TEXTO CLAUDIA ASSEF E CAMILO ROCHA
(COM INFORMAÇÕES DE MARCELO JUNQUEIRA E ADRIANA ARAKAKE)
FOTOS TATIANA SILVESTRONI
Com ingressos pouco acessíveis e line-up passando longe do que pode ser chamado de popular, o novato C6 Fest, que aconteceu entre Rio e São Paulo entre os dias 18 e 21, vinha com muito para provar. Se, por um lado, o formato de vender ingressos separadamente para cada palco transformou o desejo de circular de um ambiente para o outro em algo impeditivo, por outro, a fórmula de cavar fundo na curadoria e trazer um mix de artistas consagrados e novidades de altíssima qualidade deu muito certo. A receita é bem conhecida do público, pois é a mesma que transformou em sucesso absoluto os festivais Free Jazz e depois Tim Festival, ambos criados pela produtora Dueto, responsável também pelo C6 Fest.
As heranças do Free Jazz/Tim Festival estavam por toda parte: da diversidade e riqueza dos estilos representados nos palcos à marca registrada de mesclar nomes hypados com dinossauros importantíssimos, passando por detalhes, como o revestimento acarpetado da Tenda Heineken, com ar condicionado sempre no talo (lembranças de quem já passou muito frio no Tim Festival no Jockey em São Paulo). Isso sem falar nos banheiros, mais impecáveis do que os de shoppings de rico.
Obviamente se trata de um evento elitizado. Isso se nota pelo alto valor dos ingressos, pela comunicação refinada do evento e pela curadoria, que investiu em artistas mais alternativos. Não é segredo que estamos falando de um evento proprietário de um banco, cuja comunicação não é direcionada ao povão. Briefing dado, briefing cumprido. Ponto para a Dueto.
Mas vamos ao festival. A rádio peão deu conta de espalhar que, no Rio, o evento foi minguado, com público de 500 pessoas assistindo ao show do Kraftwerk. O primeiro dia de shows em São Paulo, sexta (19), não chegou a decolar em termos de público.
De aspirante a talento globalmente reconhecido em poucos anos, a inglesa Arlo Parks ainda tem um show bastante simples, para não dizer simplório. Não há iluminação especial, nem cenografia ou projeção de imagens. Fofa e calorosa com o público, ela sorri e saltita em sua camiseta de Bob Dylan, em uma apresentação bastante correta.
Em seguida, Christine and The Queens, com toda a sua teatralidade e voz impecável, tocou para pouco mais de meia tenda de lotação, porém a energia subiu consideravelmente à medida em que elo explorava com movimentos de atleta olímpica toda a extensão do palco, que já havia recebido mais cedo as potências Xênia França e o grupo inglês Dry Cleaning, com toda a sua elegância pós-punk.
Dentro do Auditório Ibirapuera, a briga pelo pódio do alto nível estava acirrada também. Só na primeira noite passaram por lá um tributo ao musicólogo Zuza Homem de Mello, peça fundamental na história do Free Jazz Festival, com a Orquestra Ouro Negro acompanhada de Mônica Salmaso, Fabiana Cozza e Gabriel Grossi, a inglesa Nubya Garcia, o americano Julian Lage e o estupendo Tigran Hamasyan Trio, da Armênia.
Os mais animados ainda tinham um ambiente de festa para gastar a energia sobressalente, o Pacubra, pavilhão que já há um tempo vem recebendo festas como a Gop Tun, que aliás foi uma das atrações da noite, ao lado da nova-iorquina Disco Tehran.
RAVE NO PARQUE
Depois de abrir os trabalhos com a música curativa do camaronês Blick Bassy, na Tenda Heineken, as atenções do público do sábado (20) se dividiram entre quem ficou na tenda, mais voltada para o jazz, e a turma clubber, que migrou de mala e cuia para o palco a céu aberto, tendo o gramado do Ibirapuera transformado em pista rave com uma sequência que foi também um curso da evolução sonora da música eletrônica.
Quem ficou na Tenda Heineken pôde acompanhar um dos artistas mais completos da atualidade. Vencedor de 5 categorias Grammy em 2022 e com um Oscar de melhor trilha sonora no currículo, Jon Batiste se apresentou pela primeira vez no Brasil e temperou seu jazz, soul e pop usuais com samba e, no bis, com a ciranda luxuosa de Lia de Itamaracá.
Acompanhado de uma banda formada em sua maioria por mulheres, ele dança sem parar, toca piano, sax, escaleta, guitarra e incendeia o público com sua energia e carisma contagiantes, festeja suas raízes trazendo o vigor e clima de festa típicos de New Orleans para o palco. Sensacional.
