Uma linha do tempo com todas as revoluções que transformaram a reprodução musical
“Alexa, toca Doja Cat!” Lutando com a interminável pilha de louças, você “conversa” com uma bolinha plástica que te escuta, compreende e responde: “é pra já, parceiro!”. A bolinha plástica se conecta silenciosamente à internet sem fio de sua casa, acessa um gigantesco banco de dados em algum lugar remoto do planeta, cujos computadores armazenam bilhões de arquivos de música, localiza o seu pedido e pronto. Como num passe de mágica, sua cozinha é arejada com os maiores sucessos da artista solicitada.
Para chegarmos a esse nível de conforto, precisamos de 167 anos, e tudo começou com uma história sensacional. A primeira gravação de áudio realizada por uma máquina, o fonautógrafo, só pôde ser reproduzida cem anos depois! A engenhoca criada pelo francês Eduard-Leon Scott de Martinville era capaz de gravar o som captado em uma espécie de fita química, mas não havia ainda como reproduzi-la.
A evolução da tecnologia capaz de gravar, reproduzir, armazenar e vender música mudou o mundo. Até o século XIX, para curtir um som em casa, você precisava ter um músico. Não tinha caixinha bluetooth, toca-discos e nem rádio. É por isso que nos livros de Machado de Assis, Tolstói ou Victor Hugo, sempre havia um piano na sala das casas — e sobrava para um dos filhos a missão de alegrar a família diariamente.
E você aí, reclamando porque a Alexa não entende seu comando de voz!
Venha viajar na história com a gente, acompanhando a linha do tempo da gravação e reprodução de músicas.
1857 – Fonautógrafo
Patenteado na França em 1857, o fonautógrafo era basicamente um cone ligado a uma agulha, capaz de registar em uma fita coberta com fuligem, parecida com as cassete, que “conheceremos” mais à frente. Bastava falar na boca do cone, girar uma manivela e pronto; o som estava registrado. Só não tinha como tocá-la. Claro que, por causa deste “pequeno” detalhe, o equipamento foi um fiasco. Cem anos depois, pesquisadores se dedicaram a estudar o fonautógrafo de Eduard-Leon Scott de Martinville e conseguiram recuparar a primeira gravação musical feita por ele.
1877 – Paleofone
Assim como o avião, cuja invenção é objeto de polêmica entre Santos Dumont e os Irmãos Wright, o paleofone também foi inventado “ao mesmo tempo” em dois laboratórios diferentes. 20 anos depois do Fonautógrafo, o também francês Charles Cross concluiu um equipamento que reproduzia som através de uma agulha, que o amplificava para o autofalante em forma de cone. Aliás, foi nessa época que o termo “autofalante”, do inglês “speaker”, passou a ser usado.
Cross sentiu água fria em seu banho quando soube que Thomas Edison patenteou, em 1877, um equipamento parecidíssimo. Ambos vinham procurando um jeito de aperfeiçoar o Fonautógrafo.
1887 – Gramofone
Foi com o gramofone que o bicho começou a pegar. A partir de sua invenção, tudo seria diferente no mundo da música. Pesquisando no laboratório emprestado por Alexander Graham Bell (também usado por Thomas Edison para inventar a máquina fotográfica), Emile Berliner concluiu e patenteou o aparelho, que, em sua primeira versão, tocava música gravada em um cilindro metálico. A tecnologia era sensacional. Qualquer café, restaurante ou sala poderia ter uma mágica engenhoca capaz de reproduzir o som de toda uma orquestra.
Porém, o projeto tinha um probleminha. Os cilindros eram grandes e pesados, dificultando sua produção e, principalmente, comercialização. Demorou um ano para que Berliner aperfeiçoasse o sistema e criasse o disco, ainda não em vinil, mas do jeitinho que a gente conhece hoje em dia. Acessível a todos, tanto no preço, quanto na praticidade, os discos transformaram o mundo criando, pela primeira vez, um mercado no qual se comercializavam sons.
1889 – A primeira fábrica de discos
Viva até hoje, a Columbia Records foi a primeira empresa no mundo a fabricar discos em série, saindo à frente do mercado. Milhares de consumidores americanos corriam às lojas para comprar seus gramofones e seus primeiros álbuns, nome dado pelos lojistas a pastas cheias de discos.
Como os gramofones só tocavam seus discos em 78 rotações por minuto (mais do que o dobro dos atuais 33 RPM de hoje), cada lado tinha capacidade para dois a três minutos, somente. Os primeiros lançamentos da Columbia eram de ópera. Eram necessários vários discos para uma obra só, que eram vendidos em pastas, dentro de sacos plásticos. Iguais aos álbuns de fotos, tão comuns antigamente.
1904 – As primeiras superestrelas
Beyoncé, Taylor Swift, Michael Jackson, Beatles… todos esses ídolos superconhecidos da música pop devem prestar homenagens ao primeiro de todos — o grande Enrico Caruso. O cantor de ópera italiano foi o primeiro artista da história a vender mais de um milhão de discos, em 1904.
1917 – A era do jazz
Depois da estreia com a música orquestrada, o jazz foi o gênero musical que mais impulsionou a indústria. O primeiro álbum do gênero foi The Original Dixieland Jazz Band, e a partir daí, um oceano de lançamentos começou a chegar às lojas semanalmente. Novas gravadoras (inclusive de pequeno e médio porte) entraram na jogada. Com esse novo meio de divulgação, chegando às mais distantes cidades estadunidenses sem precisar se deslocar para fazer um show, nomes como Louis Armstrong e Cole Porter se tornaram estrelas pop.
1931 – O som stereo
Uai, se temos dois ouvidos, por que não separar o som gravado em dois canais, fazendo com que as gravações soem mais naturais? Foi o que pensou o engenheiro inglês Alan Blumlein, ao sair de uma sessão de cinema com sua esposa. O sistema stereo revolucionou (você vai ler essa palavra muitas vezes ainda nesta matéria) o jeito de ouvir música. O primeiro filme em stereo nos cinemas foi Fantasia, clássico de Walt Disney.
O desenvolvimento dos sistemas de gravação e reprodução avançavam em alta velocidade no começo do século XX, impulsionados pela grana alta que entrava naquela já gigantesca indústria. Muitas dessas tecnologias chegaram primeiro ao cinema, com sistemas de som mais estruturados, mas logo foram também para as residências.
1940 – A gravação “multipista”
Até 1940, as gravações rolavam assim: em uma grande sala, os músicos eram posicionados em volta de um único microfone. Se você quisesse que o som da bateria tivesse volume menor, teria de posicioná-la mais longe. As vozes precisavam aparecer mais, então os vocalistas ficavam mais próximos. Se a gravação não ficasse boa, os engenheiros reposicionavam o que estava “errado” e começavam tudo de novo.
Até que o inventor de guitarras e engenheiro de som Les Paul inventou um sistema em que você poderia gravar tudo separado, em até quatro sessões diferentes em stereo (ou oito em mono). O baterista gravava, então o engenheiro voltava a fita, e o próximo músico gravava seu instrumento, e assim por diante, até acabarem-se as “pistas” disponíveis.
Isso permitia, principalmente, equalizar melhor o som que você escutaria em casa. Afinal, se o engenheiro quisesse uma guitarra mais alta, bastava aumentar, em uma mesa de som, somente o canal do instrumento.
A técnica permitiu gravações mais elaboradas. As primeiras bandas a utilizarem o sistema em gravações comerciais foram os Beatles e os Rolling Stones.
1948 – Chegou o viniiiiiil
Pois é, caro leitor. Foi somente em 1948 que a Columbia Records (pioneira novamente) começou a produzir e vender discos de vinil. Até então, os discos eram feitos de goma-laca. Além de ser um material mais “mole”, o que resultava em menos durabilidade e gravações mais abafadas, o material também passou a faltar durante a Segunda Guerra Mundial, obrigando os fabricantes a encontrar um material substituto rapidinho.
O vinil nasceu, na verdade, de uma canetada. Durante a guerra, o presidente Franklin Delano Roosevelt assinou um decreto obrigando as fabricantes de discos a cortar em 70% o uso de goma-laca em seus produtos. Até hoje, o “disco de vinil” segue insubstituível no mercado. Já a goma-laca desapareceu definitivamente dessa indústria em 1964.
1964 – Uma invenção do cassete
Nos anos 60, a felicidade era rodar com seu carrão conversível movido a diesel em uma estrada à beira-mar, ouvindo rock’n’roll, fumando seu cigarro e celebrando a liberdade proporcionada pela indústria. Mas espera! Como ouvir rock em discos de vinil dentro de um carro em alta velocidade?
Pois é, até o começo dos anos 60, o mercado estadunidense já havia inventado toca-discos para carros. Eram caixas nas quais se podiam carregar compactos (discos de vinil em sete polegadas). O player tinha um sistema que sugava o disquinho (no mesmo esquema dos CD players) e os tocava, com um sistema de proteção contra os solavancos do automóvel.
Foi então que a Philips começou a comercializar a fita cassete, uma caixinha com um rolo de fita magnética embutida. Mais segura contra solavancos (pois não utilizava agulha), prática, fácil de guardar e empilhar. A primeira ofensiva de marketing do produto foi justamente falando da sua mobilidade. O lançamento veio seguido dos cassete players, prontos para serem embutidos nos painéis dos carros.
