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A Inteligência Artificial vai matar a arte? Quando músicos temeram novas tecnologias

Inteligência artificial - Música com erro

Foto: Possessed Photography [via Unsplash]

O avanço da IA tem feito o mundo artístico surtar. Mas esta não é a primeira vez em que “o fim da música” foi profetizado

A choradeira é geral. Não só no mundo da música, como em outras linguagens artísticas também. As novas tecnologias que fazem com que computadores pesquisem com incrível velocidade todo o conteúdo disponível na esfera digital, e com o banco de dados agregado, possam desenvolver poemas, músicas e pinturas, está gerando discussão em todos os cantos do mundo.

O medo é objetivo. Se, em algum momento, computadores puderem fazer arte que seja indistinguível da feita por um humano, qual será a função de um artista?

Muitos termos, nas discussões sobre Inteligência Artificial, são usados de forma deslumbrada, para não dizer errônea. Criar, pensar e aprender, por exemplo. Nos modelos existentes hoje em dia, os softwares não “pensam”, mas pesquisam de inúmeras fontes de diferentes disponíveis para estabelecer um modo de “aprendizado” comparativo. A partir da mistura de todas as referências armazenadas, “criam” utilizando tantas fontes diferentes, que o resultado parece original.

Ué, mas não é a mesma coisa que nós, seres humanos, fazemos?

A resposta é: não. O assombro que a nova tecnologia nos traz é tão estagnante que acabamos nos esquecendo de outras matérias primas usadas na criação de uma música e de um poema, por exemplo. Aliás, “esquecer” também é uma delas. As referências que temos coletado durante a vida nos ajudam, sim, a criar um estilo para o que criamos. Este texto que você lê é uma colcha de retalhos, de tudo o que já li na vida. De poemas a romances, de revistas e jornais a outros sites da internet.

Mas isso é uma parte do todo. Uma criação artística envolve, além das referências comparativas, diversos outros valores e experiências mais intrínsecas, (ainda) exclusivas dos seres humanos. O medo, a culpa pelas besteiras feitas no passado, a destruição da realidade causada por um amor perdido, aquela garota da escola pela qual você se apaixonou e nunca teve coragem de se declarar… Situações que foram construindo sua visão, tanto do mundo, mas de si mesmo.

Definitivamente, a gigantesca quantidade de informações que hoje pode ser armazenada em bancos de dados pode passar, num primeiro momento, a sensação de que algo foi criado a partir de algoritmos e códigos de programação. No entanto, ler todos os textos de Fernando Pessoa e então escrever um poema no estilo Fernando Pessoa, é meramente um resultado (por mais preciso que possa ser) de um Pessoa congelado no dia sua morte.

Se ainda vivo, o português teria experimentado mais, viajado mais, conhecido mais gente, lido outros coisas… E aí, sim, criado um novo poema. Isso, a IA não faz. Jamais conseguiria sacar, como o próprio português, que uma pessoa nunca volta ao mesmo lugar, pois, mesmo estando na mesma estação de trem em dias diferentes, aquela estação de ontem já não existe mais. O espaço, o tempo, as pessoas e o interlocutor já não são mais os mesmos.

Fazer diferente e fazer mais rápido

Ferramentas de agilidade. É isso que muitos profissionais do mundo da produção musical acreditam ser a grande sacada da Inteligência Artificial no mundo da música. Um ajudante que vai permitir conseguir, mais rápido, resultados que antes levavam mais tempo e custavam mais dinheiro para concluir.

No final dos anos 70, os sintetizadores de música não tinham memória. Apenas dezenas (às vezes centenas) de botões que modulavam o som, criando um determinado timbre. Depois de horas mexendo no bichão, você encontra aquele som perfeito para sua música. Então, era preciso pegar uma folha de papel e anotar a posição de cada um deles, para reproduzir o mesmo timbre no dia seguinte, em uma nova sessão de estúdio ou em cima do palco.

Quando novas tecnologias trouxeram, finalmente, a possibilidade de apertar um botãozinho e gravar tudo o que você havia pesquisado e, assim, ter o mesmo som (ou vários) para sempre, memorizados pela máquina, horas de trabalho foram economizadas.

É isso o que muitos acreditam que a IA fará com a música. Economizar tempo, permitindo que artistas criem mais. Voem mais alto com o tempo agora disponível.

É preciso, claro, separar o joio do trigo na discussão. O que é arte, o que é produto, o que é entretenimento. Um veículo jornalístico, por exemplo, pode pedir a uma plataforma de Inteligência Artificial criar a ilustração de  “um vereador com uma mala de dinheiro” em formato de cartoon e ter rapidamente um resultado, eliminando o custo de um ilustrador. Mas aquele desenho encomendado seria arte?

O mesmo vale para instrumentações, jingles de sabão em pó ou trilhas sonoras para pequenas peças publicitárias. Aliás, há muito tempo televisões e agências já usam as chamadas “trilhas brancas”, músicas compradas a preço de banana em bancos de dados especializados na internet, com direitos de uso. O mesmo vale para fotos e vídeos.

Já o time dos mais preocupados alerta para o fato de o outro lado (os otimistas) estarem subestimando a evolução das IAs, que, segundo eles, em pouquíssimo tempo podem vir a tomar as rédeas da criação.

