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Arte e ativismo queer nas ruas. Os murais a céu aberto de Keith Haring ao redor do mundo

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Keith Haring - foto: Keith Haring Foundation

Convidamos o artista Rafael Suriani, autor de Street Queens para nos contar sobre sua relação com a obra de rua de Keith Haring

Que tal ler esta matéria enquanto escuta Larry Levan, grande amigo de Haring?

Não consigo me lembrar quando descobri o trabalho do Keith Haring. Tenho a impressão que sempre o conheci. Sua linguagem é tão familiar, tão impregnada no imaginário coletivo, que parece sempre ter estado por toda parte…

Lembro-me de quando fui para Nova Iorque pela primeira vez., eu tinha 16 anos. Na ocasião fui ver, na Broadway, a peça RENT. No palco um bando de personagens jovens e entusiastas, cantavam e dançavam, expressando seus sonhos e sofrimentos na condição de artistas, lgbtqia+ (a sigla ainda não era tão popular na época) numa cidade grande, cruel em processo de gentrificação. A efervescência cultural de Nova Iorque ficou gravada na minha memória como este espaço mágico, onde artistas do mundo todo se encontram numa urbanidade cheia de excitação e perigo.

Anos depois enquanto cursava faculdade de arquitetura, me interessei pela arte pública como tema de pesquisa e daí veio uma necessidade de intervenção direta na cidade. Foi naquele momento que comecei a desenvolver uma pesquisa acadêmica sobre a explosão do street art nas grandes cidades e comecei a realizar minhas primeiras intervenções nas paredes de São Paulo. Foi ali que resolvi me aprofundar na produção de Keith Haring.

Originário de Reading na Pensilvânia, Keith Haring se lançou nos estudos de arte comercial. Logo percebeu que não era este seu caminho e em 1978 mudou-se para Nova Iorque, onde se matriculou na Visual Arts School. Rapidamente se envolveu com as culturas “underground” da cidade e com artistas como Jean Michel Basquiat , Kenny Scharf e o líder do movimento Pop americano: Andy Warhol.

Se suas primeiras intervenções urbanas eram feitas com giz nas paredes do metrô. Desde o início, Keith já apresentou uma linguagem simples e acessível, buscando transmitir suas mensagens para o maior número de pessoas possível. Ele fez muitos murais coletivos com comunidades carentes e grupos de jovens pelos Estados Unidos, agindo no sentido de construção comunitária e numa luta pelo avanço das mentalidades em relação a temas como a sexualidade, as drogas e a triste epidemia de HIV que assolava o mundo. Para ele, arte e ativismo eram uma só coisa.

Entre 1980 e 1989 ele ganhou visibilidade no mundo oficial das artes (galerias, museus, centros culturais…) e passou a ser convidado para executar murais de grandes dimensões pelas cidades do mundo. Seu trabalho ganhou reconhecimento internacional e assim ele pode espalhar sua arte por onde passou a convite de museus e  de  outras instituições culturais. Segundo a Keith Haring Foundation, foram mais de 50 realizações publicas.

Entre as mais notáveis estão o famoso mural “Crack is Wack” em Nova Iorque, o trabalho feito na fachada do hospital infantil Necker em Paris, sua pintura feita no lado ocidental do muro de Berlim e a fachada da Igreja de Santo Antonio em Pisa, na Italia.

Mural de Haring em Paris – foto: Keith Haring Foundation

O mural “Crack is Wack “foi pintado no bairro do Harlem em 1986 de forma ilegal. Durante sua execução, Haring foi preso por vandalismo. A repercussão mediática foi tamanha que o artista foi rapidamente liberado. Enquanto isso, o mural foi transformado com mensagens pro-crack por traficantes da região. A sub-prefeitura do bairro percebeu na arte de Haring uma ferramenta de combate à epidemia de drogas que se espalhava pela cidade e assim contratou o artista para refazer a pintura. A nova versão era um pouco diferente, mas trazia a mesma mensagem, através de imagens de caveiras e monstros juntas a frase “Crack is Wack”. A obra ainda pode ser vista no local e já passou por três momentos de restauro, o primeiro em 2007, depois em 2012 e o mais recente em 2019.

