Lollapalooza 2024: o que realmente está por trás dos cancelamentos
Atrás do brilho dos palcos, encontra-se o lado obscuro das turnês
Até agora, quatro grandes atrações do Lollapalooza 2024 cancelaram suas apresentações no Brasil. Paramore, Jaden, Rina Sawayama e Dove Cameron. A produção se virou nos 30 para conseguir substituições à altura, a menos de 30 dia do evento.
Enquanto as palavras deste texto eram transferidas da mente para o computador, conversei com exclusividade com Leca Guimarães, CEO do Lollapalooza Brasil, que se dividia entre entrevistas e a função de remanejar o line-up do festival.
“Dependendo da antecedência com a qual o artista cancela, nem dá tempo de trazer uma outra [atração] gringa, porque tem questões de visto de trabalho e tudo o mais. O que acaba sendo mais caro é que, próximo do festival, a gente já teve de pagar vários custos relacionados ao show, que não veremos mais de volta. Claro que os artistas, quando cancelam, devolvem todo o dinheiro já pago. Mas tem outros custos, como contratos com hotéis, vistos, advogados, que não tem mais como voltar atrás. Não tem o que fazer para diminuir isso”, conta Leca.
E não tem mesmo. O perrengue de última hora não é exclusividade do Lolla. Cada vez mais artistas têm anunciado cancelamentos de turnês de última hora, na maioria das vezes alegando motivos de saúde ou pessoais. E tais surpresas não vão desaparecer.
Parte do público, aquele da “internet que não perdoa”, reclamou, tirou uma onda com a fragilidade dos contratos e distribuiu a culpa, julgando artistas e produtoras. Mas há algo mais obscuro e sombrio da vida na estrada, que pouca gente conhece.
Já viajei incontáveis vezes para discotecar, aqui e fora do Brasil. Há mais de uma década, trabalho como tour manager (gerente de turnês) de músicos internacionais. Latino-americanos, europeus e norte-americanos. Acompanho de perto, desde a chegada ao aeroporto até sua despedida do país. Hotéis, traslados, longas esperas em salões de embarque, passagens de som, e muitas outras atribuições exigidas. A mim, acabou a tour, basta colocá-los no voo e ir para a casa descansar.
Os artistas, no entanto, estão geralmente voando direto para outro país, onde começará uma nova turnê, com novas correrias e novos shows. Já cuidei de pessoas que estavam há nove meses longe de casa.
A pandemia contribuiu para aumentar ainda mais o problema.
“O que a gente vê no pós-pandemia é que tem muita banda, muita gente trabalhando. Nunca tivemos tantas turnês ao mesmo tempo como agora. Teve um boom. E muito artistas, quando não têm uma justificativa clara, como foi o caso do Taylor Hawkins, que faleceu, e o Travis [Barker], que precisou operar a mão, citam como motivo esta coisa do mental health“, segue a executiva.
“Há um problema que vem crescendo em todas as classes, não só de músicos, que é a saúde mental. Então tem essa coisa de trabalhar demais. Esses problemas começaram a aumentar, não só no mundo artístico, e começou a se falar mais sobre o assunto. Então, talvez, tenha sim, uma relação entre a pandemia e o aumento dos cancelamentos.”
Um contrato entre um grande festival e uma estrela procura cobrir todos os detalhes de uma viagem. Os agentes especificam a qualidade dos hotéis, da comida, os horários dos voos, as condições do camarim e o atendimento à imprensa e fãs, por exemplo. Mas, por mais que se tente, é impossível garantir uma turnê livre de perrengues.
E é óbvio que as cláusulas não contemplam uma “proibição” de cancelamento. São seres humanos. O pé quebra, o filho fica doente, o pai morre e, comum nos dias de hoje, a mente pede arrego.
Um voo entre São Paulo e Curitiba, por exemplo, leva uma hora. O tempo de espera entre check-in, espera no salão de embarque e recolhimento das malas, mais uma. O deslocamento entre aeroportos, outra hora. Isso significa que, entre deixar o hotel em Sampa e chegar no de CWB, são aproximadamente cinco horas de rolê. Se o voo atrasa, todo um planejamento vai por água abaixo. Este é apenas um exemplo.
