Te amo brother! O fantástico legado que Gerson King Combo deixou aos bailes e seus DJs

Jota Wagner
Por Jota Wagner

por Jota Wagner e Amanda Sousa

O James Brown brasileiro surgiu dançando nos Bailes da Pesada, introduziu o funk em português no Rio de Janeiro e se tornou o rei do movimento black brasileiro, influenciando geração após geração. Falamos com DJ Hum, KLJay e outros DJs brasileiros sobre o rei

 

“Eu te amo, brother” – recorda o DJ Mimi, que despontou nos anos 90 fazendo festas de rua em São Miguel Paulista e se tornou um importantes representante da house music no país. “Eu era criança e ouvia muita gente falando isso. Depois que eu cresci é que eu entendi de onde vinha este bordão” -conta enquanto descreve as festas que rolam em sua casa e do pessoal do bairro que ia quando pequeno. Mimi continua firme nas discotecagens (em lives) e também está no ramo da compra e venda de vinis. É testemunha do valor a que chegavam os discos de Gerson King Combo antes mesmo de sua morte, batendo quase 4 mil reais.

O menino de São Miguel está Longe de carregar sozinho esta bagagem afetiva. Praticamente todo mundo que viveu os bailes de periferia, a música black ou simplesmente botou os pés na rua nos anos 70 se lembra do peso do groove, da positividade dos jargões e dos “mandamentos black” de Gerson King Combo.

“Amar como ama um black. Dançar como dança um black. Usar sempre o cumprimento black…” e por aí vai, na letra da braba que foi certamente seu maior hit. O hino do país cujo rei foi Gerson.  DJ Hum, monstro das discotecagens e um dos bastiões do hip hop nacional, confirma. “Na quebrada a gente cresceu ouvindo os Mandamentos Black. Todo mundo ouvia, não tinha jeito. O som dele estava presente nos bailinhos da vila”.

Gerson Rodrigues Côrtes – mais conhecido como King Combo – nasceu 30 de novembro de 1943 no Rio de Janeiro (RJ) e foi um cantor e compositor brasileiro de soul e funk music. Iniciou sua carreira em 1963, fazendo dublagem para o programa ‘Hoje é dia de Rock’, na rádio Tupi, apresentado por Jair de Taumaturgo e, depois de passar por experiências como dançarino e coreógrafo. Inspirado pela música negra americana, decidiu tornar-se cantor.

Com idealização de dois DJs cariocas – Big Boy e Ademir Lemos um novo tipo de baile surgiu: os Bailes da Pesada, que tocavam sucessos de funk e soul americano, inicialmente, no Canecão e depois, por toda a zona norte do Rio de Janeiro. A partir disso começaram a surgir diversas equipes de som – como Furacão 2000 e Soul Grand Prix – e várias bandas para tocar aquela música. Gerson tocou e dançou nesses bailes com sua banda, sendo aclamado como “rei dos bailes” e “James Brown brasileiro” pelo seu estilo de dançar imitando James Brown.

Sua figura, ginga e carisma (estava sempre bem humorado), aliada a um discurso positivo e empoderador, fizeram com que o reino de Gerson se expandisse para as comunidades periféricas, onde seus súditos o recebiam ávidos.

“A audácia que ele teve na época, de fazer um som falando diretamente para negros e também música negra para brancos. Isso em uma época que as pessoas que mais tinham necessidade de informação, cultura e música boa não eram atendidos pela grande mídia. E o Gerson King Combo conseguiu levar esta música indo nas quebradas. Fez lá atrás o que o rap fez no começo, chegando primeiro só naqueles bailes”, afirma DJ Hum.

Tudo isso, fazendo música com peso e grooves fieis ao funk americano. Segundo o DJ carioca Nepal, Gerson foi musicalmente fundamental, “com uma linha mais ligada ao soul americano, diferente do Tim Maia, por exemplo, que seguia com a música mais contemplada de elementos musicais brasileiros. Isso acabava soando muito diferente e maneiro. Um soul americano sendo cantado por um brasileiro. Ele não só fez a soul music, ele viveu e foi um percussor da soul music brasileira e abriu caminho para muita coisa que está aí hoje”. Sobre a representatividade, Nepal comenta que o Gerson sempre a trouxe de uma forma muito leve. “Esse lance do orgulho negro estava estampado em tudo o que ele criava.”

Em meados dos anos 70, com o crescimento da cena dos bailes na periferia, o movimento Black Rio ganhou notoriedade nacional e, com o interesse das gravadoras no novo som, Gerson consegue gravar seus dois discos de maior sucesso – Gerson King Combo, de 1977, e Gerson King Combo – Volume II, de 1978 – conseguindo sucesso radiofônico e nos bailes, com “Mandamentos Black”, “God Save the King“, “Funk Brother Soul” e “Good Bye“. Com o esmorecimento do movimento, Gerson abandona a carreira artística e passa a trabalhar como produtor de eventos. É redescoberto no final da década de 1990 e passa a fazer shows e gravar novamente, lançando mais dois álbuns. É considerado um dos principais nomes da música negra brasileira, juntamente com Tim Maia, Hyldon e Cassiano. Foi quando KL Jay, integrante do grupo Racionais MC’s o conheceu. “A primeira vez que eu ouvi o Gerson foi através do Câmbio Negro – grupo de rap rock e hip hop de Brasília . Eles usavam a voz dele nos scratchers. O som ficou massa, me impactou e passei a pesquisar e ouvir.”

Nos anos 90 DJ Paulão estava começando a fazer uma pesquisa sobre soul music e se deparou com o soul brasileiro com o disco preto de Gerson King Combo. O impacto dessa descoberta foi grande para a pesquisa do DJ. “A partir disso não descansei enquanto não consegui esse disco. Para quem toca no nicho de groove brasileiro ele é uma referência.”

