Uma Sey em foto de Filipa Aurelio

Uma Sey: ‘Acho lindo o surgimento de uma certa irmandade entre mulheres no meio da música’

Fabiano Alcântara
Por Fabiano Alcântara

A cantora e compositora franco-brasileira Uma Sey lançou recentemente o EP Open Sea, seu primeiro trabalho solo e foi gravado entre Paris e São Paulo.

O EP traz cinco faixas que refletem as raízes da artista, seja na sonoridade indie-pop, como nas letras, escritas em francês, português e inglês.

Influenciada por vozes brasileiras como Céu e Letrux, além dos projetos britânicos Alt-J e London Grammar, Uma também traz referências dos franceses The Dø, Charlotte Gainsbourg e Woodkid. Sobre camadas instrumentais etéreas e beats eletrônicos, as melodias pop de Uma se movimentam também por meio de um criativo universo percussivo.

Escritas por Uma, as letras versam sobre as dores de separações à êxtase dos recomeços, refletindo também a desconstrução de padrões herdados das gerações anteriores, além das curas encontradas por Uma a partir de estudos do Sagrado Feminino.

Open Sea conta com teclados e guitarra do produtor francês Eliott Hosansky e baixo de Max Darmon, gravados na capital francesa. As vozes de Uma, a percussão de Raphael Coelho e os backing vocals de Fernanda Brito foram registrados em São Paulo.

Por que o EP chama “Open Sea” e como apareceu o conceito?
Uma Sey – ‘Open Sea’ significa mar aberto e evoca um lugar onde não tem volta, onde não temos onde nos esconder ou proteger, onde ficamos vulneráveis frente aos elementos da natureza, frente às águas que dão vida, que acalenta, mas que permanecem indomáveis e podem destruir tudo subitamente. É um lugar onde se tem que ir para frente, sem olhar pra trás. Onde temos que confiar, entregar, aceitar e agradecer.

Esse mar representa metaforicamente as profundezas do nosso ser, onde mora nossa verdade, onde não temos como mentir. De peito aberto para a vida. É um mergulho vulnerável e verdadeiro nas nossas emoções, e além das nuvens das emoções, um voo no céu sempre azul do nosso ser profundo. Esse conceito apareceu no decorrer de uma fase pessoal de buscas e transformações intensas. Essas faixas fazem, simultaneamente, parte do processo e do resultado dele. As letras refletem minhas descobertas, minhas dúvidas, dores e êxtases nesses processos de recomeços de ciclos de vida. As composições me permitiram processar e ressignificar emoções. As letras versam também sobre a necessária desconstrução de padrões herdados das gerações anteriores, além das curas encontradas a partir de estudos do sagrado feminino.

Uma Sey em foto de Filipa Aurelio

Há algo em sua música que é típico do seu lugar de origem?
Uma – Fizemos a pré-produção em Paris, com Eliott, e parte das composições foram feitas na França, então o EP tem sim uma inspiração parisiense. Este EP mergulhou e foi literalmente criado no ventre de Paris, pois o estúdio fica nas catacumbas, bem no centro de Paris. Então ele carrega com ele a energia do lugar e uma certa estética pop sensual e chic. Diria também um certo romantismo, uma certa grandiosidade nos arranjos que Paris inspira, além do famoso spleen de Paris. Finalmente o lado rebelde e reivindicativo da França na canção Patriarchève.

Mas o EP traz claramente influências dos diferentes lugares onde morei: França, Inglaterra e Brasil. As influências da Inglaterra surgem no lado dream pop etéreo e às vezes melancólica das faixas. Já o Brasil se percebe no universo percussivo que banham todas músicas.

O que você acha que está acontecendo de interessante na música?
Uma – No Brasil, percebo que a música está ressurgindo como lugar de engajamento social e político e isso é fundamental. Vejo artistas tomando posição, liderando causas, movimentos de empoderamento, de celebração do feminino e das raízes africanas do Brasil. Tem mais representatividade da comunidade LGBTQ+, com artistas incríveis como Liniker, Linn da Quebrada e Almério, dando voz e pautando assuntos extremamente importantes, sobre direitos humanos e respeito. As mulheres também estão tomando a frente, e estão se unindo. Tem o surgimento de uma certa irmandade entre mulheres no meio da música que acho lindo e necessário e várias iniciativas incentivam as mulheres a se unir. Penso na coletânea SELA, no Women in Music Event e em festivais tais como Mulheres do Mundo, entre outros. O machismo nos ensinou a nos colocar em competição uma com a outra, e estamos desconstruindo e destruindo essa crença para nos acolher, nos ajudar, reconhecer nossas forças e sermos irmãs.

Finalmente vejo pessoas de ascendência africana tomando a frente, abraçando as riquezas das ancestralidades, das heranças culturais e pautando também assuntos importantes do racismo ainda tão forte no Brasil. O Brasil ainda é uma pigmentocracia, o que é totalmente esquizofrênico porque somos descendentes de vários povos. Penso em artistas como Larissa Luz, Luedji Luna, e a rainha Elza Soares.

