Yasmine Evaristo analisa Trilha Sonora para um Golpe de Estado, do belga Johan Grimonprez
Jazz, Guerra Fria e o processo de descolonização do Congo se misturam no documentário Trilha Sonora para um Golpe de Estado. O concorrente ao Oscar de Melhor Documentário em 2025, dirigido pelo artista multimídia belga Johan Grimonprez, aborda o que motivou o envolvimento dos músicos de jazz estadunidenses Abbey Lincoln e Max Roach, entre outros, no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU).
Mas não apenas isso. Com muita sensibilidade e um senso jornalístico apurado, o cineasta reconstrói os pontos de convergência entre a música jazz e a Guerra Fria, bem como a importância do Congo Belga (atual República do Congo) enquanto uma nação rica em recursos naturais que teve seu território cobiçado pelas grandes potências do século XX. Trilha Sonora analisa fatos que rodearam o assassinato de Patrice Lumumba, primeiro-ministro congolês, desmistificando a ideia de que sua morte teria sido apenas parte de uma batalha política entre Bélgica e União Soviética.
Medo da África
Para que várias tecnologias fossem desenvolvidas no chamado Ocidente, a manutenção de práticas coloniais era necessária, já que entre elas estavam incluídas a exploração de recursos naturais e mão de obra baratas das regiões dominadas. Em meados do século XX, o Congo possuía uma das maiores reservas de urânio, principal material para a construção das bombas nucleares.
O medo de que países africanos viessem a se organizar e tomar posse de espaços dentro da Organização das Nações Unidas fez com que, mais uma vez, os países chamados na época de Primeiro Mundo se mobilizassem visando a derrubada dessas nações. Além de países da Ásia, como Índia, alinhados com as nações africanas, o primeiro-ministro soviético Nikita Khrushchev se une ao bloco, como vemos em Trilha Sonora para um Golpe de Estado.
Como retaliação, passa-se a construir a narrativa de que Lumumba seria comunista. Como é mostrado em um registro reproduzido no início do filme, Patrice não se considerava comunista, mas “africano, nacionalista e venho dirigir o destino próprio de meu país”.
O fantasma do comunismo será combatido com a música americana?
Como estratégia de apresentar apoio à África e ganhar seu público, o governo estadunidense e a CIA traçam um plano de se popularizar por lá. Essa estratégia se dá por meio da música. Assim sendo, ao longo de alguns anos, astros do jazz são enviados para nações africanas com o objetivo de mostrar como os Estados Unidos são um país que pode oferecer suporte político e cultural.
O que não se esperava era como essa proximidade entre artistas afro-americanos e africanos despertasse uma série de questionamentos sobre como o negro era tratado na própria América. Vemos em cena ora Malcolm X declarando seu apoio a Lumumba e questionando como o negro estadunidense é bem tratado pelo Estado lá fora, mas massacrado em seu país, como lemos trechos de textos de Maya Angelou questionando os anos de exploração que seu país pratica em outras nações. O que deveria ser uma forma de combater o avanço da união dos povos não brancos se torna, assim, em uma grande pedra no sapato do Ocidente.
Som e imagem: recursos narrativos em Trilha Sonora para um Golpe de Estado
Neste documentário, o jazz não é apenas o elemento que provoca a ação na qual artistas do gênero vão à ONU questionar a morte de Patrice Lumumba, nem serve somente como trilha sonora do filme; antes de tudo, ele dita a forma e o ritmo da construção cinematográfica. A direção abusa de cena marcantes nas quais, em reuniões da Organização, o premiê Khrushchev bate com seu sapato na bancada ao som da vertente musical.
De maneira semelhante, vemos em meio a imagens antigas trechos de propagandas contemporâneas, como a da Tesla, que ligam a extração de minerais importantes para a produção da indústria americana às inúmeras ações de golpe de estado. Além disso, os cards e fontes tipográficas nos quais vemos trechos de depoimentos ou citações, são apresentados tais quais as capas de álbuns da Blue Note Records (importante gravadora de jazz americana fundada em 1939), transformando todo o registro histórico, bem como a plasticidade da produção no que o título anuncia.
Trilha é composto inteiramente por imagens de arquivo e filmagens, incluindo trechos de entrevistas e referências a textos escritos e registros históricos. Nessa evocação de memórias, se destacam nomes como Louis Armstrong, Dizzy Gillespie e Nina Simone. Sua abordagem destrincha as relações políticas do período 1950/1960, mas também assuntos como a escravidão, o domínio colonial na África e o impacto da Guerra Fria fora da dicotomia entre Estados Unidos e Rússia.
Trilha Sonora para um Golpe de Estado está em cartaz nos cinemas brasileiros.