Coleção de trabalhos nunca ouvidos pelo público pode permanecer no baú, graças a disputas judiciais
Um verdadeiro tesouro repousa em uma residência na pequena cidade de Ostende, na Bélgica. Durante um período em que morou com o amigo Charles Dumolin, o gênio da soul music, Marvin Gaye, deixou a seus cuidados uma caixa de fita com 66 canções gravadas, poucos anos antes de ser brutalmente assassinado pelo próprio pai, em abril de 1984.
A revelação deu início a uma estranha batalha judicial, no que diz respeito à propriedade do material. Como o artista tinha contrato, em vida, com a Motown, a gravadora rapidamente entrou na justiça para reclamar todos os direitos sobre as músicas não lançadas. Dumolin, no entanto, avisa que as gravações são dele. Foram um presente do amigo, que deixou sob sua custódia antes de voltar aos Estados Unidos.
O imbróglio pode fazer com que o extenso material jamais chegue aos ouvidos da imensa nação de admiradores do cantor, um tremendo desserviço para a história da humanidade.
Gaye passava por maus bocados nos Estados Unidos em 1981. Enfrentava um processo da receita federal de seu país, cobrando a falta de pagamento de impostos. Além disso, estava incomodado com o vício em cocaína. Fugindo do leão e dos dealers, viajou para Londres.
Durante uma festa em um clube na capital inglesa, conheceu Charles Dumolin, a quem contou, principalmente, sobre sua luta para se afastar do pó. O belga, então, o convidou para passar um tempo na casa de sua família, no litoral da Bélgica, uma pacata cidade a cem quilômetros da capital Bruxelas.
Marvin aceitou o convite e passou um ano e meio vivendo na casa dos Dumolin, se livrando do vício e recuperando sua criatividade, até então anestesiada. O tempo livre era usado para andar de bicicleta, correr, compor e gravar as novas ideias em fitas cassete. O período de descanso rendeu nada menos do que 66 novas músicas.
Intuindo, talvez, seu fatídico destino ao retornar para os Estados Unidos (o cantor foi assassinado pelo pai abusivo poucos meses após voltar), Gaye preferiu deixar o material gravado com o amigo. “Faça o que quiser com elas”, disse o soulman a Dumolin antes de partir, segundo declaração do próprio detentor das fitas à BBC. Gaye nunca mais voltou para buscá-las e, se suas recomendações forem verdadeiras, uma lúgubre perspectiva pairava sobre o artista no momento da despedida.
A Motown afirma que, por serem gravações caseiras, provavelmente têm qualidade inferior aos padrões do próprio Marvin Gaye para serem lançadas comercialmente. Além do mais, se diz detentora dos direitos autorais.
Charles Dumolin teme que as composições jamais cheguem ao público, e se baseia nas palavras do amigo para definir o futuro delas. Enquanto uma decisão judicial não define o caso, uma significante obra de um dos maiores gênios do soul de todos os tempos segue guardada em uma caixa, como um dos mais valiosos tesouros da música.