“A arte morreu, parceiro. Eles ganharam”, disse o ilustrador digital Jason M. Allen, ao New York Times. Por outro lado, o cantor australiano (e letrista de primeira linha) Nick Cave, ao analisar uma letra de música criada por IA, comentou que o resultado “é uma grotesca gozação sobre o que é ser humano”.

E aí que fica a encruzilhada. Muita gente, quando faz previsões apocalípticas sobre a arte em geral (feita por humanos) está, na verdade, falando de mercado, e não de criação artística. São previsões sobre fim de oportunidades de trabalho, de encomendas, de contratações. São premissas (e preocupações) diferentes, para não dizer opostas.

Não temos como saber exatamente o que vai acontecer a partir da Inteligência Artificial. Mas temos como dar uma olhada para trás e constatar que o medo de que um novo advento tecnológico fosse matar a música esteve presente em cada geração — e sempre foi provado errado.

O disco vai matar a música

Pois é. Em 1906, John Philip Sousa, compositor, denunciou em um artigo que a música “enlatada” seria o fim dessa forma de criação artística. Ele estava falando da nova tecnologia de gravação e reprodução em discos de 78 rotações. Segundo Sousa, a “ameaça da música mecânica” iria acabar com as apresentações ao vivo nos Estados Unidos. Por que pagar para assistir a uma banda ou orquestra se você poderia ouvi-la no conforto do lar?

Cem anos depois, fica fácil perceber como o medo da tecnologia pode produzir predições distantes anos-luz da realidade. A difusão mecânica da música amplificou o mercado musical de forma gigantesca, gerando desejo em milhões de pessoas em ver, ao vivo, o artista pelo qual se apaixonaram através do disco. O vinil criou a era dos rockstars.

A fita cassete vai matar a música

Em 1980, as grandes gravadoras de todo mundo entraram em pânico, graças ao advento das singelas fitinhas cassete. Os aparelhos de som caseiros começaram a ser vendidos com tape deck, e qualquer garoto podia gravar um disco ou um programa de rádio, fazer cópias em fita e distribuir (ou vender) para os amigos. Mais uma vez, o “mercado” desesperado com as mudanças tecnológicas.

O que aconteceu foi justamente (e novamente) o contrário. As fitas se tornaram uma tremenda forma de divulgar música, através das mixtapes caseiras: as coletâneas com suas músicas prediletas, que as pessoas gravavam e presenteavam. Foi responsável, inclusive, pelo início de muitos namoros.

Rolou, também, pirataria, permitindo a muitos o acesso a discos que seriam impossíveis de comprar. Mas a perda financeira das gravadoras foi ínfima, comparada à expansão de mercado possibilitado pelo cassete. Com as fitas, era possível ouvir seu artista predileto na rua, com outra supernova tecnologia — o walkmen —, e isso fez com que todas as gravadoras começassem a utilizar o formato.

O cassete também impulsionou como ninguém a música independente. Bandas de garagem podiam entrar em estúdio com as suas demo tapes, que copiavam e enviavam pelo correio ao mundo todo, ou vendiam em shows, a um custo baixo.

O sample vai matar a música

“Música tem de ser humana e natural. É preciso haver músicos trabalhando juntos. Músicos que consigam tocar”, disse Keith Richards,  sobre o advento dos samplers e sintetizadores nos anos 80. Richards foi apenas um do imenso time de artistas que teve um chilique quando a galera da disco, do hip-hop e da música eletrônica começou a usar novas técnicas de estúdio, a partir do final dos anos 70.

As novas tecnologias permitiam que um mesmo vocalista, por exemplo, gravasse quantas vozes fossem necessárias, eliminado o custo de contratar um time de backing vocal. O mesmo valia, por exemplo, para cordas e sopros. Um mesmo músico poderia gravar todos os instrumentos, que iam sendo adicionados à música no sistema de “pistas”, utilizado até hoje.

Muito usado a partir da disco music, a comoção foi tamanha que o sindicato dos músicos de Nova Iorque chegou a entrar em acordo com as gravadoras americanas para limitar o uso das novas tecnologias nos estúdio.

Novamente, o que era para “tirar emprego” dos músicos na verdade gerou emprego para milhares de outros artistas, que viram na nova forma de ver música, mais barata e acessível, uma forma de finalmente conseguir se expressar através do som.

O MP3 vai matar a música

Se o mercado ficou doido com o vinil e a fita cassete, o que não dizer do advento do MP3, um arquivinho minúsculo, que podia ser multiplicado em segundos, sem perda de qualidade de uma cópia para outra? Foi uma doideira.

E realmente, o formato criou uma tremenda reviravolta na forma como a música era consumida. Bilhões de doletas foram tiradas das gravadoras e movidas para plataformas que vendiam seus arquivos, como o iTunes. A revolução foi uma transição tecnológica para os serviços de streaming que consumimos hoje.

Mas, novamente, a mudança foi de mercado. Nunca se fez tanta música quanto na era pós-MP3. Mais artistas, mais lançamentos, mais shows… A última coisa que o formato fez foi “matar a música”.

No entanto, no final da década de 90, ninguém conseguiu compreender muito bem isso. Quando Robert Reid, um garoto americano, criou o Napster em 1999, um serviço gratuito que permitia que usuários de internet trocassem arquivos MP3, fez de bate pronto um inimigo de peso: a então maior banda de heavy metal do planeta, Metallica (de quem era fã). A banda processou e fez campanha pública contra o garoto, no que acabou se tornando um dos maiores micos do meio musical.

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