trabalhei com jovens entre 12 e 20 anos, já direcionados. Haviam passado por várias etapas e estavam em um nível bastante alto. Já podiam fazer um repertório standard com bastante qualidade. São muito respeitosos — era uma orquestra grande. Foi muito especial. E eles foram muito carinhosos comigo, também.
Por que a música clássica parece tão inacessível, tão intocável?
Eu acho que é a forma como é trazida para o público. A música tem uma linguagem que chega para cada um de um jeito, e não precisa ser inacessível. O formato que a gente estabeleceu nos séculos passados, muito engessado, gera um medo nas pessoas. O mundo mudou muito, ficou muito mais visual, mais solto, livre e diverso. Então a gente pode fazer a mesma música com um novo formato, para que não se tenha “medo” da música que a gente chama de clássica.
Como é que você entrou nessa loucura de viver de música?
Minha mãe é educadora musical. Ela começou a dar aula para os filhos (somos em cinco irmãos). Cantávamos muito em casa com meus pais, e eu comecei a ter aula de piano aos quatro anos. Então eu sempre vivi nesse mundo. Vi que era disso que eu gostava, era onde eu me sentia bem. Quando foi para decidir a faculdade, resolvi escolher regência de orquestra.
O que é preciso para ser uma regente de orquestra? Você precisa ter tocado em uma, como musicista?
Tocar em orquestra sempre te dá uma visão muito importante, de quem está do outro lado. Se não, você fica só com aquela visão do líder. Não necessariamente você precisa ter tocado em orquestra, mas eu acho que é uma excelente experiência. Além disso, acho que é muito bom tocar um pouco de piano, porque você consegue fazer redução das partituras, ouvir melhor… Tem coisas que, só olhando a partitura, você não consegue ouvir tudo o que está ali.
É importante você tocar algum instrumento, ter uma boa formação sobre instrumentação e orquestração. Na faculdade, aprendemos a coisa do contraponto, da harmonia, toda essa parte. Mas, ter experiência de ter tocado em orquestra é bem importante.
Há quanto tempo você já atua como regente?
Faz a conta aí, desde 1981 [risos]!
Fizemos: são 43 anos regendo uma orquestra! Uau!
O que a vida na música te trouxe de mais legal?
A música, primeiro, me dá a possibilidade de conhecer mundos muitos diferentes. Histórias muito diferentes. Muitas pessoas e personalidades. Eu tive a possibilidade de viajar bastante, conhecer outros países fazendo música e estudando música. A música de concerto, desses compositores que a gente chama de clássicos, eruditos, ela fala para mim. É quase que como uma religião.
Um estudo do parlamento inglês publicado recentemente sobre o espaço das mulheres no mercado musical chocou a indústria. Você, em sua carreira, experimentou essa diferenciação de tratamento entre homens e mulheres?
Enquanto a música está acontecendo, você não percebe. Você está completamente envolvida ali. Quando a música para, dependendo de onde você está, do grupo, de quanto tempo você está regendo e as pessoas te conhecem… Eu acho que na minha adolescência eu não percebia muito essas questões. A gente vai fazendo, na minha família era tudo muito natural e, aqui em Jundiaí, só tínhamos regentes mulheres.
No entanto, quando é uma orquestra que não me conhece, não conhece meu estilo de trabalho, sim. Eu sou muito calma. Uma vez um trombonista falou para mim: “maestrina, no meio do ensaio eu vou te dar um sinal, aí você para e dá uma bronca na orquestra, porque você precisa praticar!”. Outra vez, um músico ligou no meu quarto de hotel para dizer que eu não podia admitir que eu errei! Quando a gente erra, a gente assume o erro e pede desculpas.
Com o tempo, eu fui percebendo várias questões de gênero, como a mulher é tratada diferente. As gracinhas, as piadinhas, principalmente nas bancas de prova.
Você regeu a orquestra de um projeto da Avon, só com musicistas mulheres…
Isso foi uma coisa muito importante na minha vida. Eu não sei se a Avon tem noção do que foi isso. Porque no começo, antes de eu estar lá, tem aquela coisa do autoengano. Eu pensava “ah, mais uma jogada de marketing”. Mas, foi uma coisa muito importante.
Primeiro, as pessoas vendo uma mulher regendo, o que era, na época, muito raro. E principalmente nos naipes de metais, não tinha mulheres. Era difícil achar uma menina que tocasse trombone, trompete, tuba. Então depois disso, começaram a surgir várias mulheres tocando. Eu acho que teve um fator bastante importante para trazer mais mulheres, especialmente para os metais.
Eu trabalhei por cinco anos com a orquestra da Avon. Antes de mim, ela existiu por outros três. Tive a sorte de ficar tanto tempo nesse projeto. Foi uma experiência muito bonita. Tem uma delicadeza muito grande em uma orquestra de mulheres.
Em que sentido?
A sensação que me passava é que tinha menos competição. Um apoio maior entre todos. Foi algo bem bonito. E tinha essa coisa da mulher se deixar ser mulher. Porque quando você está em uma orquestra tradicional, você se sente em um ambiente em que tem de ocupar um lugar que é quase sempre do homem. Você precisa vestir um pouco a figura masculina. Naquela orquestra, ninguém precisava fazer isso para realizar sua profissão. Bastava ser mulher e fazer música.
De forma geral, como anda o Brasil neste cenário?
O Brasil cresceu muito. Tem muita gente fazendo música, mas ainda é pouco. Até porque o número de artistas cresceu muito, especialmente por causa desses projetos sociais e as igrejas oferecendo música. Temos, então, pouca oferta de trabalho. São Paulo absorve bastante, mas ainda assim é pouco. A pandemia também deu uma atrofiada no mercado e eu espero que tudo volte. Temos muitos jovens muito competentes no Brasil.
Hoje é o Dia Nacional da Música Clássica. Deixe um recado para as pessoas que te leem e que não estão inseridas neste mundo.
A música clássica precisa de um pouco mais de introspecção. Você precisa sentar, ir para ouvir, porque ela tem uma variedade de timbres, de dinâmicas. E essa introspecção é uma coisa boa. Melhora sua saúde.
Comece com coisas pequenas. Procure saber de quem é a música que você ouviu em um comercial de carros. Hoje em dia, com a internet, é fácil descobrir. Procure ir para salas de concertos. Há concertos didáticos. Na Sala São Paulo, existem concertos didáticos de manhã. Tem muita coisa gratuita para conhecer. E se você não gostou, espera o intervalo, sai da sala e vai em outro.
Como disse Gilberto Gil, “o povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe”. Você pode descobrir. E as orquestras estão nesse movimento de mudar esse formato engessado. Eu procuro muito trazer diversidade dentro de um programa, sem abrir mão da qualidade.