beyoncé lançamentos sexta Beyoncé. Foto: Divulgação

Beyoncé celebra a dance music, da disco aos bailes Vogue, em Renaissance. Conheça samples, referências, causos e feats do disco.

Claudia Assef
Por Claudia Assef

Claudia Assef disseca o novo álbum de Beyoncé, te conta quais são os samples e conceito da nova bomba da cantora

FOTOS DIVULGAÇÃO Beyoncé RENAISSANCE

Work hard, play hard. Você conhece essa frase, que já virou camiseta, música, adesivo. Ela foi a primeira coisa que me veio à cabeça quando escutei Renaissance, sétimo disco de Beyoncé, lançado sexta-feira (29). Se tem alguém que trabalha duro nesse showbusinnes é a Beyoncé. E agora vemos que ela também é chegada numa boa farra.

A rainha que reside na mais alta das coberturas da indústria musical também é de carne e osso e viveu na pele, assim como o resto de nós, mortais, a pandemia. Em vez de voltar, após seis anos sem lançar disco, desde o agora clássico Lemonade, com um álbum denso, sofrido, lamurioso, ela retorna com um sopro de hedonismo que tem data e local de nascimento certos: a pista de dança underground dos anos 70/80/90, onde gêneros da música eletrônica, hoje estabelecidos e já transmutados em produtos comerciais, nasceram, das mãos de parteiros e parteiras pretxs, gays e latinos.

Não é de hoje que os beats afloram nas produções de Beyoncé. Mas Renaissance é a sua prova de amor à pista de dança. Não àquela dos ricos e famosos com drinks que piscam, mas aos porões, inferninhos e outros buracos onde a disco music mostrou ao mundo que boate não era pra ficar sentado bebericando whisky e vendo show. No Instagram, Bey anunciou que o álbum é uma homenagem à sua família, em especial ao seu tio gay Johnny, que foi para ela “uma ‘madrinha’ e a primeira pessoa a me apresentar músicas e a cultura que serviu como referência para este álbum”, escreveu a rainha.

Cheio de referências e samples, Renaissance é uma ode à música tocada por DJs e a gêneros musicais nascidos de suas mãos, como disco music (que marcou o nascimento das pistas), house (a filhote eletrônica da disco), Vogue (cultura que promove o encontro da house com dança e moda, em festas chamadas de ‘balls’), bounce music (um estilo mais dançante de hip hop originado no sul dos EUA) e aos assuntos que ajudam a compor uma boa pista de dança, especialmente a sedução e, claro, o sexo.

Traga essa batida
Agora eu posso respirar novamente
eu estarei derrubando o bloco
Derrubar Basquiats da parede
É assim que eu jogo

I’m That Girl, Beyoncé

GARIMPO DE SAMPLES 

O disco abre com I’m That Girl, com sample de Still Pimpin (Tommy Wright III, de 1995) e aura de introdução apoteótica, com uma cama de sintetizadores quentes e o vocal autorefencial da rainha dizendo que não é pelos diamantes nem pelas pérolas, mas ela é a garota e ela é foda! Ninguém vai discutir, vai?

Ensaio para a capa de Renaissance. Referência à Bianca Jagger chegando de cavalo ao Studio 54? Foto: Carlijn Jacobs/Divulgação

A segunda faixa, Cozy, vem grudada na primeira, sem intervalos, como nos discos mixados por DJs. A faixa é uma homenagem ao público LGBTQIA+, na qual Beyoncé nomeia todas as cores da bandeira do Progresso Pride, versão atualizada em 2018 do principal símbolo do orgulho gay. A música tem pegada da mistura de hip hop e house music, tão simbólica dos anos 90, e foi construída em cima da batida sampleada de Get With You, de Lidell Townsell & MTF, e trechos de Unique, do Danube Dance. Só coisa fina, garimpo feito nas profundezas do underground. A produção é estrelada, assinada por Beyoncé, Chris Penny e os DJs Luke Solomon e Honey Dijon.

