
Hi-tech fusion: Jeff Mills redefine o jazz e o techno em espetáculo hipnótico
Com o projeto Tomorrow Comes The Harvest, a lenda viva do techno une improviso, tabla e sintetizadores em uma jornada sonora retrofuturista
Nos últimos dias 14 e 15, São Paulo teve o privilégio de conferir as apresentações do trio Tomorrow Comes The Harvest, projeto liderado pela lenda viva do techno, Jeff Mills, e que foi trazido pelo Queremos!. Mas antes de contar como foi a experiência de assistir ao espetáculo de Mills, Jean-Phi Dary e Prabhu Edouard no dia 15, é preciso contextualizar.

Gosto bastante da famosa definição de Derrick May de que o techno é como George Clinton e Kraftwerk presos juntos em um elevador, com apenas um sequenciador como companhia. Além dessa mistura fundamental, o gênero musical também sempre incorporou outras influências, como minimalismo, disco, house, dub e breaks. Essa capacidade é parte do que o torna um organismo vivo, sempre pronto para se reinventar. É música que cresce, mutante, atravessando tempos e geografias, carregando ecos de culturas que dialogam mesmo à distância.
Em 1993, o produtor americano Mike Banks apresentou o Galaxy 2 Galaxy, projeto cuja faixa Hi-Tech Jazz se tornaria uma espécie de manifesto — um encontro entre a cadência espiritual do jazz e o pulso mecânico do techno. Não era a primeira vez que esses mundos se tocavam: já em 1989, o grupo inglês 808 State lançava Pacific State, uma música cinematográfica de atmosfera líquida, marcada por saxofone e canto de gaivotas.
O embrião dessa fusão, porém, remonta ao EP Nation 2 Nation, produzido em 1987 e lançado em 1990. Em 1992, Banks, agora sob o nome de Underground Resistance, lançava Jupiter Jazz, e o pioneiro Juan Atkins remixava Jazz is the Teacher, do projeto 3MB — colaboração com os berlinenses Moritz von Oswald e Thomas Fehlmann. Von Oswald, mais tarde, também cairia no jazz com seu Moritz von Oswald Trio, com a participação do baterista Tony Allen.

Prabhu Edouard – Tomorrow Comes The Harvest em SP. Foto: Rebeca Figueiredo/Divulgação
Jeff Mills e Mike Banks tinham visões de jazz e músicos operando sob a mesma doutrina do “homem-máquina” que lhes foi mostrada pelo Kraftwerk. Em 2006, ampliam as possibilidades com a compilação UR Presents Galaxy 2 Galaxy – A Hi-Tech Jazz Compilation, abrindo a paleta a outras formas mais experimentais. Por esse período, produções incluíam visitas à música dos apaches norte-americanos e a sons do Oriente, como nas faixas Sonic Samurai, Fuji e Kama Sutra.
Oriente que é um caminho recorrente na história do próprio jazz: desde que o compositor indiano Ravi Shankar desembarcou em Nova Iorque em 1955, músicos de várias vertentes passaram a ouvir a música indiana com outros ouvidos. Mestres do erudito, como o violinista Yehudi Menuhin, artistas do pop (Beatles, Byrds…), precursores como Yusef Lateef ou gigantes como John Coltrane e Miles Davis fizeram essa jornada.
Houve também o inevitável retorno à África ancestral — e parece natural que isso tenha ocorrido, como quem pisa em pegadas que conduzem a um futuro seguro, restaurador e que reencontra sua origem. Assim, o jazz encontrou na percussão polirrítmica, nas improvisações e no sistema de canto em chamado e resposta, um fértil terreno para se desenvolver.

