Aerosmith Foto: Reprodução

Bye, bye, Aerosmith: 54 anos de drogas, sexo, rock, mais drogas e muitos hits

Claudio Dirani
Por Claudio Dirani

Claudio Dirani revisita a trajetória do quinteto de Boston até sua aparente despedida dos palcos

“Eu joguei no lixo 20 milhões de dólares… Cheirei meu Porsche, cheirei meu avião e cheirei minha casa nesse olho de furacão de drogas e bebidas que me deixou perdido.”

A declaração sem filtros de Steven Tyler sobre seu turbulento passado como frontman do Aerosmith — verdade seja proclamada nunca foi um segredo guardado a sete chaves. Quando Steven Victor Tallarico (seu nome real) revelou como o vício havia colocado sua vida em risco na autobiografia Does The Noise In My Head Bother You?, a história do quinteto consolidado em 1971 nos arredores de Boston já havia sido marcada pelo perigo, a ponto de o grupo composto por Joe Perry (guitarra-líder), Brad Whitford (guitarra-base), Tom Hamilton (baixo) e Joey Kramer (bateria)  ter chegado perto do fim incontáveis vezes ao longo de seus (até aquele momento) mais de 40 anos de estrada.

No entanto, como no rock and roll a ironia passeia sem limites pelos bastidores de shows, gravações e muita badalação, quis o destino que o fim da linha para Aerosmith viesse de uma forma menos radical, mas não menos cruel:

“Como vocês sabem, a voz de Steven é um instrumento como nenhum outro. Ele passou meses trabalhando incansavelmente para levar sua voz para onde ela estava antes de sua lesão. Nós o vimos lutando, apesar de ter a melhor equipe médica ao seu lado. Infelizmente, está claro que uma recuperação completa de sua lesão vocal não será possível. Tomamos uma decisão dolorosa e difícil, mas necessária — como uma banda de irmãos — de nos aposentar dos palcos de turnê”, justificou a assessoria no site oficial da banda no último dia 02 de agosto.

Aerosmith x Kiss: rivais pero no mucho

Escrever sobre a trajetória do Aerosmith é um desafio tão grande quanto os números “maiores que a própria vida” que cercam a mitologia do grupo que levou a tarja de “Maior banda de rock da América”, sob o comando de Tyler e Perry, apelidados como Toxic Twins (Gêmeos Tóxicos) por razões amplamente divulgadas. Ao mesmo tempo, abre espaço para um certo sentimentalismo, perante ao crepúsculo de suas turnês.

Afinal, dos mais de 150 milhões de álbuns vendidos — e bilhões de músicas tocadas no Spotify e outras plataformas —, a grande maioria é fruto de produções forjadas na qualidade. Dos 15 LPs de sua discografia, 14 são formados por composições inéditas em sua maioria, sendo 12 gravados pela formação original.

Em seu saudável duelo com o Kiss pelo troféu de popularidade no cenário hard rock americano, o Aerosmith contou com a competência e sorte de ter Jack Douglas atrás da mesa de som. Foi o produtor nova-iorquino (o mesmo encarregado do último disco de John Lennon, Double Fantasy), o responsável pela marca inimitável deixada na sequência Get Your Wings (1974), Toys in the Attic (1975), Rocks (1976) e Draw the Line (1977).

Considerados próximos da perfeição, o quarteto de discos não soou apenas como um DNA da complexa cena musical dos anos 70, pontuada por punk rock, hard rock e até disco. Admirador dos tentáculos comerciais de Rolling Stones e Beatles, o Aerosmith nunca se esqueceu de pavimentar sua escalada com algumas das melhores pérolas do pop.

Em meio à eletricidade do som elaborado pela banda, singles como Dream On, Sweet Emotion, Seasons of Wither e Home Tonight eram colocados na balança lado a lado das pedreiras Back In The Saddle, Walk This Way, Toys In The Attic, Train Kept ‘a Rollin’ e Pandora’s Box para garantir merecidas vagas na programação das rádios. Esse divisor de céus, vale a lembrança, só aconteceria mais tarde, bem na fronteira entre as décadas de 80 e 90.

Pump e Get a Grip: de volta ao ringue

Na trajetória entre a quase falência e quase morte provocada por overdoses, o quinteto de Boston mudou seu elenco algumas vezes, a ponto de ter seu próprio “coração transplantado”. A linguagem figurativa (não tão figurativa assim) explica a saída de Joe Perry durante as sessões de Night in the Ruts (1979) — mesmo caminho tomado por Brad Whitford, três anos mais tarde.

Logo após soltar Rock in a Hard Place (1982), com Jimmy Crespo e Ricky Dufai ocupando as guitarras vagas, o Aerosmith decidiu enfrentar seus demônios (leia aqui álcool e cocaína) e traçar novas rotas. O primeiro passo que daria origem à sua reencarnação veio com Permanent Vacation (1987), LP que traria à bordo da aeronave Bruce Fairbairn — o medalhista de prata entre os produtores históricos da banda.

Com o monstruoso Slippery When Wet do Bon Jovi em seu CV, Fairbairn entrou chutando a porta para ajudar o grupo a marchar sem piedade pelas paradas de sucesso dos cinco continentes.

