Esta é a primeira edição da coluna dominical Transmitter, enviada por Lalai Person diretamente de Berlin. Desfruta!
Amanhã é a questão
Quando a pandemia foi anunciada e o mundo entrou em quarentena sem data para sair, muita gente teve que rever os seus negócios para que eles sobrevivessem a tempos tão incertos. Uma das palavras de 2020 para quem empreende foi “pivotar”, ou seja, girar o negócio em outra direção para que ele se mantenha em pé. São vários os exemplos e o Berghain é um deles.
Enquanto sua pista de dança não volta a nos abduzir para longos finais de semana, ela dá lugar a um espaço expositivo surpreendente. Primeiro abrigou uma instalação audiovisual que pedia paciência com suas longas filas na porta do club para visitá-la. Para muitos, a fila não deixou de ser um jeito de matar saudades de um dos clubs favoritos do mundo onde a fila é parte da experiência. E então foi anunciada a nova exposição numa parceria inédita entre o Berghain e o Boros Collection, a Studio Berlin, com participação de 115 artistas incluindo Tacita Dean, Olafur Eliasson, Cyprien Gaillard, Elmgreen & Dragset, Katharina Grosse, Alicja Kwade, Danh Vō e Wolfgang Tillmans. O ponto em comum entre eles é que todos têm residência em Berlim.
Diferentemente do que muita gente achou, as obras não são do acervo da coleção do Boros. São na maioria obras inéditas com 90% delas produzidas este ano durante a quarentena.
Visitei-a logo que abriu. A pergunta que mais ouço desde então é se vale a pena pagar 20 euros de entrada para conhecê-la. Sim, para mim valeu por toda a experiência que ela me proporcionou.
Todos os espaços do prédio foram ocupados, desde as pistas Säule, Berghain, Panorama Bar, Halle, Lab.Oratory, até os banheiros, os bares, a sorveteria, os dark rooms e os corredores que conectam tudo.
Fomos recebidos por um simpático bouncer que dessa vez não tem a possibilidade de olhar pra você e dizer com gosto “not today”. Não teve coração tremendo e alívio por ter sido aceita ao atravessar a porta. Entramos da maneira mais descomplicada possível. Ingressos na mão, horário marcado, sem fila e uma pulseirinha com meu nome gravado me esperando no caixa.
Encontramos nossa guia na frente da chapelaria. Ela, apesar de esbanjar simpatia e sorrisos, não mostrou muito conhecimento além do que pareceu ter decorado para nos contar durante nossa visita guiada de 1h30 (que é pouco para o tamanho da exposição).
Foi uma experiência única estar no Berghain num outro contexto com a luz clara do dia invadindo as pistas vazias e limpas, ver corpos nus somente nas fotos ou pinturas, ter arte ocupando espaços impregnados de histórias e perceber os olhares nostálgicos das pessoas à sua volta. Eu me vi em alguns cantos enquanto observava um piano tocando sozinho no banheiro, atravessava os corredores e mal reconhecia alguns lugares porque eu nunca os vi vazios (ou não tinha visto mesmo).
As artes mais emblemáticas são aquelas que visivelmente traduz uma conexão do artista com o Berghain e são várias delas. O dia estava ensolarado e os raios de luzes atravessavam as grandes janelas da pista do Panorama Bar. Foi impossível não mergulhar em memórias da última vez em que estive lá e dancei com a Robyn pendurada na beirada da janela.
Foi ali que encontrei algumas das obras das quais mais gostei. Uma delas, da artista surda Christine Sun Kim, que criou um mapa que mostra seus movimentos pela pista feitos a partir das vibrações sonoras que sentia quando estava lá. Em frente a cabine do DJ, uma flor marmeleiro-do-Japão gigante simboliza a história do casal de artistas Pettit Halilaj e Alvaro Urbano que se conheceram ali e agora são casados.
No Halle, os espelhos (proibidos em todo o club) do Olafur Eliasson foram liberados. Na saída, a única foto autorizada a ser tirada, a obra do artista tailandês Rirkrit Tiravanija instalada no topo do Berghain, “Amanhã é a questão”, nos lembra sobre a incerteza do futuro.
Para retomar o fôlego, fomos tomar uma cerveja bem gelada acompanhada de fritas no biergarten arrumadinho ao lado que mal parece fazer parte do Berghain.