Ava Rocha - Néktar Ava Rocha. Foto: Divulgação

“Beber o próprio choro e transformar em potência”: Ava Rocha fala sobre seu novo disco, “Néktar”

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Às vésperas do show de lançamento do álbum, na Casa Natura Musical (26), conversamos com a artista

Ava Rocha apresenta Néktar nesta quinta-feira, em São Paulo. Informações, ao final da entrevista.

Ava Rocha me aguarda para uma entrevista online em São Paulo. Na mão, um cigarro que seria aceso apenas no final da entrevista. Falamos sobre criação, shows e seu último — e ótimo — disco, Néktar, que saiu em julho, após um hiato de cinco anos.

Ela é apresentada como compositora, cineasta, performer, artista visual e poeta. Mas podemos olhar sua vida criativa por outro lado. Ava Rocha é uma poeta que faz música, filmes, performances… e que dá entrevistas.

Sua fala tem uma divagação debochada, maquiada de sonolência, para dar tempo à artista que busca o fio da próxima frase nos confins do espaço. E assim, devagarinho, vai trazendo para o plano das palavras o que buscou nas gavetas da alma.

Néktar é um disco diverso em ritmos, mas coeso na principal qualidade de Ava: a poesia. E conversar com poetas é mergulhar em águas profundas. Foi assim que, na velocidade do mar, emendamos nosso papo.

Estive no show de Ava Rocha em uma garagem minúscula, durante o festival Edith Cultura, em Bragança Paulista, em 2022. Por entre próximas paredes, ela reverberava potência, acompanhada por um público alucinado. Foi o melhor show do festival, encabeçado pelas lendárias Mercenárias. O ponto alto, claro, foi o grande hit de sua carreira, Joana Dark. Música que tem um dos melhores refrões da música brasileira, com o trocadilho “sou eu quem mando, na fogueira do pecado”.

Ava circula entre pequenas casas e festivais, o que faz pensar como ela se prepara para diferentes situações de palco ao longo do ano.

— Eu acho que cada show é afetado, de todas as formas, pelo seu contexto. Depende, entre outras coisas, da energia das pessoas e do próprio dia. Os shows são acontecimentos ligados a um movimento constante, inventivo e, ligado aos seus próprios percalços e situações. Eu parto do princípio de que nada faz pauta. São todos elementos com os quais a gente deve dialogar. Meu show é vivo, nesse sentido. É fazer nascerem as imagens, criar esse filme — diz.

Feito o convite, Ava vai pro jogo. Conta como foi o desafio de se apresentar na China, show que fez sozinha. Seu passaporte tem vários outros carimbos. Se apresentou nos Estados Unidos, Colômbia, pais em que tem ascendência, e vários outros da América Latina. Sua música já chegou à atenção de Iggy Pop, que a incluiu em seu programa de rádio na BBC.

Ao contrário de alguns músicos, ávidos por lançamentos todo ano, o tempo para ela passa diferente. Néktar saiu cinco anos após seu álbum anterior, Trança. O espaço de tempo entre os nascimentos não é intencional.

— Eu não planejo tanto. Na verdade, eu componho mais do que o ritmo em que tenho conseguido gravar e lançar os discos. Por mim, eu os lançaria em um tempo mais curto, porque obra, eu tenho. Depois do Néktar, sobraram muitas coisas, muitas músicas que não entraram.

— Tudo é um exercício, para não fazer um disco tão longo quando o Trança. Eu tenho muita música e também sou interprete. Quando estou construindo um trabalho, eu não me pergunto de quem é a música. Vou reunindo elementos que vão construir a minha narrativa — segue Rocha.

— Também é mais lento gravar um disco por causa dos recursos, de como viabilizar… Além do tempo, porque estou sempre em turnê e fazendo também outros trabalhos na área artística, visual, no cinema, além de ser mãe.

É difícil reconhecer uma organização empresarial, de workaholic, na fala pausada de Ava Rocha. Mas ela dá seus vários pulos, do seu jeito, e completa, parecendo ler meus pensamentos.

— Hoje em dia, a gente vive uma velocidade desumana, então é preciso frear, entender também que o tempo é outro tempo. Que é um tempo que não é o tempo também dado, não é o tempo das expectativas contemporâneas.

Invoco a poeta para nossa conversa, e ela se apresenta, nebulosa e intrigante.

— Cara, eu sempre escrevi muito, sempre fui muito ligada à poesia e à literatura. O meu avô é um poeta colombiano, chamado Jorge Gaitán Durán, muito importante na Colômbia e na América Latina, e a minha mãe é poeta também, desde os oito anos de idade.

— Não é o meu caso. Mas vim, ao longo do tempo, desenvolvendo a escrita. Eu acho que sempre tive muita intuição, muita sensibilidade artística, de forma natural. Mas eu nunca fui precoce, no sentido de ter uma maturidade. Eu venho construindo ao longo do tempo.

— O meu pensamento artístico. Eu sempre tive talento, intuição, mas não me exatamente uma maturidade. A partir de algum momento na minha trajetória, a minha poesia foi ficando mais sólida. Minha composição também. E eu devo muito ao meu exercício diário assim da escrita, à minha paixão pela escrita.

— Eu tenho uma maneira de pensar, bem livre e, digamos, poética. Vou pensando em versos, enquanto eu caminho.

— Para mim, a poesia está impressa em tudo. Joana Dark, eu fiz brincando, zoando mesmo. Tudo tem uma espontaneidade. E isso vem junto com esse caminho que eu tenho feito, não só da poesia, mas da performance, do canto e do meu cinema.

Ava Rocha é filha de Glauber Rocha e Paula Gaitán, cineastas da mais alta estirpe. Ao traçarmos a linha genealógica desde o avô, fica mais fácil compreender as ondas constantes de inspiração que a tomavam desde menina.

