TEXTO: JOTA WAGNER
FOTOS: MARCELO PAIXÃO
Não é novidade que festivais no meio do mato (uma rave que se estica por mais de dois dias com “confortos” que o permitem ir e voltar à mesma festa numa espécie de gif existencial) são uma experiência de universo paralelo (daí a genialidade do nome do histórico festival tranceiro brasuca) em que, por um breve momento da nossa vida, fingimos nos desprender dos anzóis que estão enganchados em nossas bocas.
Dias em que você dorme quando não aguenta mais ficar acordado. Acorda quando não quer mais dormir. Come quando tem fome ou gula. E bebe líquidos paralelos ou divergentes do álcool. Porém, o que difere a Voodoohop do resto é que o mergulho dentro do seu eu é algumas dezenas de metros mais fundo do que dos outros festivais. A produção coletiva, orgânica e chapada da gangue nuclear que passa semanas trabalhando ali gera uma energia que estica ao máximo os limites da consciência, da compreensão, da birutagem artística e do desentendimento existencial.
A música, tão diversa e diferente do que se escuta em outros ambientes (urbanos ou raveiros) é uma espécie de Kama Sutra psicodélico. Segura seu orgasmo num contraponto radical e extremo ao cabreirismo musical urgente do superpop EDM. Enquanto Tomorrow DJs querem explodir a pista com seus canhões de raios hardtrance, os da Voodoohop massageiam seu cérebro com assoprinhos de purpurina étnica retro futurista.
Chegamos em Heliodora, cidade onde aconteceu a Voodoohop na Cachoeira 2017, sábado (18), lá pela hora do almoço. O micromunicípio digno de retratos de Jorge Amado ou Gabriel Garcia Marques estava em polvorosa com a malucada que consumia na cidade artigos de camping, jaca e sobrevivência necessários para a experiência de quatro dias (3 + 1 after de segunda à noite) que o festival oferecia. Até aí, a lógica do quadrado ainda impera: quem ganha dinheiro com a movimentação perdoa, aceita e se diverte com os, literalmente, alienígenas. Quem não participa da farra apenas observa com olhos esbugalhados o vai-e-vem de carros, pessoas e idéias tão diferentes do pacato estilo de vida do vilarejo.
Ouça o set do Colors Sound System gravado na Voodoohop na Cachoeira 2017
O Colors Sound System, pela segunda vez, iria tocar na Voodoohop. A primeira foi num insano final de semana paralelo à Virada Cultural na surreal Tracker Tower. Deixamos parte das malas da crew na pensão (que durante o Voodoo Weekend é renomeado de “hostel”) e fomos para a Cachoeira do Pedrão, onde a outra metade do bonde armaria sua barraca no meio do rolê.
O lugar, aparentemente perfeito para uma festa com venda de 300 ingressos (limite estabelecido pela produção do festival), tinha de tudo o que uma boa viagem psicodélica natureba necessita. Uma cachoeira espetacular, árvores com copas enormes para abrigar as barracas, piscina de água natural, trilhas gramadas que circundam lagos doidos, plantas e folhagens que se movimentam, observam e conversam com você sobre assuntos divertidos e descompromissados, à moda mineira.
Com o cair da noite, a aura Vooodoo se apresenta. Luzes coloridas, projeções, gente com fantasias duma espécie de steam punk africano e um sistema de som que está entre os mais incríveis que eu já ouvi (na pista Selva, a principal) criam uma espécie de micromundo que testa os limites da sua compreensão do que é arte. Raramente se distingue quem é “público” e quem é “instalação”.
A grande sacada musical da festa é que a vivência dançativa não é progressiva. Pelo contrário. A Voooodoo faz uma manutenção mental, talvez com a intenção de controlar sua mente, ou segurar sua mente, prepará-la para algo maior, numa espécie de coaching lisérgico que, pelo que entendi, tenta conduzir gente normal ao grande nirvana do “foda-se”.
A pista segue cheia, ritualística, lenta como uma maria fumaça do apocalipse que singra a noite sem pressa. Os conceitos se invertem, e o que era normal até quinta feira passada agora soa estranho. Aliás, estranho mesmo é a sensação de “verdade revelada” que toma conta da madrugada, rasga as manhãs e segue serpenteando na sua frente até o momento em que você desiste de compreender.
O dia seguinte, graças a essa intrínseca estratégia de morde-e-assopra da Voodoo, é de uma leveza fora do normal. Principalmente para aqueles que, como eu, viveram o frenético e trincante movimento das raves do anos 90 que orbitavam São Paulo em sítios de Cotia, Mairiporã, Arujá, Jundiaí…
Convenhamos: se Deus tivesse uma vassoura celestial, varreria todos aqueles que sobraram na tarde seguinte a uma rave noventista para um purgatório onde condenados ouviriam incessantes cem anos de irmãos Liberator (Chris e Julian, pra quem não se lembra). Bem diferente da viagem malemolente e pelada que senti nesse dia calmo de domingo.
Falando em Deus, que ele abençoe a evolução. Aliás, que abençoe especialmente a maxi-evolução promovida por esses malucos estranhos, que metem suas esporas psicodélicas em nossas bundas, nos levando para um lugar onde o resto da juventude estará depois que o meteoro dizime boa parte do mundo como o conhecemos.
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