Keith e a molecada do Harlem durante a execução do mural Crack is Wack – foto: Keith Haring Foundation

Em 1987 na fachada do hospital infantil Necker em Paris, Haring pintou, usando linhas pretas e grossas, a figura de uma mulher gravida, rodeada de crianças e adultos numa celebração de cores e movimento: “Eu criei esta pintura para divertir as crianças do hospital hoje e no futuro” diz o artista. Após anos de abandono e envelhecimento, em 2011 a estrutura sobre a qual repousa a pintura foi ameaçada de demolição, mas graças aos esforços do galerista Jérôme de Noirmont, junto à Keith Haring Foundation, a pintura foi restaurada e preservada. Para realizar tal façanha, foram chamados William Shank e Antonio Rava, os mesmos que haviam restaurado a pintura “Tuttomondo” em Pisa.

O painel Tuttomondo na Itália – foto: Keith Haring Foundation

“Tuttomondo”, cobre uma das fachadas da paróquia de Santo Antônio em Pisa. A pintura de 180 m² foi realizada durante uma semana em 1989. Nesta obra Haring representa a paz e harmonia no mundo, dialogando com inspirações cristãs e com as cores da arquitetura local. A obra pode ser interpretada como um hino à vida, realizado um ano de sua morte em 1990 em decorrência de complicações ligadas ao HIV. O mural que apresenta 30 figuras que se articulam como um quebra-cabeça, virou uma atração turística da cidade  e é protegido e valorizado pela instituição religiosa e pela prefeitura.

Em 2019, foi encontrado no Tendal da Lapa, equipamento cultural gerido pela prefeitura de São Paulo, um painel de dois metros de comprimento, realizado pelo artista em 1984 quando veio ao Brasil a convite da Bienal Internacional de São Paulo. Na composição, um robô, tem a cabeça aberta, por onde saem silhuetas humanas, em uma analogia à complexa relação dos homens com as máquinas. Uma reflexão muito pertinente nos dias de hoje, em que a inteligência artificial começa a se desenvolver de forma exponencial. A pintura estava atrás de uma arquibancada, coberta por um tapume, em meio a outras pinturas. Por sorte, foi reconhecida pela assinatura e restaurada pela prefeitura para assim ser preservada. 

Painel de Haring no Tendal da Lapa, em São Paulo – foto: reprodução Youtube

Em 2005 voltei para NYC e por ali fiquei 6 meses. Naquele momento li o diário de Keith Haring. Eram suas anotações diárias, reflexões de seu quotidiano de artista, viagens, projetos, festas, amores e aventuras. Esse livro me marcou e a partir dai ele virou minha maior inspiração como artista. Entendi ser possível fazer uma arte acessível e transformadora, livre e contestadora.

Keith Haring resume o espírito urbano de nossa época. Um espírito criativo que se manifesta de forma clandestina, falando de assuntos tabus, como a homossexualidade, a AIDS, as drogas entre outros temas provocadores, sem filtro moral ou censura. Sua linguagem pop comunica com o maior número de pessoas, trazendo conteúdos artísticos para as ruas e questionando de forma direta o mundo em que vivemos. Mesmo se muitos dos seus murais não resistiram ao tempo (o que é normal, considerando a essência efêmera do grafite), a “Keith Haring Foundation” , junto aos proprietários de obras do artista tem tido êxito em preservar seu legado e em difundi-lo com exposições pelo mundo.

Se sua linguagem é simples e direta, suas mensagens são profundas e continuam se multiplicando, mesmo após os mais de 30 anos de sua morte. Haring nos ensina a ser livres e a não ter medo de encarar, de peito aberto, esse mundão que, às vezes pode parecer assustador, mas que pode e deve ser transformado através de nossas ações e posicionamentos.

Rafael Suriani – foto: divulgação

 

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