Guerra Soldado checheno tocando em piano abandonado durante a Primeira Guerra da Chechênia (1994-1996). Foto: Vladimir Velengurin/Reprodução

O preço da guerra pode estar no seu fone de ouvido

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Spotify, Boiler Room, Sónar e Awakenings são acusados de art-washing ao receber investimentos de fundos ligados à indústria militar

Consumimos, muitas vezes sem saber, uma infinidade de produtos feitos por empresas que já ganharam dinheiro com as guerras. Na época dos grandes conflitos como a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, milhares de indústrias transformaram seus parques fabris para fornecer produtos ao governo de seu país, algumas vezes por exigência e coação, outras pela vontade de lucrar mais. Em vez de tratores, mudaram para tanques de guerra. Em vez de ternos e vestidos, uniformes para o exército. Dois entre tantos e tantos exemplos. Com o conflito concluído (e boa parte de seu país — ou mercado — destruído), bastava fazer uma faxina na marca e voltar a seu papel original de fabricante bonzinho de produtos essenciais à sociedade civilizada.

A partir dos anos 50, no entanto, o complexo sistema de investimentos criado pelo regime capitalista permitiu que o fluxo do dinheiro destinado a matar pessoas circulasse livremente pelos canos subterrâneos do sistema. Um cidadão investe em um fundo de investimento, que investe em outro, que distribui a grana juntada em centenas de empresas e recolhe os lucros de cada uma. Um mesmo fundo pode ter dinheiro investido em uma petroleira, uma escola infantil e uma fábrica de revólveres, por exemplo. O indivíduo lá na outra ponta nem vai (ou não quer) saber de onde vem o lucro das ações que tem.

A crueldade revelada em tempo real por smartfones nos conflitos recentes, especialmente a guerra da Rússia x Ucrânia e de Israel x Palestina, está despertando um sentimento de revolta mundial que, tardiamente, tem feito com algumas práticas financeiras horripilantes sem expostas ao público. Em um momento único na história recente do capitalismo, focos de revolta estão surgindo em diversos lugares do mundo, inclusive vindas do cenário artístico.

“Foda-se o Spotify. Seu presidente, Daniel Ek, investe milhões em tecnologias para drones militares. Nós estamos removendo nossa música de sua plataforma”, declarou oficialmente a banda australiana King Gizzard & The Lizard Wizard, na última semana, acompanhando um boicote puxado por outros artistas, como Xiu Xiu e Deerhoof. Usando o dinheiro que ganhou com música via Spotify, Ek fundou uma empresa de investimentos chamada Prima Matéria, responsável por injetar 600 milhões de dólares na Helsing, companhia alemã de Inteligência Artificial voltada para sistemas de guerra.

Segundo os artistas que estão retirando suas músicas do catálogo do Spotify, o sentimento é de traição por terem ajudado a plataforma a ganhar dinheiro para investir no mercado da morte. O escândalo se junta a outros dois casos recentes, que também provocaram revolta em seus artistas.

Em março de 2025, outro lamaçal sangrento do mercado financeiro veio à tona, com a descoberta de que a empresa de investimento KKR, responsável por ganhar dinheiro com assentamentos ilegais e aluguel de terras ocupadas na Palestina para israelenses, estaria injetando dinheiro em diversas empresas de entretenimento, como o Boiler Room, e os festivais Sónar, Awakenings e Fields Day.

Como de costume, a KKR estava oculta atrás de uma outra empresa de investimentos que a controla, chamada Superstructure e voltada ao mercado da música. Dezenas de artistas, incluindo Brian Eno e Massive Attack, não só se pronunciaram contra a sacanagem financeira, como também se retiraram dos line-ups dos eventos, acusando-os de usarem suas imagens para fazer art-washing, manobra para limpar a barra da marca investindo em eventos artísticos.

O que não falta é artista engajado (ainda bem) no mundo em que vivemos. Veremos uma onda de exposições e boicotes cada vez maior a quem se rendeu ao dinheiro fácil da indústria bélica. Nossa sociedade precisa enxergar claramente o labirinto do fluxo financeiro mundial, e fazer sua parte.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.