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Música eletrônica feita na periferia está ocupando os grandes festivais. E todos ganham com isso

Kenya20hz

K

Cada vez mais, o line up de festivais de música eletrônica estão sendo ocupados por talentosos artistas da periferia. E a revolução não para por aí

Camilo Rocha, jornalista e DJ que fecundou a música eletrônica brasileira, está de volta como colunista do Music Non Stop

Naquele sábado de julho tremeram as vigas da Arca, um vasto espaço de eventos na Zona Oeste de São Paulo.

Dezenas de dançarinos se mexeram ao som de techno, house, funk brasileiro, breakbeat, drum’n’bass e até R&B, em uma seleção costurada com precisão por quatro disc-jockeys, 

Pela ordem, tocaram Young Clubber, do Parque Novo Mundo, CESRV, de Carapicuíba, Kenya20HZ, de Nilópolis, e RHR, de Diadema. 

Por que inclui os locais de origem de cada um dos DJs? É porque achei particularmente simbólico ver um evento “premium” da cena eletrônica local, como a gravação de um Boiler Room, apenas com artistas vindos da periferia. 

Depois de quase duas décadas de gentrificação, clubes e raves nos últimos cinco anos voltaram a mostrar uma face que não provém das classes média e alta, das áreas de predominância branca. 

Essa face inclui gente como Badsista, DJ e produtora que é um dos destaques do cenário com seus híbridos de house, funk e bass music, registrados no ótimo álbum “Gueto Elegance”. Como Carlos do Complexo, e suas geniais fusões de bass music e IDM. Como a DJ Carola, que saiu da periferia de Porto Alegre para o palco do Tomorrowland belga. Como o potiguar Omoloko, que acaba de levar sua pesquisa profunda e discotecagens impecáveis para palcos consagrados da Europa como o festival Dekmantel e o Panorama Bar, em Berlim. Como FBC & Vhoor, com seus hits que resgatam o fundamento oitentista do Miami Bass. Como Valentina Luz, estrela de inúmeras festas e festivais pelo país.

Ou seja, essa face, na verdade, são várias. Trata-se de uma diversidade de trabalhos e propostas que desafiam a rotulagem e o estereótipo. Afinal, ser “periférico” não pressupõe nenhum conjunto de características ou identidade artística. 

BADSISTA por TAUANA SOFIA

Mesmo assim, é importante destacar esse recorte para poder olhá-lo de um ponto de vista mais global e histórico. 

A última vez em que artistas da quebrada foram proeminentes na cena foi entre os anos 1990 e 2000, quando os clubes e raves de todo o país contavam nos lineups com uma grande variedade de talentos das quebradas. Os dançarinos mais velhos conhecem bem os nomes: Marky, Patife, Andy, XRS Land, Ramilson Maia, Murphy e Julião, entre outros.

Seu talento, criatividade e bagagem não só enriqueceram a cena do ponto de vista artístico, mas também foram importantes para legitimar e expandir essa cultura para além dos recortes mais elitizados, democratizando o acesso e inspirando fãs de todo o país. 

Foi um tempo em que house, techno, trance, breaks, drum’n’bass eram linguagens difundidas por toda a cidade de São Paulo. Uma pesquisa da Coordenadoria da Juventude, departamento da prefeitura, realizada no início dos anos 2000, revelou que 25% dos jovens de bairros periféricos tinham a música eletrônica como seu gênero favorito. 

 

 

Alguns podem questionar o uso restrito do termo “música eletrônica”. Afinal, funk é uma música eletrônica de origem periférica que há anos balança o Brasil de norte a sul. Mas a cena eletrônica, baseada em estilos como house e techno, assim como seu braço comportamental, o movimento clubber, é um circuito distinto de público, eventos e artistas do circuito do funk. É desse segmento que falo aqui. 

Pela metade dos anos 2000, o cenário de clubes e raves tomou um rumo mais elitista e menos diverso. Festas e frequentadores torciam o nariz para os clubbers mais pobres, rotulados como cybermanos. Ao mesmo tempo, eventos e clubes de house, techno e drum’n’bass que haviam ajudado a formar esse público foram minguando. Se nos anos 80 e 90, a Zona Leste de São Paulo era coalhada de pistas de dança eletrônicas, na segunda metade dos anos 2000 não havia praticamente mais nada (em 2004 fechou a Overnight, a última das casas importantes da região). 

Overnight – foto: reprodução Instagram

Clubes e raves para público “selecionado” passaram a dar a tônica. Em 2007, o grande acontecimento da cena paulistana foi a inauguração do clube Pacha, na Vila Leopoldina. Por todo o país, se cristalizou a ideia de que a música eletrônica era um ambiente branco, para pessoas com mais dinheiro. 

Aqui e no exterior, ano após ano, as famigeradas listas de “melhores DJs” eram basicamente rankings de homens brancos. A noção de que house e techno tinham origem negra (sem falar no drum’n’bass) foi sendo apagada. Em 2014, Derrick Carter, pioneiro negro de Chicago, escreveu no Facebook que “algo que começou como música de clubes gays negros e latinos é agora vendido, rearranjado e embalado como tendo muito pouco a ver com isso”.

“Quando eu comecei a frequentar espaços de música eletrônica, eram pouquíssimas pessoas negras tocando e isso causa um distanciamento estético e visual pra uma pessoa preta em alcançar aquele lugar, que você vê que é praticamente dominado por pessoas brancas”, me disse Kenya20HZ, em uma entrevista por WhatsApp (em breve, a íntegra aqui no Music Non Stop). 

No Brasil, essa percepção começou a ser desafiada na década passada por meio das festas independentes em São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre e outras cidades que marcavam posição com um discurso em prol da diversidade e da representatividade. Festas na rua ou com preços menores, um clima mais livre e menos controlado, e esforços para deixar lineups mais diversos, contribuíram para que a realidade se aproximasse do discurso. Ainda há muito o que melhorar, mas o progresso é evidente. 

Não faz nenhum sentido que uma subcultura musical exista apartada da realidade social de seu país. No Brasil, que sem a contribuição negra não teria a música popular que conhecemos hoje, é absurdo pensar que a música eletrônica tenha passado tanto tempo desconectada da criação periférica. Felizmente, os tempos estão mudando e com pressa. 

 

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