David Cross. Foto: DivulgaçãoViolinista do King Crimson, David Cross recria suas memórias no Brasil
Alex Antunes conversa com o músico, que se apresenta em São Paulo e Porto Alegre nesta semana
Por Alex Antunes
Quando o King Crimson lançou Larks’ Tongues in Aspic, em 1973, o disco representou, para o guitarrista e cofundador Robert Fripp e os demais integrantes, mais do que uma nova formação ou um novo som. Foi uma redefinição do que o grupo britânico poderia ser. A saída de todos os membros anteriores, e principalmente o desligamento de Peter Sinfield como letrista sócio-fundador (ele foi colaborar com o Emerson, Lake & Palmer), criaram uma espécie de portal.
A abertura à experimentação, ao abstrato e ao improviso foi tão intensa que transcendeu não apenas o que a banda tinha feito até então (e que não tinha sido pouco), mas também o beco sem saída em que o assim chamado rock progressivo estava se metendo: o clichê sinfônico-epopeico e, em seguida, o rock de estádio.
Embora pudesse ser categorizado ainda como prog, Larks’ Tongues in Aspic trazia música em que a composição e a improvisação se misturavam; em que a densidade rítmica, o uso de violino e viola, de percussão “enquanto objeto”, de camadas de som estranhas, de espaço e silêncio, criam uma atmosfera que flerta tanto com o desconforto quanto com o hipnótico. Um laboratório sonoro, retorcedor da mente.
Ao Music Non Stop, o violinista David Cross comenta: “Podemos, sim, chamar o processo de democrático: Fripp tinha composições, e tinha ideias fantásticas. E os outros também. Tivemos um bom período de composições e ensaio — seis semanas, acho. E o objetivo era ser você mesmo nesse contexto. Às vezes nós lutávamos com isso, às vezes era fácil, mas era o que estava em jogo”.
Essa observação, junto a outras dadas então pelo baterista Bill Bruford, mostra um aspecto da disciplina de Robert Fripp que pode parecer paradoxal. Ele é tido por muitos como autoritário, mas na verdade pretende ser o, digamos, guardião desse portal criativo. Como diria o ocultista britânico Aleister Crowley, “faze o que tu queres há de ser o todo da Lei” — mas a pessoa tem que descobrir o que realmente tem dentro de si, e dar passagem apenas a isso, ao que lhe é essencial.
O fato é que, em Larks’ Tongues in Aspic, Fripp e o King Crimson realizaram essa transmigração musical. Os dois álbuns seguintes, Starless and Bible Black e Red, lidam com esse tipo de material (um mais improvisado, outro mais “resolvido”), mas o clima de flerte com o ritual imaginário, de trazer para a luz conteúdos do inconsciente profundo, permanece marcante naquele primeiro. Claro que, assim, esse álbum permanece criando reverberações. O que nos traz ao Brasil, hoje.
Cross, Dialeto, Bartók
Em 2017, o grupo brasileiro Dialeto gravou seu disco Bartók In Rock, adaptando, como diz o título, composições do húngaro Béla Bartók (1881–1945). Bartók era um músico erudito, mas também um etnomusicólogo. Mais ou menos como Mário de Andrade faria no Brasil, décadas depois, ele tentou retratar o sociopsiquismo de um povo pesquisando melodias camponesas da Transilvânia (então parte da Hungria, hoje Romênia).
Mas Bartók adaptou essa música pesquisada nas suas próprias composições, em ciclos como o das Roumanian Folk Dances (1915) e dos Mikrokosmos (uma centena e meia de peças, que se constituem também em tratado didático, entre 1926–1939). O guitarrista e arranjador Nelson Coelho reuniu todas as Dances a dois Mikrokosmos, e mais duas peças intermediárias, An Evening In The Village (1911) e The Young Bride (1918). É aí que essas histórias se juntam.
O Dialeto convidou David Cross para gravar o violino na faixa de abertura do disco, Mikrokosmos 113 – Bulgarian Rhythm I (1936 ou 1937). Cross aprovou a experiência: “Foi um trabalho excelente do Dialeto, esse de adaptar Bartók ao rock. O álbum herda essa espécie de leveza que as melodias folclóricas originais tinham. Elas são familiares, mas não de uma forma previsível. Elas se apresentam diante de você, e depois se escondem em um canto antes de surgir novamente. Bartók era um mestre nisso”.
Bartók é referência não só para Cross, que o ouviu adolescente, como também para Fripp, ao lado de Stravinsky. A metáfora “Hendrix tocando os quartetos de Bartók” surgia de vez em quando nas críticas à música do King Crimson.
