Capa do livro Ondas Tropicais

Sonia Abreu passa seus 52 anos de carreira como DJ a limpo em biografia, leia entrevista com a pioneira

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Existem duas formas de passar a limpo toda uma vida. Uma, dizem, é nos segundos que antecedem à nossa morte. Outra é quando uma editora publica sua biografia, revisitando seus sucessos, fracassos, alegrias e pendengas. A primeira está garantida, basta chegar sua hora. A segunda, meus amigos, é para poucos.

Sonia Abreu, a primeira DJ brasileira e dona de uma penca de projetos musicais que influenciaram toda uma geração de paulistanos, é daquelas pessoas cujo dia parece ter 48 horas. Bandas, programas de rádio, coletâneas, sound system… a mulher é o tipo que chamamos de “agilizada”.

FESTA DE LANÇAMENTO DO LIVRO ONDAS TROPICAIS ROLA NESTA SEXTA (27) 

Ondas Tropicais, livro escrito pela patroa Claudia Assef junto com Alexandre de Melo, conta a incrível história de Sonia desde seus primeiros passos na música, como backing vocal na Jovem Guarda, até o reconhecimento como uma das melhores DJs do país, além de pioneira: o trabalho nas rádios Excelsior, Brasil 2000 e 89FM, o sound system Ondas Tropicais, que chegou ao ápice no formato de um ônibus com palco em cima, presente nos mais antológicos festivais de rock do país – e teve até uma incrível versão barco pirata -, a Banda do Quarto Mundo, suas residências na Papagaio Disco Club e na Casa 92 (onde discoteca semanalmente até hoje). E muito, muito, mas muito mais em 200 divertidas e enfumaçadas páginas.

Sonia entre os autores de sua biografia, Alexandre de Melo e Claudia Assef. Foto: Renata Thomé

“Foi o melhor presente que eu tive…na hora em que você vai vivendo, vai construindo os projetos, você não se dá conta da sua vida, de tudo o que você construiu ao longo desses 52 anos de pista. Agora eu tenho de ler umas três páginas, parar e esperar uns dias para ler de novo. Eu choro, me emociono! Agora eu falo, meu Deus, eu fiz tudo isso!!!”, diz Sonia entregando que, mesmo para quem merece, ter sua vida contada em uma biografia pode ser uma experiência incrivelmente emocionante.

O livro é um passeio pela mundo da música nas últimas décadas, principalmente em São Paulo, mas com reverberações em todo o país. Aliando um amor ímpar pela pesquisa musical, muita cara de pau e perfeccionismo, Sonia foi construindo sua carreira vendo portas sendo abertas graças ao entusiasmo gerado por saber o que estava fazendo. Os capítulos vão se sobrepondo, deixando clara a importância das rádios como meio de difusão de novos sons em um mundo onde era muito difícil conseguir informação.

Sonia no mítico coreto da rua Augusta, nos anos 80, onde tocava para passantes e comerciantes da região

“Tive a sorte de trabalhar em uma rádio que pertencia à Rede Globo, o que me permitiu viajar para o exterior em busca de novidades. Não fosse isso, nós todos, DJs e radialistas da época, ficávamos nas mãos dos ‘traficantes de música’, que eram os pilotos e comissários de bordo dos vôos internacionais”, conta Sonia que, pelo menos quando o assunto é pesquisa, não tem saudades das pedreiras que acabavam gerando certa exclusividade aos DJs: “o mundo mudou, e eu acho que não tem volta. Eu, como vivi essa fase anterior à internet, acho muito melhor (hoje). Porque hoje, quem procura acha” diz a DJ, quando pergunto sobre como era difundir música quando o dial era passagem obrigatória para quem queria conhecer um novo som e cada DJ desenvolvia sua identidade. “As rádios e as revistas musicais poderiam estar mais atualizadas do que são. Basta que as pessoas que trabalham com isso queiram. Hoje, para mim, é um paraíso!! Eu abro meu computador e vou pra onde eu quiser, e busco o que eu quiser, no mundo tudo”, diz a DJ, que detesta viver do passado.

Sonia fazendo o que mais gosta: tocar músicas sem obedecer a nenhum gênero, apenas a seu feeling e pesquisa

Em um momento em que o ativismo feminista amadureceu tanto que simplesmente não há contra-argumento que não soe completamente idiota (acredite… até pouco tempo atrás a idéia de existir contra-argumento para igualdade não soava tão absurdo), Ondas Tropicais segue prestando ótimos serviços para a causa, mesmo não levantando bandeiras ou mesmo diante da negativa da Sonia, que respondeu não se considerar feminista na entrevista que fecha o livro.