Quais são suas maiores influências?
Uma – Em termos musicais, amo o blues antigo e o jazz, apesar deles não serem influência direta neste EP. Howlin Wolf pro Blues. Ella Fitzgerald no jazz, artista que admiro muito, uma mistura de ternura e força incrível, um timbre único, uma interpretação impecável e um poder de improvisação sem igual. O pop tem sua importância na minha vida: eu era super fã de Michael Jackson na infância. Meus pais escutavam bastante rock anglo-saxão, por ter morado mais de 10 anos nos EUA antes de eu nascer.

Como influência direta do EP, como o dream pop e o indie pop-rock inglês, americano e francês, todos estes são influências mais claras, por exemplo, a banda Alt-J. Eles têm um identidade musical muito forte, nas batidas, no colocação da voz do cantor, nas estruturas musicais diferentes, e nas melodias inusitadas. Eles demoraram 5 anos para fazer o primeiro álbum, que considero uma obra prima. A Alisson Mosshart do The Kills, e a Letrux cujas vozes e entregas no palco são sempre fonte de inspiração. Charlotte Gainsbourg, pela delicadeza e timbre único, e por sempre experimentar na música dela. Esses artistas, entre outros, que me inspiraram para achar minha própria identidade musical.

Quais são suas principais referências estéticas fora da música?
Uma – O impressionismo como movimento artístico seria talvez minha principal referência. O impressionismo adota ângulos e perspectivas diferentes, saindo ao ar livre para pintar a natureza viva, captando impressões fugitivas, a impermanência da vida e dos fenômenos da natureza. Amo Monet, Manet, Turner… Eu estenderia até o fauvismo com Chagall, e o surgimento de cores mais vivas. Inclusive em Paris as visitas aos museus inspiraram os arranjos e as composições. No audiovisual, os filmes com fotografia épica e grandiosa, como “Melancolia” de Lars von Trier o os videoclipes de Nabil são fonte de inspiração.

Quais são seus valores fundamentais?
Uma – Pratico yoga e aderi aos valores transmitido por ela. Me esforço para honrá-las. A não-violência, o primeiro dos Yamas é talvez meu valor fundamental. Não-violência contra nós mesmos, o que implica em se conhecer, conhecer nossos limites, e desenvolver carinho e acolhimento para nós mesmos. Isso se estende a não-violência contra outros seres, humanos e não humanos também. Sou vegetariana em transição lenta para o veganismo. Desse valor desaguam vários valores, de amor, empatia, respeito e tolerância. Estou a favor da liberdade de escolha, o que implica a igualdade do acesso a liberdade de escolher para todos. Não dou nenhum valor a julgamentos e o que é considerado “normal”. Sou a favor de um feminismo, e além do feminismo, um humanismo que desconstrói normas e julgamentos, que acolhe a pluralidade e a liberdade de escolha de cada um. A integridade e não falsidade são também valores muito importantes, que implica também se conhecer e conscientizar em cada um de nós padrões que impedem isso.

Finalmente acredito que a felicidade não é uma busca externa, mas um estado de ser interno. É uma prática. É também uma escolha que me esforço de fazer, principalmente porque a mente tende a ser atraída pelo negativo e se deixar, leva a crises de angústias destrutivas.

O que tem te deixado animada?
Uma – Acho que vivemos em tempos muito interessantes. A espécie humana nunca esteve tão perto da extinção. Nós estamos em meio à sexta extinção de biomassa, e pela primeira vez na história do planeta, ela está sendo induzida pelo homem. A ecologia deveria ser nossa preocupação número um e o crescimento do movimento vegano e de uma maior consciência ecológica me deixam animada. Países e cidades proibindo uso de plástico descartável por exemplo… Mas o caminho é longo ainda. Engraçado porque o plástico foi visto como uma revolução, depois da Segunda Guerra mundial e depois nos anos 80, quando passou a ser amplamente comercializado. Mas o capitalismo completamente desviou essa utilidade e o plástico passou a ser usado para objetos descartáveis, criando lixo sem precedente.

Estamos vivendo tempos políticos sombrios, com ressurgência de autocracias, de reacionários no poder, enquanto o espírito do tempo é totalmente outro. A pressão criada entre a busca geracional por uma liberdade de SER maior e a realidade opressiva pede um poder de resistência, uma inventividade, criatividade, e resiliência enorme. Os movimentos que evoquei acima na música e na sociedade me deixam animada. Vejo esses tempos como uma contração antes de uma expansão maior. A contração cria uma pressão interna tão forte para que a expansão possas ser maior ainda. Assim que me parece que tudo se movimenta na vida. Como respirações. Contração e expansão. Ter fé nestes tempos é um ato de resistência, de otimismo. Não é fácil e é uma escolha e uma prática de cada dia.