Jean-Phi Dary – Tomorrow Comes The Harvest em SP. Foto: Rebeca Figueiredo/Divulgação
Anos depois, aquilo voltaria ao continente africano através de Fela Kuti e Tony Allen, que explodiram o afrobeat e enviaram ao mundo uma nova cartilha de possibilidades, logo apropriada por músicos como Brian Eno, Talking Heads, Paul Simon e Beyoncé. No hi-tech jazz, Banks e Jeff Mills também pisam nesses rastros — como se o jazz tivesse esquecido que dançava, e o techno o conduzisse de volta a um novo futuro possível.
Em 2018, Mills se encontra com Tony Allen para começar um projeto focado em criar música livremente, no espírito do bom e velho jazz. Allen, frequentemente lembrado por Fela Kuti como a outra metade criadora do afrobeat, trouxe o experiente tecladista Jean-Phi Dary. A coisa deu liga, e o grupo lançou o álbum Tomorrow Comes The Harvest, excursionando pela Europa até ser interrompido pela pandemia e pela prematura morte de Allen, em 2020. Jeff toma um caminho certeiro diante da inglória missão de substituir Allen por outro baterista: chama o percussionista e mestre de tabla indiana Prabhu Edouard. E como os antigos gigantes do jazz, ele volta à ancestralidade africana e à música indiana fundidas à alta tecnologia.
Impossível não lembrar de ícones do jazz-fusion, como Mahavishnu Orchestra, Return To Forever e, é claro, Herbie Hancock. Nos anos 70, Hancock já havia aberto a fenda. Os álbuns Mwandishi, Crossings e Sextant eram experimentos de travessia, nos quais o jazz se dissolvia em sintetizadores e paisagens cósmicas, enquanto Head Hunters soava como uma nave feita de groove, propulsada por baixo elétrico e modulações espaciais. Era o jazz libertando-se da partitura e encontrando os circuitos. Hancock, Miles, John McLaughlin — todos buscavam a fusão como um salto místico: da África e Ásia à eletricidade. Cada acorde, cada ritmo parecia antecipar um amanhã ainda por ser inventado.
Jeff Mills entende isso não como nostalgia, mas como continuidade, e é exatamente disso que se trata o Tomorrow Comes The Harvest: um amálgama de toda essa trajetória, algo que poderíamos definir como “hi-tech fusion” — uma versão envenenada do jazz-fusion dos anos 70, com os três músicos realizando uma grande viagem movida a techno, via Lagos e Bombaim.
O escritor Kodwo Eshun tem um excelente livro, More Brilliant Than The Sun – Adventures in Sonic Fiction, focando na música de Sun Ra, Alice Coltrane, Lee Perry, Dr Octagon, Parliament e Underground Resistance. Ali, Kodwo utiliza o termo “hi-tech fusion” para descrever Nobu, faixa de 1974 de Herbie Hancock — um som que, segundo ele, chega do futuro para confundir o presente. Hancock construiu ali uma arquitetura sonora em que o jazz é absorvido pela máquina: as batidas são substituídas por arpejos do icônico sintetizador ARP 2600, o baixo vira ritmo harmônico e o improviso nasce da repetição. Escutando a faixa, é nítido o quanto ela está impregnada no que viria a ser o techno — basta acrescer as batidas da drum machine TR‑909 de Mills e estamos lá.
Essa invenção, ignorada à época, seria mais tarde reconhecida como o verdadeiro prototechno: uma abordagem que antecipa Detroit, a mesma pulsação que Jeff Mills reencena meio século depois. Nobu é o passado que se alimenta do futuro — o feedforward que Eshun descreve como característica da música negra tecnológica, sempre avançando em espiral sobre o tempo. Nos anos 70, Hancock já intuía essa lógica: uma música sem centro fixo, na qual o pulso se torna espaço e a harmonia respira dentro do circuito. O hi-tech fusion do Tomorrow Comes The Harvest nasce aí, como prática e como ficção sonora — um movimento que dissolve o jazz no circuito eletrônico e reconfigura o que entendemos como improviso, projetando a ancestralidade africana para um futurismo imaginário, visionário e radical: uma verdadeira cartografia do afrofuturismo sonoro.

Nos shows, em mais de um momento, somos avisados de que não há setlist, não existem músicas para serem tocadas e que tudo o que ouviremos será feito na hora, fruto de ideias postas ali, naquele instante. E assim é. Como disse Jeff, uma exploração em tempo real de energia e ritmo, uma grande comunicação telepática de sons, cadência e gestos, em que ele, Dary e Edouard formam uma só mente distribuída em três corpos. Um trio que pensa e reage em tempo real, esculpindo o ar com timbres e pulsações — como se cada apresentação fosse uma colheita única de um campo que se renova a cada toque.
A entrada de Prabhu Edouard adicionou uma nova camada de complexidade à banda. O fraseado rítmico microscópico e a ressonância quase vocal da tabla criam uma ponte direta entre a meditação e a máquina. Ela não marca o tempo — o estica, o curva, o respira. Nas mãos de Edouard, o tambor indiano se transforma em um sintetizador orgânico, desenhando padrões que se entrelaçam ao metrônomo invisível de Jeff Mills. É como se o pulso de Detroit encontrasse, enfim, sua contraparte oriental: o mesmo impulso de transe, mas nascido de uma outra tradição de improviso e escuta. A fusão não é decorativa — é estrutural, um espelhamento entre o tambor ancestral e o sequenciador.
Nos teclados, Jean-Phi Dary opera como o eixo melódico e harmônico dessa constelação. Seu uso do piano Rhodes, do sintetizador Moog e de sintetizadores analógicos resgata a linhagem direta do fusion setentista, mas reconfigurada sob o rigor e a contenção do techno. Dary não toca acordes: ele faz o som orbitar. As notas do Rhodes soam líquidas, como ecos de Head Hunters, mas atravessadas por um campo magnético digital. O Moog, por sua vez, funciona como gravidade — sustenta e atrai tudo o que vibra ao redor. Ao lado da precisão rítmica de Mills e das pulsações mantras de Edouard, Dary cria o espaço em que a improvisação respira o ar rarefeito de uma jam feita entre humanos e máquinas.

Tomorrow Comes The Harvest em SP. Foto: Rebeca Figueiredo/Divulgação
Jeff Mills, por sua vez, amplia o vocabulário percussivo do grupo ao cruzar máquinas e pele. À sua lendária TR‑909 — coração pulsante do techno de Detroit — ele acrescenta atabaques, pandeiros, pratos e pequenos tambores, criando uma bateria híbrida que respira. O que antes era programação se torna gesto: Mills toca a 909 como se fosse um tambor ancestral, tensionando o tempo entre o cálculo e o transe. Cada batida parece flutuar entre a pista e o ritual, entre o código binário e o pulso humano. Assim, o que nasceu na rigidez das drum machines ganha corpo e respiração, como se a própria máquina tivesse aprendido a improvisar. É hi-tech fusion versão 2.0 turbo.
Nas apresentações de São Paulo, essa fusão atinge a plenitude. As luzes piscam como impulsos elétricos vindos de outra era, e Jeff Mills — entre o tambor e o transistor — conduz uma liturgia de tempo e frequência. A TR pulsa como coração de metal, o pandeiro responde em carne viva. A plateia, envolta nesse campo sonoro, abandona o relógio e passa a girar num compasso próprio, de transe e êxtase. É a colheita, o momento em que som e corpo se fundem no mesmo pulso.
Não há fronteira entre o humano e o mecânico — há apenas vibração. Hi-tech fusion não é um gênero — é um estado. Uma lembrança do amanhã de que ainda estamos aprendendo a dançar.