Noite Foto: Ross Sneddon [via Unsplash]

Boa noite, Brasil: quando a diversão vira sobrevivência

Jota Wagner
Por Jota Wagner

O país assiste, inerte, à destruição da sua vida noturna por venenos, golpes e impunidade

A cultura da noite, dos bares e das casas noturnas está em cheque. Nunca foi tão perigoso sair para se divertir, na história recente da civilização. E hábitos enraizados no ser humano são agora usados como porta de entrada para ataques violentos e covardes, sem qualquer combate por parte de uma polícia lenta e completamente perdida em sua própria teia burocrática. Há muito do Brasil em tudo o que está acontecendo em relação aos crimes que envolvem sair, beber e conhecer pessoas. A parte péssima do país.

O escândalo recente com a adulteração de bebidas com metanol, causando mortes em pessoas que apenas queriam se divertir, é a ponta de um iceberg social. A desigualdade causa a busca pelo mais barato, prato cheio para contrabandistas e facções criminosas. A ineficiência pública causa um hiato de fiscalização. Nos bairros dos ricos, é rara. Nos dos pobres, inexistente.

Sim, bares de bairros da classe média também estão envolvidos na venda do produto criminoso. Mas segundo matéria publicada pelo UOL, donos de estabelecimentos da periferia de São Paulo já tinham conhecimento dos produtos adulterados ao menos desde março, o que derruba a hipótese de que o metanol utilizado para a adulteração era fruto da desova após a operação da Polícia Federal contra postos de gasolina e distribuidoras controlados pelo PCC, iniciada há poucas semanas.

O monstro vai se revelando devagar. Um dono de bar nos Jardins, cujo cliente morreu após ter bebido drinks adulterados, diz que todos, na região, compram de “distribuidores que passam na rua”. É isso mesmo, caminhonetes com vendedores “de confiança” passam na frente do bar, vendendo bebidas alcoólicas cuja procedência não se tem a menor ideia, principalmente após o fechamento do SICOBE durante o governo de Michel Temer, que fiscalizava a produção e a importação de bebidas alcóolicas. O sistema de controle da Receita Federal foi desmantelado em 2016.

A adulteração já corria a rio caudaloso desde então, e só está na pauta policial agora, quando os criminosos “exageraram na dose”, causando mortes. A reportagem já citada entrevistou donos de bares, que avisavam alguns clientes, principalmente idosos, que as bebidas mais baratas tinham “gosto ruim” e davam “ressacas mais pesadas”. Eu e você, leitor ou leitora, já estamos bebendo metanol há tempos, sem saber. E os problemas silenciosos à saúde, provocados por esse consumo, ainda não foram mapeados. Simplesmente porque, até então, estava tudo rolando conforme o jeitinho brasileiro, um país onde policiais e bandidos frequentam os mesmos botecos. “Tá todo mundo trabalhando”, né?

Enquanto, por mera falha dos adulteradores, todos estão chocados com o problema, outro muito maior segue em um beco escuro da noite, causando muito mais vítimas, de forma ainda mais cruel, sem qualquer esforço policial para combatê-lo. O golpe chamado “Boa Noite, Cinderela”, em que covardes batizam bebidas em bares, casas noturnas e festivais, com drogas sedativas e alucinógenas, como o GHB, para roubar seus pertences e, em casos ainda mais graves, abusá-los sexualmente.

Um problema jogado para debaixo do tapete há 20 anos, por pura incompetência jurídica e policial. Até hoje, não existe uma tipificação específica para esse tipo de crime. O boletim de ocorrência é registrado nas delegacias como roubo ou estupro, independentemente de como foi executado, o que deixa as delegacias sem qualquer estatística para planejar seu combate.

E mais. E pior. Os crimes são largamente subnotificados. Por vergonha da vítima, que estava consumindo bebidas alcóolicas. Por não se lembrar, ou se lembrar de forma fragmentada do que ocorreu. Por omissão policial, de profissionais da noite e da própria população, que ao verem uma pessoa vulnerável pela rua, automaticamente assumem que está “muito louca”.

Enquanto isso, quadrilhas atuam em todos os bairros notívagos das grandes cidades, formadas por mulheres (geralmente responsáveis pela abordagem) e homens. Se você está sozinho, você é o alvo. Se estiver vulnerável por beber um pouco a mais, o risco aumenta. Homens, mulheres, turistas… Enquanto você tenta se divertir ou socializar, alguém está de olho em você, planejando um ataque horrendo.

Sair à noite nunca foi tão perigoso. Pode mudar sua vida para sempre. O impacto dessa omissão pública na cultura da noite será pesado. Associações de bares e casas noturnas precisam se posicionar por policiamento e investigação. Artistas também. Todos os profissionais de cultura, idem. Por enquanto, está todo mundo pensando somente no próprio bolso, com posts nas redes sociais declarando que “só compram bebidas confiáveis”, ou que “têm equipes treinadas para identificar assédio”. É preciso fazer muito, muito, muito mais. Ou as pessoas preferirão ficar em casa, com toda razão.

Ao sair, por ordem de importância, o que se pode fazer por enquanto é:

Boa Noite, Cinderela

Não saia sozinho

Você estará sendo observado por ser um alvo em potencial. Se estiver sozinha ou sozinho, quadruplique sua atenção. Não se coloque em situações de desproteção e preste muita atenção em abordagens “do nada”, principalmente em locais badalados e turísticos. Infelizmente, esse é o procedimento, enquanto o poder público não age.

Por tudo o que lhe é sagrado, olhe para os lados

O mundo ainda é feito, majoritariamente, por pessoas boas. E você pode ajudar. Fique atento às pessoas que estão do seu lado e, se notar alguém vulnerável, tome uma atitude. Acione a equipe do bar ou da casa, envolva outras pessoas, chame a polícia. E o mais importante, não a deixe mais sozinha, até que esteja totalmente amparada.

Projeta sua bebida

A melhor solução, em um momento como esse, são os protetores de copos, em plástico ou silicone, que fecham a boca do seu drink, deixando espaço apenas para o canudo. Isso dificulta que alguém jogue alguma substância em sua bebida. Não o deixe fora da sua vista.

Não há lugar seguro

Os golpes estão sendo aplicados em botecos, bares luxuosos, festas, grandes festivais e shows. Sem distinção.

Metanol

Prefira drinks enlatados

Se um dono de bar nos Jardins “não sabia” que a bebida que ele comprava era adulterada, não dá para confiar enquanto a polícia não desmantelar totalmente a rede de adulteradores (o que pode demorar, ou nunca acontecer). Drinks como a Caipirinha ou qualquer tipo de coquetel maquiam o sabor de um destilado que esteja eventualmente adulterado.

O controle não é seu

Dicas como prestar atenção na qualidade de impressão do rótulo ou do lacre só podem ser seguidas por quem está lhe vendendo o produto. Em um balcão de bar lotado, a mesma garrafa é utilizada para a confecção de dezenas de coquetéis. A que foi usada no seu drink já está aberta.

Em todos os casos

Pressione

Muito do que está acontecendo é responsabilidade da morosidade policial. Pressione. Faça barulho nas redes sociais. Denuncie. Acione sua associações de classe, se você é um profissional da noite.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.