Embalado pelos hits Dude (Looks Like a Lady) e Angel, Permanent Vacation interrompeu as férias criativas do quinteto, dando fôlego para os épicos Pump (1989) e Get a Grip (1993), e sua artilharia quase insuperável composta por Janie’s Got a Gun, The Other Side, Love in an Elevator, Living On The Edge, Amazing e Crazy singles que colocaram de volta o Aerosmith no ringue contra as potências U2, Guns N’ Rosese Metallica.

Foi exatamente nesse tempo e espaço que o grupo pousaria pela primeira vez em pistas brasileiras, como a grande atração do Hollywood Rock de 1994 — quando este autor, que gloriosamente teve a chance de conferir a histórica apresentação no estádio Cícero Pompeu de Toledo, o Morumbi, sequer imaginaria que o fim das turnês estaria a menos de 30 anos distantes daquele úmido janeiro na capital paulista.

Antes de mostrar os documentos para o lotado estádio, contudo, o grupo ainda fez questão de ratificar perante à imprensa brasileira que a recente conquista da MTV e das rádios FM não se tratava de pura exploração aos acordes mais melosos. “Nós não fazemos o papel de caretas. A única coisa que o Aerosmith é hoje é um bando de doidões que não se drogam mais. Eu sou um cara com muita energia e as drogas estavam me tirando isso. Mas na hora você não percebe. Hoje eu ainda ando por aí agitando como se estivesse cheirando coca, mas estou limpo”, disse Tyler à Folha de S. Paulo.

Receita para o Armageddon

Depois do baile de debutante do Aerosmith por nossas fronteiras, um longo hiato separou a banda de seu retorno para mais sete excursões pelo Brasil em 2007, 2010, 2013, 2016 e 2017. Nesse ínterim, um mix de turbulência e aventura pontuou a fase que menos gerou menos música no QG do quinteto, ainda que as turnês fossem preservadas.

A fase hard-pop do Aero ainda teve mais espaço para hits absurdamente contagiosos, principalmente do sucessor de Get a Grip. De Nine Lives (1997), saíram Falling in Love (is Hard on the Knees), Hole in My Soul e Pink, hits que encobriram, de certa forma, a partida do empresário Tim Collins, após quase 12 anos lidando com a burocracia excêntrica do combo bostoniano.

Antes de voltar ao estúdio e dar cabo do sucessor de Nine Lives, o Aerosmith ainda foi agraciado pelo sedutor gosto do sucesso hollywoodiano com a canção especialmente preparada para a trilha sonora do catastrófico Armageddon, I Don’t Want To Miss a Thingnão por coincidência, coestrelado pela filha de Steven, Liv Tyler.

Escrito pela americana Diane Warren, o tema do casal romântico interpretado por Liv e Ben Affleck se transformou em um dos mais valiosos troféus do grupo, arrebatando 5 milhões de unidades vendidas somente nos Estados Unidos entre 1998 e 1999.

Aerosmith: siga em paz

Entre rusgas e ameaças de separação, o Aerosmith ainda teve fôlego para mais dois LPs — Just Push Play (2001) e a coleção de covers de blues Honkin’ on Bobo (2004) —, antes de preparar a obra que no futuro deve se consagrar como canto de cisne do quinteto. De volta às raízes, Music from Another Dimension! (2012) ficou marcado pelo resgate do antigo amigo Jack Douglas, que pode ser considerado hoje, sem qualquer medo de errar, equivalente ao que foi George Martin para os Beatles.

Nos quase 12 anos que separam o lançamento de seu mais recente álbum de estúdio, o Aerosmith tem se ocupado com atividades extracurriculares que chegaram a incomodar os mais apaixonados. A mais radical delas, executada por Steven Tyler, no papel de jurado do reality American Idol.

Mais seis incansáveis turnês seguiram após as nostálgicas gravações com Jack Douglas até que o grupo, no melhor estilo Kiss, decidiu sacramentar o fim de suas aventuras pelos palcos com a Peace Out Tour. Só que a excursão de despedida, ao contrário das apostas contrárias, deve ser considerada, a partir de agora, a inscrição na lápide do grupo.

Após queimar a largada logo no terceiro compromisso em setembro do ano passado, o Aero decidiu fechar a loja — ao menos para as apresentações ao vivo. A garganta de Steven Tyler, com cordas vocais lesionadas, não suportou o peso de décadas recheadas de falsetes e uivos inimitáveis.

A despedida oficial foi discreta, e com uma última mensagem no aerosmith.com:

 “Somos gratos além das palavras por todos que estavam animados para pegar a estrada conosco uma última vez. Muito obrigado à nossa equipe de especialistas, nossa equipe incrível e às milhares de pessoas talentosas que tornaram nossas turnês possíveis. Um agradecimento final a vocês — os melhores fãs do planeta Terra. Toquem nossa música alto, agora e sempre. Sonhem. Vocês tornaram nossos sonhos realidade”.

Claudio Dirani

Claudio D.Dirani é jornalista com mais de 25 anos de palcos e autor de MASTERS: Paul McCartney em discos e canções e Na Rota da BR-U2.