Uma viagem por dentro da Misty, icônica boate de Recife, antro de rebeldia e boa música, entre 1979 e 1993
TEXTO E FOTOS LAS BIBAS FROM VIZCAYA
Conheci a Misty em 1989 no seu auge como casa noturna. Frequentá-la era motivo de segredo, ou você ganhava o selo de “desajustado” dos colegas e da família. Afinal, era conhecida como a boate das bichas, dos drogados e dos “outsiders” também conhecidos na época como “darks”.
Na verdade era uma boate de pessoas inquietas, modernas, dos modelos e do pessoal das artes em geral. A pequena nata descolada de Recife nas suas diferentes gerações passaram pela pista da Misty. Pelos seus corredores escuros eu ouvia falar das figuras locais e suas estórias como Consuelá (a trans mais famosa do Recife na década de 80), praticamente a Rogéria recifense, uma das poucas a estampar nas colunas sociais dos tradicionais jornais com Diario de Pernambuco ou o centenário Jornal do Commercio. E como não falar da personagem notívaga Aldo, com os seus modelitos absurdos e inesperados (tenho
gravado na memória quando eu o vi com uma gaiola de passarinho enfiada na cabeça e a sua bolsinha feita com uma chaleira). Fashionismo puro!
PRIMEIRO BEIJO GAY
Falar da Misty é como falar de mim mesmo. Boa parte da minha sonoridade, que reside em mim até hoje, eu descobri lá dançado e só me dei conta dessa influência com o passar dos anos e com os covers de algumas músicas que fiz inconscientemente. Meus melhores amigos eu fiz lá, meu primeiro beijo gay, o primeiro porre e até a primeira colocação foram lá. Era religioso de quinta a domingo, às 3h da manhã,
assistir aos shows com atores-transformistas. Meus olhos brilhavam vendo apresentações de Raquel Simpsom, Chistiane Falcão e o caricatíssimo Gil Araujo.
A Misty em Recife foi tipo um Madame Satã em São Paulo ou o Crepúsculo de Cubatão no Rio. Ela era a preferida dos alternativos, e boa parte dos héteros mais descolados e desajustados também adoravam frequentá-la. Interessante lembrar que quase todos os meus amigos homens de lá eram héteros e metidos a DJ.
NADA DE CÂMERAS
Registros fotográficos dessa época são raríssimos de encontrar. Primeiro porque nao tínhamos ainda a cultura da selfie (graças a Deus rs). As poucas fotos que amigos me enviaram são dos esquentas nos apartamentos dos amigos solteiros. Além de tudo, era proibido entrar com câmera na boate, por se tratar de um ambiente alternativo, que abrigava a mais variada fauna e flora, inclusive a dos héteros casados – e curiosos.
Situando o panorama musical dessa época dourada da Misty; fora do Brasil os movimentos musicais se multiplicavam: o fim do punk dava início à new wave, que abrigava góticos, new romantics e synth-pop. Nada disso era mostrado nas pistas brasileiras, que no máximo apresentavam uma acid house mais comercial. Apenas quando dois hits de EBM (electronic body music) explodiram ao mainstream, Join In the Chant, do Nitzer Ebb, e Headhunter, do Front 242, foi que boates comerciais vieram a ouvir o que
já ouvíamos há anos na Misty, um lugar que preenchiam a lacuna dos que queriam ouvir música nova e experimentar novas tendências de comportamento.
Join In the Chant, Nitzer Ebb
COMO TUDO COMEÇOU
Resumindo a Misty para os mais jovens, Fefê (apelido do dono) inaugurou a boate em 5 de janeiro de 1979, na Rua do Riachuelo, em frente à FDR (Faculdade de Direito do Recife), com o lendário DJ Tom Azevedo no comando. Em fevereiro de 1982, a Misty se mudou para a Rua das Ninfas, onde permaneceu até fechar, em 1993. No seu lugar, posteriormente ao seu fechamento, funcionaram a também lendária Doktor Froid e depois a Metrópole, sob comando de Maria do Céu (ativa até hoje). Essas infos foram retiradas do blog do festival Coquetel Molotov.
Ouça Misty, The Project, set de 8h de duração, gravado por Las Bibas From Vizcaya, inspirado nos diferentes momentos de uma noite na boate Misty, da abertura mais lenta até a ferveção na pista.
Em 1989, se não me falha a memória, o DJ Xico assumiu o comando sozinho da cabine da Misty. Ele tinha sido pupilo do DJ Tom Azevedo, que depois de anos deixou o comando da Misty só voltando nos anos finais da boate. E foi sob a batuta de Xico que eu fui mais influenciado.
Inspirado pelo que vivi na Misty, resolvi fazer este texto, um set (de oito horas de duração!!) e uma música, que leva o nome da boate e foi lançada nesta sexta (28), assinada pelo meu projeto Laykkah.
O intuito desse trabalho foi única e exclusivamente perpetuar minhas memórias afetivas, compartilhar com os amigos da época e oferecer referências passadas aos novos DJs, além de deixar claro que boa música não envelhece.
BAUHAUS, TALK TALK E LENTAS
Lembro de algumas mixagens icônicas feita no vinil pelo DJ Xico que eu fiz questão de reproduzir fielmente aqui, porque mixar (a arte de fazer a passagem de uma música para a próxima da maneira mais harmônica possível) na Misty era um detalhe, em parte porque eram tantos estilos, ritmos e BPMs que o que valia mesmo era o feeling de ver a pista vir abaixo com músicas imagináveis como Bella Lugosi’s Is Dead do Bauhaus e seus quase 10 minutos de duração.
A boate abria às 23h e sua abertura era um show à parte, pois começava com as “lentas” e sombrias, de bandas góticas como Cocteau Twins, Talk Talk, Peter Murphy etc. Ao chegar perto da meia-noite, o BPM ia levemente aumentado com tracks de new beat até chegar nos primeiros EBMs.
ELECTRONIC BODY MUSIC
E se tem uma coisa pela qual a Misty será lembrada para sempre pelos frequentadores é por difundir à exaustão a EMB, ou Electronic Body Music. Se havia um lugar pra experimentar sons novos, esse lugar sem dúvida era a pista da Misty, que ia do rock e ao pop, com Snap, The Smiths, U2, Banderas, Simply Red e Madonna.
98 TRACKS PARA LEMBRAR A MISTY
No set que gravei especialmente para esta matéria, entre as 98 tracks, simulei desde a abertura às 23h, a subida de BPMs até a 1h e depois, em blocos de duas horas, fui puxando do fundo do baú das minhas memórias o que mais me tocava, me emocionava e fazia eu me conectar com aquele minicosmo tão particular que era o dancefloor da Misty, até chegar ao final da noite, que voltava a ser como tudo começou: lento, sombrio e melancólico (e mesmo assim levava a maioria dos notívagos que resistiam na boate ao delírio).
As músicas são as que mais me marcaram nesses anos de ouro da Misty, todas executadas à exaustão naquela pista mágica pelos DJs Xico e Tom Azevedo – dupla para a qual faço questão de deixar aqui minha admiração e agradecimento pelo privilégio que foi viver essa época – sobretudo ao DJ Xico, com quem pude compartilhar não só música, como a amizade.
INFLUÊNCIA MYSTIANA
Depois de anos, me dei conta de que já tinha regravado oficialmente Join In the Chant do Nitzer Ebb, Headhunter, do Front 242, e Electrica Salsa, do Off. Querem prova maior dessa influência mystiana na minha construção como DJ e artista?
Join In The Chant (2015) – Las Bibas From Vizcaya
Electrica Salsa Remixes – Las Bibas From Vizcaya