Apesar de não ser uma ativista, Sonia é, mais até do que feminista, um ideal vivo do feminismo. Uma mulher que desde garota esqueceu de se perguntar se isso ou aquilo era “coisa de homem” e meteu no chinelo concorrentes masculinos o tempo todo sendo simplesmente melhor. É bem possível que houve sim dificuldades ou preconceito de gênero. Mas lendo o livro é fácil visualizar uma Sonia Abreu pisoteando o machismo sem mesmo perceber com seu rolo compressor musical. Tirando onda. Tirando ondas tropicais…

Na esteira do “respeita as mina”, o livro ainda repara por tabela mais uma injustiça histórica, retratando Lucinha Barbosa, companheira do eterno mutante Arnaldo Baptista, descrita com ironia cruel como “a fã que parecia Rita Lee” na autobiografia da cantora e resumida como uma groupie que estava na porta do hospital e que, na ausência da família, adotou Arnaldo, segundo o documentário Loki  (ainda que o filme tente honrar todo o comprometimento de Lucinha para com a recuperação de seu grande amor).

Até a publicação de Ondas Tropicais, Lucinha era a dedicada fã sem história e sem vontade própria que caiu do céu para sequestrar Arnaldo Baptista para sua vida. O livro mostra que não foi bem assim. Lucinha transitava no mundo da música hipponga e descolada paulistana há anos e era amiga de Arnaldo e Sonia. Era mística, influente na turma (andava com Jaques Kaleidoscópio, DJ referência do rock alternativo nos anos 70) e foi uma espécie de guru informal da Sonia, apresentando-a a um novo som, uma nova cena e um novo jeito de pensar. Tampouco foi ela quem cuidou sozinha do músico após seu acidente. Sonia, filha de médico, montou o time de amigas que fizeram companhia ao músico em seu coma e que incluía, além das duas a Vera, irmã de Lucinha, a cantora Suzana Braga, Carmen Sylvia (cunhada de Dinho, batera dos Mutantes) e a fotógrafa Grace Lagôa. Todas eram fãs de Arnaldo, assim como eu, provavelmente você que está lendo, e também como Beck, David Byrne e Sean Lennon, só pra citar alguns. Resumo da história: Arnaldo foi resgatado por um grupo de amigas e saiu do coma, como ele mesmo descreve, “na cama da minha menina”, com quem é casado até hoje.

Sonia com o amigo Arnaldo Baptista, de quem ela ajudou a cuidar depois do acidente que quase o matou

Depois de abrigar a dupla (Arnaldo e Lucinha) por um tempo em seu apartamento logo depois da alta do cantor, Sonia voltou com tudo para seus projetos, assumindo uma aglutinação de funções que ia de produtora executiva, captadora de recursos, assessora de imprensa e atração principal do evento. Era boa de networking também e, quando seus contatos não chegavam até a pessoa com quem ela precisava falar, simplesmente mandava um “diz que a Sonia Abreu está aqui”, com uma segurança que fazia o interlocutor se envergonhar em não saber quem ela era.

Sem perceber, afinal a vida passa rápido quando estamos ocupados, Sonia se viu com mais de 50 anos de carreira, dezenas de projetos seminais para a história da música brasileira, uma turma de amigos interessantíssima, homenagens bacanas como a que recebeu na criação do Dia do DJ, em São Paulo, uma residência na Casa 92 e, olha só, um divertido livro contanto tudo isso.

Sonia com Osvaldo Pereira, primeiro DJ do Brasil, no lançamento de Ondas Tropicais na Livraria Cultura em SP. Foto: Renata Thomé

Na dia em que conversamos, Sonia tinha acabado de participar do Concerto de Discos, no Centro Cultural São Paulo, para tocar e falar do disco Os Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets. Na semana anterior, havia tocado na festona de relançamento no livro Todo DJ Já Sambou, fazendo um set de eclético, que foi de reggae a africanismos,  acompanhada de percussão e theremim… e continua feliz da vida com sua residência na Casa 92, contando-nos como impressiona as pessoas que inicialmente se assustam ao ver “uma coroa na cabine do DJ”.

Conversar com a Sonia sobre música assusta. Você começa trocando idéias e aos poucos vai se dando conta do tamanho do conhecimento desta mulher. Termina o papo como uma criancinha chorona com as calças na mão. A monstruosa experiência vai te envolvendo alí e ao final da conversa (e principalmente do livro) você já faz parte do mundo de Sonia Abreu, contando os dias para dançar em sua pista. Nesta sexta (27), ela toca na festa de lançamento do Ondas Tropicais no novíssimo Club Hub, ao lado de Otávio Rodrigues e DJ Marky. Um line-up de responsa. Não perca essa chance de ver Sonia em ação!

FESTA DE LANÇAMENTO ONDAS TROPICAIS
Sexta, 27, a partir das 21h
Club Hub
Av. 9 de Julho, 5871, Jardim Paulista, São Paulo
Grátis
Line-up: Claudia Assef entrevista Sonia Abreu (22H), Otávio Rodrigues, Sonia Abreu e DJ Marky

ONDAS TROPICAIS – A HISTÓRIA DA PRIMEIRA DJ DO BRASIL, SONIA ABREU
Editora Matrix
De Claudia Assef e Alexandre de Melo
200 páginas
R$ 39,90

 

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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