Passagens de som embolam, imprevistos mil alteram a agenda e um monte de outras situações vão drenando as energias de um músico, que já vem cansado de outro país, está com jetleg e fazendo uma dieta completamente diferente da qual está acostumado.
O que o público (pelo menos o que critica o cancelamento) vê, em cima do palco, é apenas a parte iluminada de uma extenuante rotina, que estressa ao limite. Vários profissionais com quem trabalhei passaram todo o pouco tempo livre que tinham entre os compromissos enfiados no quarto do hotel, sozinhos. Sair para ver a cidade, tirar fotos e conhecer gente, nem pensar. E não é porque querem, mas porque não conseguem.
Mesmo tendo sido um DJ de relevância menor no mundo da música, perdi a conta das cidades incríveis em que estive, mas só conheço as ruas do circuito aeroporto-hotel-club. Paris, Oslo, Cádiz, Sevilla, Málaga, além de centenas pelo Brasil. E quantas vezes não desejei estar em casa?
Quem está fora do mundo das turnês imagina festas, diversão, lugares paradisíacos e muita bajulação. Pode até rolar, mas tem muita correria e canseira no meio disso.
Os Rolling Stones, por exemplo, trazem na equipe seu próprio chef de cozinha. Frescura? Medo de serem envenenados? Não. Em sua autobiografia (Vida, Ed.), Keith Richards conta que o funcionário que acompanha a banda cozinha para ele a sheppard pie, prato que sempre comeu, desde criança. Richards faz da comida uma forma de conseguir se sentir, pelo menos um pouco, em casa.
Artistas sofrem com a chamada Síndrome do Quarto de Hotel. Você se apresenta, troca aquela energia incrível com o público, desce para um camarim lotado de gente te elogiando, dizendo como o show foi incrível, te oferecendo todo o tipo de coisas, lícitas ou não. Horas depois, está de volta a um quarto que não conhece. Sozinho ou acompanhado de alguém que jamais verá novamente. A quintessência do efêmero.
Com a correria, muitos recorrem ao uso de drogas, muito mais de forma “medicinal” do que recreativa. O cansaço chegou ao limite? Vem lá, sem esforço, um tiro de pó. De volta ao hotel, trincando de adrenalina depois de um bom show, remédios para dormir. Um dia, dois, três… até que o estoque de serotonina finalmente seca e a depressão chega. Como curá-la? Mais droga. Claro que isso não é regra, mas acontece.
Não foram, aliás, as drogas a causa da desintegração psíquica e a morte de artistas como Amy Winehouse, Taylor Hawkins ou Kurt Cobain. Foram as turnês. Ou seu excesso. E a pandemia só fez aumentar a correria, já que produtores e artistas estão correndo atrás da recuperação de dois anos completamente parados.
No fim das contas, o aumento dos cancelamentos é até uma ótima notícia. Significa que muita gente está tendo coragem de dizer: “olha, cheguei no limite. Não vai dar não”. Escolher ficar em casa em um momento de esgotamento é uma atitude de coragem e, principalmente, respeito consigo mesmo, acima da vaidade e do dinheiro.
Simone Biles, ginasta estadunidense, abandonou as olimpíadas de Tóquio às vésperas, por esgotamento mental. O jogador Adriano Imperador abandonou seu time na Europa e se refugiou na favela em que cresceu junto aos amigos e à família. Estes são os verdadeiros heróis. Os verdadeiros punks.
O fã, claro, fica histérico com a notícia. Mas, numa boa? Tirando a ilusão da idolatria a um ser humano que, no que importa, é igual a nós, o cancelamento de algumas apresentações em meio a centenas de outras confirmadas não vai fazer diferença alguma. Não vai aumentar o derretimento das calotas polares, não vai influenciar nas guerras ou na desigualdade social.
Desmarcou o show? Entendo. Se cuida. E tenta de novo, no ano que vem.