UniqueDanube Dance 

Get With You – Lidell Townsell & MTF

CozyBeyoncé

A terceira música, Alien Superstar, começa com sample de Moonraker, do nova-iorquino Foremost Poets. “Please, do not be alarmed, remain calm. Do not attempt do leave the dancefloor”, diz a letra, que abre os trabalhos para uma autodeclaração de amor e confiança de Bey para Bey. Uma faixa etérea, em que batidas e camadas de sintetizadores fazem a cama para os vocais sensuais da cantora. A música ainda tem bem discretamente um sample do hit I’m Too Sexy, do Right Said Fred. Aqui também tem dedo dos DJs Luke Solomon e Honey Dijon na produção.

Cuff It, a quarta música, nos leva para a Nova York dos anos 70, com com produção impecável da dupla Nova Wav, formada por duas compositoras/produtoras pretas norte-americanas, Blu June e Chi Coney. O duo assinou, além de Cuff it, outras sete músicas do álbum. Não precisa ser um gênio para sacar a levada de guitarra de Nile Rogers, fundador do Chic e dono de um riff inconfundível – Rogers está creditado na autoria da música, além de Beyoncé, Blu June e mais um time de colaboradores.

A faixa seguinte, Energy, tem participação do jamaicano Beam e foi escrita por um time pesadíssimo de compositores, incluindo Pharell Williams, Big Freedia (uma das mães da bounce music), o produtor e DJ Skrillex, Chad Hugo (metade dos Neptunes) e a própria Beyoncé. Inicialmente a música continha um sample de Milkshake, da rapper Kelis, produzida pelo Neptunes. Depois de muito bafafá na internet por conta da falta de crédito para Kelis, inclusive com a própria vindo a público dando uma chamada em Beyoncé, o sample foi removido. Vários vídeos de fãs comprovaram o uso da música, como este aqui.

Break My Soul – Beyoncé

Robin S – Show Me Love

Finalmente chegamos ao primeiro hit do disco, Break My Soul, faixa lançada como single um mês antes de o álbum sair. A batida, que foi construída em torno de um sample da clássica e queridíssima dos clubbers dos anos 90 Show Me Love, de Robin S, constrói uma atmosfera sofisticada e dançante, muito característica dos balls nova-iorquinos. Um presentão de Beyoncé para o mundo pop, com recheio sabor Vogue.

Bônus track da redação – The Ha Dance, do duo Masters at Work, uma das músicas que definiram os bailes Vogue

Para mergulhar mais a fundo na cultura dos bailes Vogue assista este minidocumentário feito pelo canal educativo PBS, The Sound of NYC’s Underground Vogue Scene 

Seguimos com mais cultura de pista de dança com esse aulão sobre black music dançante que é Renaissance. A próxima música, Church Girl, abre com um sample lindíssimo de Center of Thy Will, de 1981, um hino gospel macio como veludo cantado pelas irmãs Clark, um dos grupos vocais femininos de maior sucesso da história, que viveu seu auge e ganhou três prêmios Grammy nos anos 80.

Center Of Thy Will – The Clark Sisters 
 

E tem mais hip house, gênero que marcou os anos 1990 e deixou saudade. Em Church Girl, Bey reproduz um trecho, com alterando a letra, de Where They At (Dirty), do DJ Jimi, de 1992. Tem mais fundamento black nessa faixa, trata-se de um sample de Think (About It) de Lyn Collins, produzida e lançada pela gravadora de James Brown (que está nos créditos de composição de Church Girl e faz backing vocals na música original). Think (About It), aliás, é a música que deu origem a um dos maiores sucessos do hip house, It Takes Two, de Rob Base and DJ E-Z Rock.

Where They At (Dirty) – DJ Jimi

Think (About It) Lyn Collins

Plastic Off The Sofa vem com aquela pegada de baladinha romântica para dar um respiro da pista de dança (mas nem tanto) bem no meião do álbum. Lembra os tempos de Bey jovenzinha no grupo Destiny’s Child, só que com agora com pós-graduação na arte de cantar uma bela canção de amor melada de romance r’n’b. Tira logo esse plástico do sofá, Jay-Z!

O clima de pegação continua com Virgo’s Groove, uma autoreferência ao signo de Bey, virginiana no dia 4 de setembro. A faixa segue um groove sexy, certamente inspirado por nomes como Marvin Gaye.