— De certa forma, eu sempre fui mais precoce no cinema. Desde muito jovem, penso o cinema de uma forma mais madura e mais radical. Porque eu fui formada, realmente, dentro do cinema. Então isso nunca saiu de mim. O pensamento cinematográfico me estrutura, entendeu?

— Digo também que eu não saí do cinema, que agora eu faço um cinema de tela viva. Quando eu entro no palco, eu estou pensando nisso. Para mim é cinema, é montagem, gesto, atuação, roteiro. Eu acho que o cinema é o que eu tenho de mais sólido desde sempre dentro de mim. O que me sustenta. Sempre é cinema. As telas é que já não me importam tanto.

Em Néktar, as músicas e as letras de Ava Rocha vão convidado à sala Rita Lee, Angela Ro Ro e Bethânia. A artista passeia por diferentes ritmos. Da introspecção eletrônica à cadência do samba.

— Esse disco tem um pensamento de montagem mesmo. Existe um pensamento rítmico para as faixas. Eu pensava muito nele assim, como um balanço, um impulso, que nunca se perde. Mesmo nas músicas que são mais lentas e tudo, eu acho que tem uma sonoridade…

— Eu penso como cinema. Uma música precisa trabalhar em contraste com a outra. Eu não escolho as músicas prediletas, as que eu amo. Sofro muito nas escolhas.

— De alguma forma, eu não lancei o Néktar completo. Ficaram músicas importantes, para mim, de fora. É uma relação muito afetiva, e eu tomei a decisão de não colocá-las, porque elas iam interferir muito no ritmo do disco.

Ava explica o que se passa em sua cabeça de poeta cineasta experimental ao fazer um disco: contrastes rítmicos.

— Isso já ficou claro para todo mundo; que eu trafego por muitos gêneros, experimentações. Mas agora, talvez, eu sinto que tenha revelado nuances ainda mais fortes da minha obra. Eu ainda não tinha mostrado como é minha relação com o samba, com um território da música. Eu tinha essa intenção, de estar mais próxima disso, sem perder as minhas inquietações e a minha estética.

Do lado de cá, fez ruído a fala de Ava sobre as faixas não usadas em Néktar… Será que um próximo álbum chega com espaço de tempo menor, desta vez?

— Espero que não, mas para falar a verdade, eu nem sei ainda. Não sei se vai ser um álbum, um texto, ainda estou estudando. Pode ser que seja um álbum, sim. É o plano inicial. Mas estou com outros projetos também.

O show na Casa Natura Musical está chegando, e é uma celebração ao lançamento do novo disco. Pergunto a Ava Rocha sobre o que é preciso acontecer para que ela considere que um disco “deu certo”.

— Eu não sei o que é o plano dar certo, sabe, Jota? Eu acho que o meu foco é a criação. Para mim já deu certo. Se nasceu nota 10, nasceu bonito, nasceu com todas as perninhas e os seus defeitinhos também, ele já cumpriu a sua missão.

A resposta me quebra e encanta, ao mesmo tempo. Admiro artistas que consideram a obra como um fim. Isso faz com que se dediquem de uma forma diferente à qualidade do disco. Existem aqueles que gravam para conseguir shows. E outros, que fazem shows para apresentar uma obra ao público.

— Acho que ele está no mundo. Eu acho que a minha parte eu já fiz. É uma questão de ele ter vida própria e de se comunicar, se for capaz.

Depois da gostosa mordida, Ava assopra, voltando à literalidade da minha pergunta.

— Eu posso dizer que eu não tenho grandes expectativas de mercado. No sentido de que eu também não tenho grandes investimentos. E eu acho que não dá para ficar batendo com a cabeça na parede e entender que eu fiz escolhas estéticas e políticas e espirituais e filosóficas na minha arte, na minha vida, que muitas vezes não correspondem ao outro.

— A música trafega também por esse universo de uma forma muito natural. Eu acho que pela sua própria força. Eu acho que os espaços, os lugares onde a minha arte chega… ela chega pela sua própria força e, claro, pela união das pessoas, pela forma como as pessoas vão multiplicado. A obra vai reverberando com a força que ela tem.

Falando sobre relações, com o mundo, com si mesmo e com o outro, Ava Rocha se destaca do comum. A artista entrega sua alma para a música, em um mundo cada vez mais plástico.

— Eu acho que o Néktar me deixa a opção de ser um disco de cura, de transformação e superação. Sinto que a gente precisa fazer uma revolução interna. Todos nós.

— Nas relações, a gente pode criar  uma espécie de diagnóstico também, né? De uma doença que a gente vive, que é uma doença coletiva. O disco fala desse transbordamento. Da cura, do auto perdão, do perdão com o outro. Beber o próprio choro e transformar em potência.

— A gente não pode ficar preso na lamentação. Este é um disco de gozo. De lavagem.

— Se você notar, ao longo das letras, tem muito disso. O gozo, a bebida, a felicidade ébria. Nas letras, eu estou falando isso. Ninguém se livra de si. A gente precisa fazer essa revolução interna. Esse disco tem uma energia. Tem a ver com o poder de transformação do seu desejo. Quase uma magia, um negócio que você tem que colocar para o mundo. Essa é a energia que eu quero vibrar.

Serviço 

Ava Rocha | NÉKTAR

Dia 26 de outubro, quinta-feira, 21h30 | Abertura da Casa: 20h

Ingressos à venda pelo site da Sympla

Valores: de R$20 a R$180

Classificação indicativa: 16 anos

Duração: 90 minutos

Casa Natural Musical – Rua Artur de Azevedo, 2134, Pinheiros, São Paulo

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.