Saiba como o músico acabou se tornando o grande nome por trás da popularização do polêmico efeito
Poucas tecnologias de produção musical são mais polêmicas do que o Auto-Tune, aquele efeitozinho safado que deixa a voz meio robotizada, usada em nove entre dez músicas de trap, mas também presentes no pop de festival, no hip-hop, na MPB e em mais uma infinidade de outros gêneros musicais. Mas afinal, de que se trata? Como foi inventado? E quem é o responsável por essa modinha?
A última pergunta vem bem a calhar com o dia 30 de setembro. Há 40 anos, nascia T-Pain, o rapper responsável por transformar a técnica em uma verdadeira febre. E, vejam só como o mundo é pequeno, o artista foi descoberto por Akon, que viralizou na última semana graças a uma bola Zorb furada no Rock in Rio, que por sua vez levou a uma enxurrada de reclamações de que seu show era puro playback. Akon era um dos fundadores do selo Konvict Muzik, afiliado à Jive Music, e convidou o estadunidense nascido na Flórida para lançar seu primeiro álbum, Rappa Ternt Sanga, em 2005.
Faheem Rashad Najm, o T-Pain, se encantou por um recurso novo no mundo das tecnologias musicais. O Auto-Tune, lançado em 1997 pela empresa de softwares Antares, foi originalmente desenhado para corrigir leves escorregadas tonais cometidas por cantores dentro do estúdio. Em vez de gravar tudo de novo, o engenheiro de som abria o gráfico das ondas vocais do desastrado performer na tela do computador e ajustava a nota desafinada, colocando-a no tom em questão de minutos. Foi feito para passar despercebido.
No entanto, se o software for ajustado nos parâmetros mais extremos, ele criava um efeito ainda inédito no mundo das produções: ultraprocessava os vocais, deixando-os saturados e robóticos. Mais do que isso, permitia que a linha vocal previamente gravada pudesse ser “tocada”, como um piano. Bastava registrar as notas e depois direcionar o vocal para a linha previamente registrada, e as vozes se transformavam em algo completamente diferente.
A estranheza já havia feito a cabeça de outros artistas anteriormente. Em 1998, apenas um ano após seu lançamento no mercado, Cher botou na praça uma música que se tornaria o hit Believe, abusando do Auto-Tune no refrão. O sucesso ajudou a quebrar o primeiro preconceito em relação à ferramenta: a de que era coisa de quem não conseguia cantar no tom. Afinal, isso é algo que definitivamente não pode ser atribuído à cantora californiana, que dominava os palcos desde a década de 60. Em sua nova música, Cher usou o programinha no talo, deixando claro que a voz sintetizada tinha, na canção, uma função estética.
Believe foi produzida em parceria do grupo de electro pop Roy Vedas, formado pelo argentino Maxi Russo. A própria banda resolveu aderir ao movimento “pró-Auto-Tune” e lançou, no ano seguinte, sua música mais conhecida, também carcada no efeito, chamada Fragments Of Life. Produzido sem a grana que vertia nos estúdios alugados para Cher, a canção se tornou um estranho, lunático experimento freak. Doideira.
O Auto-Tune é um neto de outro efeito de processamento de voz mais antigo, chamado Vocoder, criado em 1938 por Homer Dudley, pioneiro estadunidense da música eletrônica. Nele, um microfone era ligado a um sintetizador com teclas de piano. Ao cantar, o som era processado pela máquina, que transforma a fonte em sons robóticos conforme se pressionava uma ou mais teclas do piano. A diferença para o Auto-Tune, além da velocidade de resposta, era que o Vocoder não podia ser programado. Era preciso (saber) tocar as notas e acordes conforme o som entrava pelo sintetizador. O efeito foi extensamente usado no universo da música eletrônica e do pop mais futurista.
Voltando aos tempos atuais (e à história do Auto-Tune), T-Pain entra no cenário somente seis anos depois de Cher e Roy Vedas, mas de uma forma diferente. Primeiro, porque fez um álbum assumidamente, digamos, autotunado. Não o fez como uma piada, mas como uma adição estética como parte do conceito do disco. Certamente, uma ideia que realmente encantou Akon e o convenceu a assinar contrato pela sua gravadora. Basta ouvir o maior hit de Rappa Ternt Sanga, chamado I’m Sprung, para entender o carinho com o qual o rapper tratou o Auto-Tune, usando-o, inclusive, para construção de backing vocals. Há tambem uma certa autenticidade ali. Algo como: “bem, se eu não consigo cantar estas notas, então vou fazê-las de forma sintetizada, e deixar isso bem claro para quem ouvir”.
Outra circunstância que faz de T-Pain o verdadeiro embaixador do Auto-Tune, para alegria do departamento financeiro da Antares, é que ele apontou um caminho que foi seguido por milhares de artistas de todo o mundo. Representava uma certa renovação ao rap, que permitia um combinação, ainda que algorítmica, com o R&B. Depois de seu álbum, começaram a chover trabalhos assumindo a ferramenta como um novo instrumento. Ajudou também a construir toda uma sensação estética de um gênero musical, o trap. Soubesse você cantar ou não, ficava imprescindível não meter o Auto-Tune na parada para se adequar a algo visto como atual.
O programa da Antares ganhou ainda mais fermento quando o aumento da potência de processamento dos computadores permitiu que a ferramenta fosse levada para o palco e usada em tempo real. O músico canta no microfone, o som passa dentro de um computador com Auto-Tune e depois chega ao público, já devidamente processado. Virou quase um padrão nos grandes palcos, seja para dar o efeito robotizado a que nos acostumamos, seja para corrigir desafinadas de cantores pop.
A mágica acontece assim: no estúdio, produtores musicais gravam, no Auto-Tune, as melodias corretas de todas as canções do show, que são disparadas junto com os outros instrumentos na hora da apresentação. Em questão de microssegundos, a voz cantada pelo vocalista entra na sala de maquiagem, onde recebe batom, rímel, blush e o que mais for preciso. Qualquer que seja a cara que está atrás do microfone, aparecerá para o público com ares de Miss Universo. É possível também gravar uma voz de reforço, pronta no estúdio, para aparecer naquele momento em que o cantor dá uma fraquejada ou, no caso de Akon no Rock in Rio 2024, precisa largar o microfone para não cair de uma escada, enfiado dentro de uma bola de ar murchando rapidamente.
Para entender perfeitamente como funciona o Auto-Tune, basta recorrermos a mais um mico (são muitos, desde seu abuso em shows) que acabou viralizando na internet. No começo do ano, MC Ryan SP parou a música para dar bronca em um xarope que atirou um objeto no artista no meio da apresentação. O detalhe é que sua produção se esqueceu de desligar o Auto-Tune para que Ryan descarregasse sua indignação. O resultado, a gente vê aqui: