music non stop

Há 60 anos, filme dos Beatles rasgava a Cortina de Ferro em plena Guerra Fria

A Hard Day's Night

Os Beatles em 'A Hard Day's Night'. Imagem: Reprodução

A Hard Day’s Night foi a primeira produção cinematográfica ocidental a ser exibida oficialmente no leste europeu

Com o final da Segunda Guerra Mundial, o mundo se dividiu em dois. Bem… não exatamente o mundo inteiro, mas a parte lá de cima, que reunia, em 1947, os países de economia mais poderosa, acostumados a ditar as regras do jogo para os demais. A Alemanha derrotada foi dividida em duas. A metade Ocidental, sob influência do mundo capitalista liderado pelos Estados Unidos, e do lado de lá, a Europa Oriental e a Ásia respondendo aos pitacos da União Soviética.

A Guerra Fria seguiu firme na função de apavorar os moradores de cada lado daquilo que foi chamado de Cortina de Ferro — um limite imaginário que separava o planeta em duas ideologias diferentes. Trabalhar em favor da sua não era o suficiente. Era preciso, também, difamar o lado de lá. E quando o assunto é implantar na cabeça das massas o que é bom e legal, enquanto se pinta o oponente como sinistro e malévolo, nada melhor do que o entretenimento.

A partir do início dos anos 50, a indústria do cinema foi extensamente usada. Fosse em mensagens subliminares (como extraterrestres, zumbis e o que mais tinham à mão), fosse com filmes de guerra e de super-heróis, derramou uma avalanche de filmes de propaganda, devidamente disfarçados. O propósito era fazer reverberar pelo mundo seus nobres valores, ao mesmo tempo em que nos inundavam com estereótipos rasos. Caso claro, por exemplo, de Rocky IV, filme em que um lutador de bom coração disputa uma final de boxe contra um soviético frio, inescrupuloso e, principalmente, manipulado pelo governo.

Embora menos efetiva, a música pop também entrou no jogo. Neste caso, o lance era mais nas entrelinhas, chamado de “soft power”. Ídolos lindos, livres e felizes subiam aos palcos, para que quem estivesse no lado oposto morresse de inveja ao ver como os jovens podiam se divertir, dançar, namorar, beber até cair e dizer o que pensam. A rebeldia trabalhando em favor da subserviência.

Para proteger sua juventude da contaminação vinda do oponente, governos trataram de impor barreiras culturais, como proibição de filmes, livros e espetáculos musicais, com reflexos tardios até os dia de hoje. Tardios porque, teoricamente, a Guerra Fria acabou em 1991, com a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a consequente reunificação da Alemanha. Te contamos, em abril deste ano, que a Chechênia aprovou uma bizarra lei para proibir gêneros musicais ocidentais no país, para conter a “contaminação cultural dos jovens”. E se você pensa que tais maluquices são exclusividade dos comunas, saiba que está errado. Do lado ocidental, a propaganda rolou solta de um jeito bem mais sutil e alienador. Quantos álbuns russos você ouviu nos últimos anos? E chineses? Ninguém escapa dessa, caros amigos.

Desvelado o contexto, um rasgo na Cortina ganha ares ainda mais interessantes neste emaranhado que envolve política, música e cinema. O dia em que, pela primeira vez oficialmente, uma produção ocidental se entremeia pelas guaritas e postos de checagem que dividiam os dois mundos e invade o lado oposto. Foi o caso de A Hard Day’s Night, o primeiro filme dos Beatles, lançado em julho de 1964, e que há exatos 60 anos (1º de outubro) inaugurou um circuito de execuções em cinemas do leste europeu, começando por Praga, na Polônia.

Quem teria força e fama, nos anos 60, para furar essa barreira e fazer sucesso do lado de lá, levando junto seus terninhos, seus cortes de cabelo e a beleza de ser ocidental? Os quatro garotos (família) de Liverpool. A Hard Day’s Night foi a primeira produção cinematográfica do Ocidente a circular nos cinemas do chamado “Segundo Mundo”, depois do fim da Segunda Guerra.

Em 1964, a Beatlemania já tinha ares de pandemia. O grupo acabava de lançar seu terceiro álbum, A Hard Day’s Night, junto com um filme cujo objetivo era justamente amplificar a promoção da sua imagem. À época, a revista Time classificou a obra como “um dos mais suaves, agradáveis e divertidos filmes já feito com objetivos de exploração comercial”. O propósito, em um mundo em que não existiam sequer videoclipes, era levar a imagem dos rapazes junto com sua música. Deu tão certo que corroeu até mesmo o ferro da Cortina. Quatro anos mais tarde, em 1968, passando por cima de qualquer estratégia conhecida vinda dos países aliados, a banda ainda lançaria a canção Back in The U.S.S.R. Segundo Paul McCartney, a canção conta a história “de um espião russo voltando para casa depois de uma longa missão nos Estados Unidos”.

A vitória do rock sobre imposições governamentais causou chiliques em quem administrava países com o intuito de proteger sua juventude da “contaminação”. O batalhão comandado pelo capitão Brian Epstein, genial e competentíssimo empresário dos Beatles, venceu a batalha por conta própria. Em 1966, John Lennon compraria uma senhora briga com os conservadores do mundo ao declarar, em entrevista à revista The Evening Standard, que os Beatles eram mais populares do que Jesus. Provocou com conhecimento de causa. Dois anos antes, em 1964, a banda provara ser mais poderosa do que o governo de muitos países.

A Hard Day’s Night fala sobre como os Beatles são famosos e idolatrados. Basicamente, este é o roteiro principal do filme. Em suas cenas, aparecem fugindo de hordas de fãs, correndo de hotel para trens, de trens para estúdios de TV, e de estúdios de TV para palcos, sempre envoltos em estratégias para não serem afogados em um mar de garotos e garotas histéricos, lutando por uma chance de se aproximar de seus ídolos.

No Brasil, o filme também circulou pelos cinemas, rebatizado segundo a notória criatividade do brasileiro: Os Quatro Cavaleiros do Após-Calypso ou Os Reis do Iê Iê Iê. A estratégia foi inspirada no que já fazia Elvis Presley. Ao contrário do ídolo estadunidense, porém, o Fab Four resolveu falar sobre… eles mesmos. E foi um sucesso de público, de crítica e arrecadação. “O Cidadão Kane da geração jukebox”, segundo o tabloide nova-iorquino The Village Voice.

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