Redescoberta

Foram os DJs, aliás e como quase sempre, os responsáveis por devolver o trono a Gerson Combo. Com a febre do samba rock e do soul brasileiro resgatado por DJs na década de 90 como Paulão, DJ Hum, o Jive Club em São Paulo e Nepal e Da Lua no Rio, seus discos não só voltaram a ser tocados, como ele começou a se apresentar novamente a convite das festas.

Com a redescoberta, Gerson percebeu que existia um mercado e um público cativo para o som que ele fazia, inclusive com seus discos sendo disputados a peso de ouro na Inglaterra. Em 2001, gravou um novo disco – Mensageiro da Paz – pela Warner Music Brasil, acompanhado pela banda Clave de Soul – com participações de Cidade Negra e Sandra de Sá – e que teve boa repercussão da crítica especializada para sua música negra sem misturas de ritmos tradicionalmente brasileiros – como o samba e o baião, presentes na obra de outros artistas brasileiros de soul e funk, como Tim Maia, embora tenha regravado canções de compositores brasileiros tradicionais em seu álbum de estreia. Continuou, também, com a agenda de shows e com as participações em discos e shows de artistas da música negra brasileira contemporânea, bem como de veteranos. Desse modo, participa da gravação de discos de Clave de Soul, Berimbrown e Paula Lima; e shows de Marcelo D2 – que utiliza versos de sua canção mais famosa, “Mandamentos Black”, em “Qual É?”, Carlos Dafé, Hyldon e Banda Black Rio. O carioca e produtor musical Marcelinho da Lua diz que, em meados de 1997/1998 quando começou sua coleção de vinil e foi buscar referências de soul music, encontrou um disco do Paulo Diniz que tinha uma faixa com Gerson Combo.

“Fui ouvir e gostei. Conheci ele pessoalmente em Madureira e acho que o grande lance dele com os DJs foi essa ligação da soul e black music voltarem para as pistas de dança. Gerson foi ícone desses estilos e vivia nas gravadoras, sendo essencial para toda essa música dançante e para os bailes black”.

Em 2000 DJ Hum criou, no Bracaleone, um projeto chamado Black Seventh, quando o hip hop e o rap nacional estavam em alta. O baile acontecia toda segunda- feira e a festa cresceu tanto que fizeram um show no Consulado da Cerveja em meados de 2001 e apresentaram ao público o Gerson King Combo ao vivo como convidado.

“Ali foi um passo fortíssimo e logo depois ele já gravou um disco e começou a fazer shows com todas as bandas alternativas da época. Já em 2003 eu comecei a tocar numa casa de shows chamada Maria Mariah e no dia de estreia eu levei o Gerson ao vivo para participar. Todos esses encontros foram muito marcantes e ele ter partido é uma perda muito grande para todos nós, para o universo da soul music e por tantos experimentos tendências e audácia que ele teve na época de fazer música negra diretamente para negro, música negra para brancos. Era uma época difícil onde as pessoas que precisam de informação e acesso a música boa não eram tão atendidas pela grande mídia e ele conseguiu isso. Conseguiu levar a música para esses lugares mais alternativos”.

Em 2016, foi convidado para cantar “Mandamentos Black” em uma campanha de marketing da Netflix para divulgar a série The Get Down sobre o surgimento do hip hop na década de 1970 e participaram também Tony Tornado e Nelson Triunfo. Já em fevereiro deste ano lançou o single “Deixe sair o suor” versão de’ The breakdown” (Rufus Thomas, Eddie Floyd e Mack Rice), escrita por Berico, ex-integrante da banda Berimbrown.

Se é verdade que Gerson King Combo é o rei do soul funk brasileiro, é fato que os DJs formam sua ordem de nobres cavaleiros. Sempre foram fieis à sua obra e rodaram o mundo empenhados em manter permanentemente girando os discos do mestre.

Não há dúvida de que agora esta missão sagrada não só se fará necessária como será alegremente cumprida por seus guerreiros viajantes, armados com o arsenal de cacetadas que Gerson King Combo compôs ou gravou em vida, muitas vezes anonimamente. Como estava sempre circulando pelas gravadoras e estúdios, não era raro ser chamado ali em cima da hora para participar de uma gravação, sem ter seu nome creditado (nem mesmo em conta corrente). DJs e colecionadores rodam os sebos atrás dos cálices sagrados funky do rei Combo.

Recitemos juntos, lembrando do quanto ainda vamos dançar, graças aos DJs, os grooves de Gerson King Combo.

Nós te amamos, brother!

Brother!
Assuma sua mente, brother!
E chegue a uma poderosa conclusão
De que os blacks não querem ofender a ninguém, brother!
O que nós queremos é dançar!
Dançar, dançar e curtir muito soul
Não sei se estou me fazendo entender
O certo é seguir os mandamentos blacks, que são, baby
Come on, brother
Dançar como dança um black!
Amar como ama um black!
Andar como anda um black!
Usar sempre o cumprimento black!
Falar como fala um black!
Eu te amo, brother!
Yeah, brother, do it, baby
Come on brother, yeah
Swing brother, swing
Esperto, esperto
Viver sempre na onda black!
Ter orgulho de ser black!
Curtir o amor de outro black!
Saber, saber que a cor branca, brother
É a cor da bandeira da paz, da pureza
E esses são os pontos de partida
Para toda a coisa boa, brother!
Divina…

Gerson King Combo nos deixou hoje, 22 de setembro de 2020 no Rio de Janeiro, aos 76 anos, devido a uma infecção generalizada e complicações da diabetes.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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