No palco externo, a escalação começou com Juan Atkins, um dos fundadores do techno de Detroit, com seu projeto Model 500. Batidas de electrofunk e techno clássico, faixas como Alleys on My Mind e Clear (ainda do projeto Cybotron, anterior ao Model 500) e Night Drive recepcionaram o público que se avolumava com a chegada da noite. Vocais sinistros e sintetizadores cortantes deram um tom sci-fi distópico ao conjunto, nos lembrando de visões futuristas dos anos 1980.
Em seguida, uma projeção de números com tipologia e cor verde de computador vintage invadiu o telão gigantesco que ocupava a empena do Auditório Ibirapuera, nos jogando para um tempo ainda mais antigo.
Era o Kraftwerk e sua perspectiva futurista dos anos 1970, misto de fascinação e apreensão com um mundo cada vez mais regido por aparelhos e máquinas. A apresentação foi irretocável, perfilando clássicos da música de sintetizador como Autobahn e The Model com acompanhamentos visuais que utilizaram bem o espaço de projeção (até imagens de São Paulo e Rio de Janeiro apareceram). Robôs não choram, mas sabem fazer chorar.
Depois, as preocupações terrenas do Kraftwerk (estrada, trem, bicicleta) deram lugar à transcendência do Underworld. Sem nenhuma dó de nossas pernas, a nave de Karl Hyde e Rick Smith decolou de cara com Two Months Off. Dali em diante, vieram Rez, Cowgirl, a nova And the Colour Red, a apoteótica Born Slippy, entre outras faixas imortais.
O ritmo do show é intenso e nos traz a terceira perspectiva de futuro da sequência musical: o otimismo dançarino da década de 1990, quando parecia que todos nossos problemas se resolveriam na pista. Emocionante.
DOMINGÃO DE JAZZ
A noite final no lotado auditório do C6 Fest no Ibirapuera começou de forma tranquila com uma plateia comportada, majoritariamente jazzística, respeitando o silêncio necessário para apreciar todos os timbres da voz poderosa e encantadora da artista revelação do Grammy 2023, Samara Joy. A artista de 24 anos, catapultada ao estrelato por vídeos viralizados no Tik Tok, também conquistou o público com sua versão de Flor de Lis, de Djavan.
CATACLISMA – DOMi & JD BECK
A segunda atração da noite abaixou ainda mais a idade média do palco. DOMi, tecladista francesa de 22 anos, e JD BECK, baterista texano de apenas 19, subiram ao palco com uma timidez adolescente, pueril, que se revela também nos intervalos e nas músicas apresentadas de seu primeiro e único álbum. Mas já nos primeiros acordes a dupla de jovens prodígios mostrou uma maturidade sonora que ia da complexidade do jazz fusion às batidas do drum and bass, e que pareciam sair de quatro mãos e quatro pés tocando em tempos independentes, velozes, mas precisos, em um cataclisma coeso, seminal e autoral.
CATARSE DO COMETA
Já passava da meia noite, e metade do público já havia ido embora quando The Comet is Coming se chocou contra o Parque do Ibirapuera. Não demorou mais que alguns minutos para que a plateia, que já dançava sentada desde a primeira música, se insurgisse e transformasse o comportado auditório em uma animadíssima e energizada pista de dança. A banda londrina fez jus ao potente sistema de som do auditório, misturando jazz, elementos afros, techno e psicodelia, sob a cama de synths e do sax marcante de King Shabaka. O público que lutou contra o cansaço saiu recompensado dessa edição do C6 Fest, repetindo após mais de 20 anos, o que fez Norman Cook aka Fatboy Slim no Free Jazz Festival de 2001, quando conduziu a plateia madrugada adentro de uma segunda-feira dançando na pista.
Ao final de três dias de shows intensos em São Paulo, o saldo bancário foi positivo para o C6 Fest nos quesitos curatorial, como ficou claro nesta resenha, e de infraestrutura, com banheiros limpos, boas opções de comida, locação maravilhosa e poucas filas no geral – exceto nos banheiros do Pacubra, onde presenciamos até brigas da elite apertada para usar o vaso. No que tange à sustentabilidade, porém, o cenário terminou em déficit, visto que quem comprou ingresso certamente encarou um belo impacto financeiro na planilha, além de o festival não ter aproveitado a ocupação do nosso querido Ibira para recuperar estruturas do próprio parque, fazendo assim um investimento de longo prazo. Mas uma coisa é certa, aposto que ano que vem todo mundo vai querer mais.
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