Em dez anos, o cassete já havia se tornado uma febre, caminhando pacificamente de mãos dadas com o vinil. Uma outra funcionalidade da fitinha encantou o mundo. Ela poderia ser, com o aparelho de som adequado, gravada em casa. Você poderia fazer uma cópia de seu disco predileto, montar uma coletânea para impressionar os amigos (as mixtapes) ou até vender mais barato para o seu brother uma cópia pirata do vinil que só você tinha. O mercado de “fitas virgens” ficou tão grande que motivou até campanhas publicitárias pagas pelas grandes gravadoras avisando que “o cassete mataria a indústria musical”.
1982 – Troca tudo por CDs
Desde o final dos anos 70, os estúdios já estavam produzindo gravações no sistema digital, graças à revolução da tecnologia eletrônica, que permitia equipamentos mais baratos e compactos. Nesse sistema, o som gravado por um músico passava por uma placa eletrônica, que o transformava em dados (os famosos zeros e uns dos bits e bytes). Ao reproduzi-lo, uma outra placa retraduzia os dados em sons novamente, fazendo-os chegarem aos nossos ouvidos. O sistema permitia gravações mais limpas. Sem ruídos e chiados, quase cristalinas.
Em 1982, as empresas Philips e Sony se juntaram para anunciar ao mundo que tudo mudaria. Havia chegado a definitiva era dos Compact Discs; bem menores do que os discos de vinil e com som muito mais definido. Aparelhos CD players para residências e automóveis foram lançados e venderam muito, mas muito mesmo. Vinil era coisa do passado!
O plano da indústria da música era claro: “jogue fora todos os seus discos e compre tudo novamente, agora em CD!”. De modo geral, aconteceu mesmo. Ninguém queria mais saber das obsoletas bolachas, que lotaram as prateleiras dos sebos, e os CDs foram a mídia dominante no mercado da música por toda a década seguinte (e boa parte dos anos 90).
No entanto, com o passar do tempo, foram encontrados dois caroços naquele angu musical. O primeiro foi que, ao contrário do que anunciavam os fabricantes, ele não era tão “eterno” assim. Os CDs riscavam com o tempo e o revestimento metálico que abrigava o som digital simplesmente descascava, se não fosse armazenado com extremo cuidado.
Outro “detalhe” é que os ouvintes começaram a perceber que o som digital era puro demais, tirando um pouco da vida de uma gravação — os mesmos ruídos e “sujeiras” que os engenheiros chamam de “ambientação”. Ao ouvir um grande clássico do rock em vinil, dá para sentir um pouco da energia do estúdio enquanto, em CD tudo ficava mais, digamos, hospitalar. Era como encontrar alguém que exagerou no branqueamento dental. Os dentes estão ali, incrivelmente brancos, limpos, estéreis, mas não parecem pertencer à boca da pessoa que conhecíamos.
Com o passar do tempo, os estúdios de gravação desenvolveram formas de corrigir a rota, muitas vezes emulando a “sujeira” do som analógico. Mas na década de 80, ouvir novos discos foi dureza. E o vinil saiu da UTI e vende cada vez mais a cada ano, desde a virada do milênio.
1998 – MP3
A vingança é um prato que se serve frio. Todo o sofrimento que os CDs causaram ao vovô vinil voltaram a eles como um castigo implacável, junto com a virada do milênio. Desde antes do CD, como já sabemos, as gravações haviam se transformado em arquivos digitais. Só que os arquivos eram gigantes, principalmente se levarmos em consideração a capacidade dos computadores da época. Hoje, o smartphone mais vagabundo tem capacidade de armazenamento dez vezes maior do que qualquer computador dos anos 90.
Novos caminhos foram abertos para o mercado da música quando um estudante de engenharia alemão, Karlheinz Brandenburg, inventou o formato MP3. Um algoritmo compactava um arquivo digital, transformando-o em uma fração do original. Um tanto da qualidade do áudio era perdida, mas quem se importa? Agora, qualquer computador poderia armazenar bibliotecas digitais gigantescas.
A tecnologia causou arrepios na espinha dos executivos das gravadoras. Os arquivos podiam ser copiados infinitamente. Fabricantes espertos lançaram os primeiros MP3 players portáteis, do tamanho de um maço de cigarros. Bastava plugar no computador, transferir as músicas, ligar um fone de ouvido e sair por aí. Para quem tinha acesso à internet, os CDs perderam a sua utilidade.