Uma coisa leva a outra e, quando Cross veio ao Brasil para o show de lançamento, no Sesc Belenzinho, SP, outro complemento óbvio foram músicas do King Crimson — particularmente, faixas de Larks’ Tongues In Aspic. Para os conhecedores da banda, o Dialeto, em trio, se virou muitíssimo bem. Não só a cozinha (de Gabriel Costa, baixo, e Fred Barley, bateria) mostrou uma solidez invejável — e não é bolinho emular os originais John Wetton e Bruford —, como os dois músicos também deram conta dos vocais de Wetton. E Nelson é um discípulo notável da precisão de Fripp. Há quem diga (gerando controvérsias, claro) que essa apresentação foi mais fiel às gravações da época do que as próprias releituras desse repertório pelas formações seguintes do King Crimson.
Cross já havia feito leituras de uma antiga faixa do grupo — uma das mais belas melodias de seu violino, diga-se — junto ao próprio Fripp, no disco Starless Starlight, em 2015. E no ano passado lançaria Larks’ Tongues @ 50, com a David Cross Band, cuja turnê passou inclusive no Brasil, na Casa Rockambole, SP. Aqui ele descobriu uma base de admiradores seus, e do Crimson setentista (o grupo teve outra fase notória nos anos 1980, e voltou aos palcos outras vezes, até 2021, incluindo shows em São Paulo e Rio em 2019). E, em 2022, houve o lançamento de um documentário bastante interessante, contando a história da banda desde 1968 (no Brasil foi exibido no festival In-Edit, e tem circulado pelos streamings. No momento está no catálogo do Mubi).
David Cross está de volta. Hoje em São Paulo, e depois de amanhã em Porto Alegre, Dialeto e o violinista dão um repeteco dessa parceria. O repertório, claro, inclui Bartók em rock, King Crimson e — vejam só — músicas de Pandelirium, o livro-disco que Nelson escreveu, e depois musicou com o Dialeto, após uma experiência de quase morte no início da pandemia da covid-19. Como eu disse, a passagem para a real liberdade é estreita.
Audição no CCSP
E, no domingo, dia 2 de novembro, Cross se despede desta visita ao Brasil com uma audição comentada de Larks’ Tongues In Aspic no Centro Cultural São Paulo. O diretor do CCSP, José Mauro Gnaspini, diz que essa audição vai abrir uma série, numa iniciativa da Discoteca Oneyda Alvarenga. A discoteca foi fundada (como Discoteca Pública Municipal) por Mário de Andrade em 1935, quando ele esteve à frente do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo. E depois ganhou o nome de Oneyda, que Mário considerava uma de suas discípulas mais brilhantes quando ingressou, com 19 anos, no Conservatório Dramático e Musical da cidade.
A Discoteca já fez, antes, séries de audições. Em 2017, por exemplo, eu mesmo conduzi uma audição de The Piper at the Gates of Dawn, do Pink Floyd. Aquela série foi chamada de Concertos de Discos, mesmo nome que a diretora Oneyda deu às célebres audições que ministrou entre 1938 e 1958. A discoteca está situada no Centro Cultural desde 1982, ano da fundação do CCSP.
O diretor José Mauro Gnaspini promete para as próximas semanas divulgar as próximas audições. Décadas depois, e no ambiente em que a música pop voltou às durações curtíssimas, de até cerca de dois minutos, por influência das postagens nas redes sociais, a escuta imersiva volta a ser (contra) tendência. E, claro, o rock progressivo, que se desenvolveu junto com a cultura dos álbuns conceituais — um convite à escuta atenta e imersiva, por definição — é um item desse menu.
Cross, que de tempos em tempos volta ao repertório do King Crimson, além do seu extenso currículo de colaborações no rock e no jazz, tem algo a dizer sobre aquelas músicas, e sobre as estranhas circunstâncias que reuniram aquele quinteto — o outro membro foi o notável percussionista Jamie Muir, que só ficou no grupo naquele disco, antes de se retirar para um mosteiro (!). Muir morreu em fevereiro deste ano; Wetton, em 2017.
“São músicas fantásticas, e ‘horrivelmente’ complicadas. No tempo em que estávamos trabalhando naquele repertório, guardávamos algumas ideias e, depois, esquecíamos, distraídos com outras coisas que estavam acontecendo. Mas, mais tarde, essas ideias voltavam à nossa mente, e alguém da banda sugeria o que fazer com elas.” Parece que essas ideias continuam voltando, e voltando, à mente.
Datas, horários e locais
David Cross & Dialeto em São Paulo, 28 de outubro, 20h, no Teatro Sabesp Frei Caneca (Rua Frei Caneca 569, Bela Vista, São Paulo – SP).
David Cross & Dialeto em Porto Alegre, 30 de outubro, 21h, no Teatro do Bourbon Country (Av. Túlio de Rose 80, Jardim Europa, Porto Alegre – RS).
Audição de Larks Tongues In Aspic com David Cross em São Paulo, 02 de novembro, 19h, na Sala Adoniran Barbosa do Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro 1000, Liberdade, São Paulo – SP).