Virgo’s Groove – Beyoncé

Move traz Beyoncé de volta para a pista, agora na companhia de ninguém menos do que a musa inspiradora dos notívagos amantes de boa música, Grace Jones, além da cantora, produtora musical e compositora nigeriana Tems. Aqui, Bey e as migas se jogam num afrobeat poderoso e moderno, com vocais das três se alternando numa combinação perfeita de timbres. Ouso dizer que é a minha música preferida, uma espécie de versão mais abusada e atualizada de Single Ladies, só que bem mais malvada.

Move – Beyoncé (feat. Grace Jones e Tems)

Heated, a próxima do disco, segue na mesma aura afrobeat para fazer uma homenagem ao tio de Beyoncé, a quem ela já fez outras homenagens em prêmios. Teoricamente ele era sobrinho da mãe de Beyoncé, mas ela e a irmã, Solange, o chamavam de tio e tinham adoração por ele. Entre os créditos de composição da música está outra estrela que volta a colaborar com Bey, o rapper Drake.

Thique dá um passeio por vários estilos de música eletrônica, chega a ter batidas de techno, mas a aparente confusão proposital na produção musical serve para deixar a voz, ora cristalina, depois áspera e sôfrega, em primeiro plano.

All Up In The Air é quase um mantra comandado por sintetizadores, com Mike Dean e The-Dream, nomes que surgem em várias faixas do álbum, entre o time de produção. A música seguinte, America Has A Problem, pega emprestado o nome e o sample inicial de America Has a Problem Cocaine, de 1990, do rapper Kilo Ali. Aqui, Bey compara o poder viciante de uma mulher com o da cocaína. “Não dá pra ficar mais doido que isso”, ela diz sobre uma base que lembra o electro com toques de música árabe de Egyptian Lover.

America Has a Problem “Cocaine”Kilo Ali

America Has a ProblemBeyoncé

Como numa magrugada na boate, com o sol prestes a raiar e os inimigos do fim sem nenhuma vontade de ir embora, o disco fica ainda mais emotivo com relação ao passado. É como um grito de Bey dizendo “que tempo bom, que não volta mais”. Pure/Honey, a penúltima música, traz fortes referiências à cultura Vogue, com samples de Cunty, de 1999, do Kevin Aviance, que considerou a homenagem “uma carta de amor ao cultura negra e queer norte-americana, boa parte dela legadas ao ostracismo por suas próprias famílias”.

CuntyKevin Aviance

Outra homenagem feita na música foi ao já falecido Moi Renee, figura ilustre na cena ballroom de Nova York, falecido em 1997. Na faixa, Bey usou um sample de Miss Honey, de 1992.

Miss HoneyMoi Renee

Pure/HoneyBeyoncé

Chegamos ao final da noite, ops, do disco, após pouco mais de uma hora de um carrossel de emoções, referências, homenagens, participações estreladas e da escuta de uma Beyoncé ainda mais madura e totalmente no comando da ferveção. Se este é apenas o “act 1”, como anunciado antes de cada faixa, imagina o próximo.

O álbum não poderia terminar sem uma grande homenagem a Donna Summer, Giorgio Moroder e Pete Bellotte, e assim chega a apoteótica Summer Renaissance, uma versão 2022 com a cara de Bey e de seu time de produção, que nesta faixa vem com bonde Beyoncé, Nova Wav, Mike Dean, The-Dream, Leven Kali e Sol Was. Um belíssimo desfecho para um disco pesado de referências à cultura preta, queer e clubber norte-americada. Larry Levan deve estar em festa no céu.

Summer Renaissance – Beyoncé

 

Claudia Assef

https://www.musicnonstop.com.br

Autora do único livro escrito no Brasil sobre a história do DJ e da cena eletrônica nacional, a jornalista e DJ Claudia Assef tomou contato com a música de pista ainda criança, por influência dos pais, um casal festeiro que não perdia noitadas nas discotecas que fervilhavam na São Paulo dos anos 70.

× Curta Music Non Stop no Facebook