Em uma tentativa de resposta rápida, a Sony japonesa lançou, em 1999, a primeira loja online para venda de músicas em MP3, chamada Bitmusic. Mas já era tarde…
1999 – Napster
O roteiro estava pronto. A internet, cada vez mais rápida, na casa das pessoas. Os arquivos digitais, muito menores e copiáveis a um clique. Foi questão de meses até dois adolescentes americanos criarem um serviço totalmente gratuito de arquivos entre usuários, o Napster. O sistema, chamado de peer to peer, criava uma espécie de nova utopia universal. Ao ingressar na comunidade, os arquivos que você tinha disponíveis em seu computador ficavam disponíveis para todos os outros usuários. Se alguém no Uzbequistão estivesse afim de descolar o primeiro álbum do Ratos de Porão e você o tivesse em seu computador, o software do Napster o encontraria e intermediaria a transferência. Considerando que o Napster chegou a ter mais de 26 milhões de usuários, imagine a quantidade de músicas disponíveis em MP3 para quem quisesse, gratuitamente, copiar.
A febre virou assunto na mídia de todo o mundo. E criou, para Shawn Fanning e Sean Parker, uma baita dor de cabeça. As grandes gravadoras promoveram um toró de processos em cima dos dois, acusando-os de pirataria das brabas. A defesa dos garotos estava no cerne da cultura da internet: o Napster não fazia nada; quem copiava e oferecia arquivos eram os usuários.
Não colou, e o site fechou as portas dez anos depois. Para as gravadoras, no entanto, já era tarde demais. Outros “concorrentes” apareceram, oferecendo o mesmo tipo de solução e, ao contrário do Napster, eram baseados em países com sistemas judiciários lentos, e as leis dúbias em relação a direitos autorais.
A discussão sobre o tema ficou tão rocambolesca que um dos filhos mais famosos do Napster, o site Pirate Bay, tentou financiamento coletivo para comprar uma plataforma de petróleo desativada em águas internacionais e, assim, não obedecer a legislação nenhuma!
2008 – A promessa do streaming para organizar a bagunça
Desde a popularização da internet para uso pessoal, a indústria de música virou palco de um cabo de guerra. De um lado, puxam os usuários raiz, que veem na rede um novo mundo, onde todo o conhecimento gerado pelo ser humano é livre e comunitário. De outro, puxam as gravadoras, acostumadas com os cem anos em que passaram faturando buzilhões de dólares com vendas de discos. Os artistas ficam no meio do caminho. Precisam da facilidade do compartilhamento livre para divulgarem seu trabalho no começo da carreira. No entanto, depois de juntarem milhares de fãs, querem fazer uma grana.
No meio desse copia ou não copia, libera ou não libera, a velocidade da internet banda larga foi aumentando cada vez mais. Na outra ponta, os smartphones foram ficando cada vez mais potentes e acessíveis.
Enquanto isso, um grupo de gênios da programação seguia filosofando sobre o assunto. Se a internet está voando, pra que ficar armazenando (de forma legal ou ilegal) enormes coleções de música no computador, celular, ou mesmo nas prateleiras? “E se a gente inventasse um jeito de transmitir música como uma rádio, só que sob demanda?” Estavam criando as plataformas de streaming, que hoje todo mundo usa.
Ao contrário do que se possa pensar, a Netflix e o Spotify não foram os inventores do modelo. Antes de se tornarem os mais populares serviços do mundo, várias tentativas surgiram e faliram, até que uma plataforma fácil de usar e acessível à maioria dos usuários decretasse o formato como o dominante.
Ainda que navegando em um mar de reclamações, principalmente de artistas e gravadoras que alegam receber muito pouco pelo principal produto da plataforma (a música), a solução do streaming apresentou um horizonte de organização do mercado. Ficou tudo tão fácil e barato que não compensa nem se dar ao trabalho de procurar um jeito de piratear.
2024 – E tudo acaba onde começou…
As partituras, uma espécie de língua escrita da música, onde o músico lê o tempo, o ritmo e as notas a serem tocadas, foi a primeira “mídia” capaz de transformar o som que tanto amamos em produto. Até então, o artista era “físico” e a obra musical, em si, intangível. A evolução das tecnologias de gravação surgiu como um vulcão mercadológico. Se ativou, entrou em erupção, cuspiu lava sonora para todos os lados e provocou nuvens de fumaça que se espalharam por todo mundo.O engraçado é que, a partir da era digital (e por mais que a indústria tente, tente e tente novamente), a música, agora em forma de dados, foi se tornando intangível novamente, como era até o século XIX. A preocupação, agora, é de remunerar os criadores, suas gravadoras e editoras pelo uso da música — pela sua reprodução. Mídias físicas resistem, claro, para agradar ao nosso desejo de posse.
Mas este desejo não existia até a invenção do gramofone. Tudo parece acabar onde começou, como disse Raul Seixas.